Gestora canadense possui US$ 26 bilhões em ativos e 269 mil hectares no território brasileiro; comunidades no norte de Minas dizem que vírus segue as torres de uma transmissora de energia, pertencente ao fundo de investimentos
Por Bruno Stankevicius Bassi
O aumento exponencial de casos de Covid-19 entre indígenas e quilombolas expõe apenas uma das facetas da interiorização da pandemia no Brasil. Para as comunidades geraizeiras do Vale das Cancelas, no norte de Minas, a chegada do novo coronavírus em seus territórios segue o caminho das torres da Mantiqueira Transmissora de Energia, chancelada por uma decisão judicial controversa.
Em 16 de abril, o juiz Reginaldo Palhares Júnior, coordenador do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) da comarca de Grão Mogol, renovou uma liminar em favor da Mantiqueira autorizando a retomada das obras de construção da Linha de Transmissão (LT) Janaúba-Araçuaí na fazenda São Francisco, vizinha do Território Tradicional Geraizeiro do Vale das Cancelas.
Com a liminar, cerca de quarenta trabalhadores terceirizados — oriundos de diversas cidades do entorno e de outros estados — chegaram ao Vale das Cancelas, sem passar pela quarentena mínima de sete dias. A reentrada foi acompanhada, no dia 28 de maio, por dezesseis policiais militares, alocados para acompanhar o oficial de justiça responsável pela imissão de posse contra a detentora da área, a produtora de eucalipto Florestaminas S/A.
A área em disputa, no entanto, pertence a outra fazenda que não é citada na decisão judicial. “A Mantiqueira fez um processo único colocando a fazenda Buriti Pequeno e São Francisco como se fossem uma mesma área”, explica Felipe Soares, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que assessora as comunidades geraizeiras. As duas fazendas ficam a 20 quilômetros uma da outra e são de titularidade de duas empresas diferentes.
A Buriti Pequeno pertence à Foscalma S/A e, desde 2005, possui uma ação discriminatória aberta visando sua desapropriação e integração ao território geraizeiro. A São Francisco, da Florestaminas, teve sua área decretada “de interesse social” pelo governo de Minas Gerais em 2018, destinando a área para as famílias tradicionais geraizeiras. Ambas as empresas, controladas pelo banqueiro João de Lima Géo, foram indiciadas em 2012 por grilagem de terras na região.
Para o defensor de direitos humanos e geraizeiro Adair Pereira de Almeida, o Nenzão, a decisão judicial viola direitos básicos reconhecidos na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e na Política Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais.
“Isso feriu o nosso direito à consulta livre prévia e informada, de poder debater o processo em audiências públicas com participação efetiva da comunidade nas decisões”, afirma Nenzão. “Estamos entregues à morte!”
O medo é justificado. Na última semana, a prefeitura de Mutum, na região mineira do Rio Doce, confirmou 23 novos casos de Covid-19 em 24 horas. Dos contaminados, 22 são funcionários de uma empresa de transmissão de energia que opera em Minas e Espírito Santo.
Com atendimento de saúde precário, a região do Vale das Cancelas conta com apenas uma Unidade Básica de Saúde que, até o começo do ano, estava sem médicos. Os leitos de UTI mais próximos ficam a mais de 100 quilômetros do território geraizeiro.
“As comunidades, como são desassistidas, praticaram o auto-isolamento desde o começo da pandemia”, afirma Nenzão. “Ainda não tivemos suspeita”.
Após a operação policial, no domingo (31/05), a comunidade posicionou cercas e placas, tentando impedir a entrada dos funcionários no território e reduzir a exposição ao novo coronavírus.
Mas o aviso não foi respeitado pela empresa, que quebrou a barreira e atirou os objetos à beira da estrada de terra que dá acesso às casas e hortas.
O conflito da Mantiqueira com as comunidades do Vale das Cancelas, se estende desde 2018, quando, sem consulta prévia, fincou centenas de torres de energia no território geraizeiro. Em julho de 2019, o observatório relatou uma das invasões conduzidas pela empresa: “Território de comunidades geraizeiras em Minas é invadido por transmissora de energia”
Segundo Soares, ao requerer o licenciamento ambiental da obra junto ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a Mantiqueira não reportou a existência das comunidades:
– O Ibama só descobriu que tinha comunidades tradicionais ali porque na visita de campo para verificar o andamento das obras e cumprimento das condicionantes, o filho de dona Vicença [geraizeira que vive na área reclamada pela fazenda Buriti Pequeno] comunicou que ali existia um conflito. Aí que o Ibama foi se inteirar do que estava acontecendo e determinou que a empresa fizesse um novo diagnóstico para determinar os impactos que o empreendimento vai gerar.
“Enquanto as reuniões estão suspensas, a empresa investiu várias vezes contra a comunidade para continuar as obras”, explica Nenzão. Ele conta que a empresa entrou com força policial, com ordem judicial. “Agora estamos tentando rever isso. Solicitamos ajuda à Defensoria Pública e à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa para tentar sensibilizar o juiz sobre a saúde das pessoas e retomar o diálogo”.
Com base na denúncia dos geraizeiros, a Coordenação-Geral de Licenciamento Ambiental do Ibama expediu na última quinta-feira (04) um despacho solicitando à Mantiqueira que se abstenha de continuar com as “atividades de instalação e lançamento de cabos na área dos geraizeiros, enquanto persistir a situação de calamidade no estado de Minas”. O documento autoriza a empresa a continuar desenvolvendo o diagnóstico de forma remota. Segundo os geraizeiros, as invasões continuam.
A Mantiqueira é controlada pela gestora canadense Brookfield, dona de US$ 26 bilhões em ativos e 269 mil hectares somente no Brasil, colocando-a entre os três fundos de investimento com mais terras no país, segundo levantamento do Chain Reaction Research.
Em maio de 2019, o Deter Cerrado (Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real) identificou o desmatamento de 954 hectares em uma das fazendas ligadas à multinacional canadense, em Balsas (MA). Entre 2000 e 2017, de acordo com a Chain Reaction, a Brookfield desmatou um total de 13.746 hectares no Cerrado, cujos “Gerais” dão origem à expressão pela qual os camponeses de lá se reconhecem: geraizeiros.
O início repentino das obras não causa danos apenas aos geraizeiros. Na última terça-feira (02), o montador Lucenildo Salustiano de Lima, 34 anos, funcionário da Cymy do Brasil Projetos e Serviços Ltda, terceirizada pela Mantiqueira para realização as obras, morreu em um acidente ao cair de uma torre de transmissão de 45 metros de altura, instalada em outra fazenda, a São Lourenço.
Segundo o boletim de ocorrência, o supervisor das obras e o encarregado pelos equipamentos deixaram o canteiro de obras injustificadamente, logo após o acidente, e não foram encontrados no escritório da empresa. De acordo com uma das testemunhas, o material disponibilizado para a vítima “não era apropriado para aquele tipo de serviço”. Salustiano vivia em Goiana (PE).
| Bruno Stankevicius Bassi é repórter e coordenador de projetos do De Olho nos Ruralistas |
Foto principal: Placas destruídas por funcionários terceirizados da Mantiqueira