Território de comunidades geraizeiras em Minas é invadido por transmissora de energia

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Empresa pertencente à gestora canadense Brookfield instalou torres de transmissão à revelia dos camponeses e quilombolas que vivem na região; obra tem 195 km de extensão e abrange oito municípios

Por Priscilla Arroyo

No norte de Minas Gerais, a região de Cerrado é denominada apenas por “Gerais”. É essa abreviação, típica dos mineiros, que dá origem à expressão pela qual os camponeses de lá se reconhecem: geraizeiros. São cerca de 20 mil pessoas vivendo em uma área de 228 mil hectares. Desde meados do ano passado, esse território, cuja história guarda sucessivos períodos de resistência a grileiros e ao avanço das monoculturas de eucalipto, está sendo novamente invadido. Agora por uma empresa do setor de infraestrutura.

Controlada pela gestora canadense Brookfield – dona de US$ 26 bilhões em ativos somente no Brasil -, a Mantiqueira Transmissora de Energia fincou centenas de torres de energia no território ocupado pelas comunidades geraizeiras para construção da Linha de Transmissão (LT) Janaúba-Araçuaí, projeto arrematado em um leilão da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), em 2015.

A obra tem 195 quilômetros de extensão e perpassa oito municípios mineiros: Berlilo, Virgem da Lapa, Coronel Murta, Josenópolis, Grão Mogol, Riacho dos Machados, Porteirinha e Janaúba, onde serão instaladas 390 torres. Além dos geraizeiros, oito comunidades quilombolas serão afetadas pelo empreendimento.

Cada torre fincada no solo significa 40 metros quadrados de Cerrado nativo devastado e mais 70 metros quadrados de área de segurança, onde é proibida a circulação de pessoas e animais. Além de usurpar parte dos territórios tradicionais, a obra desmata áreas para abrir estradas que permitam a colocação e a manutenção da rede. “A Mantiqueira entrou no nosso território sem nos consultar”, conta o líder geraizeiro Adair Pereira, que vive no acampamento Alvimar Ribeiro dos Santos, na Fazenda Buriti/São Lourenço, a cerca de um quilômetro das torres, no município de Grão Mogol.

Mantiqueira Energia instala torre em Grão Mogol. (Foto: MAB)

Para se defender da violação, os camponeses recorreram ao Ministério Público de Minas Gerais. Conseguiram uma reunião com a empresa em abril. “Na ocasião, pedimos esclarecimentos sobre as obras e algum tipo de contrapartida por abrigar as torres nas nossas terras, mas não tivemos resposta”, diz Adair. “Estão nos enrolando”. 

Sem conseguir manter diálogo com a Mantiqueira Transmissora de Energia, os geraizeiros do Território de Vale das Cancelas, que compreende os municípios de Grão Mogol, Padre Carvalho e Josenópolis, protocolaram, no dia 17 de junho, uma denúncia no Ministério Público Federal. O documento aponta irregularidades no processo de licenciamento ambiental, que foi elaborado por um Relatório Ambiental Simplificado (RAS). O correto seria a produção de um Estudo de Impacto Ambiental, obrigatório em territórios onde há intervenção em terra indígena e quilombola.

Um dos argumentos da companhia para justificar a elaboração do RAS é que a licença ambiental para a obra foi concedida em 2016, quando os geraizeiros ainda não tinham certificação das terras, documento emitido somente em 2018 pelo governo de Minas Gerais. Aqui entra a segunda parte da história: o fato de as comunidades não terem escritura das terras incentivou a Mantiqueira a ignorá-los. 

“A empresa adota uma estratégia para ter sempre o menor custo”, diz um especialista ligado à luta dos camponeses que pediu para não ser identificado. “Se ela não reconhece as comunidades, não precisa indenizá-las”.

DEPUTADO NEWTON CARDOSO JR EXPLORA EUCALIPTO NA ÁREA 

O território dos geraizeiros que vivem em Grão Mogol e Josenópolis foi reconhecido pelo poder público apenas em junho do ano passado, com a emissão do certidão de autodefinição da área. Mas a luta travada pelos camponeses na região é mais antiga, do começo do século 20. Essa população de descendentes de escravos foi sendo expulsa gradativamente, à medida que as elites locais começaram a titular como privadas as “terras livres dos Gerais”. 

Newton Cardoso Júnior (esq.) no lançamento da Frente Parlamentar da Silvicultura. (Foto: Reprodução)

Muitas empresas confiscaram indevidamente esse espaço, apossando-se de propriedades arrendadas com contratos já vencidos. Um exemplo é a Rio Rancho Agropecuária, produtora de eucalipto pertencente ao ex-governador e ex-deputado federal Newton Cardoso – conhecido por Newtão – e seu filho Newton Cardoso Júnior, deputado federal (PMDB-MG), cordenador da Frente Parlamentar Mista Nacional da Silvicultura, que congrega o lobby das empresas do setor madeireiro no Congresso, e autor do projeto de lei 6411/2016, que propõe acabar com a necessidade de licenciamento ambiental prévio para áreas de reflorestamento – o que beneficia diretamente seu negócio de plantio de eucalipto.

A Rio Rancho registrou, em 2003, 14 propriedades em Grão Mogol e Josenópolis, mas esses registros não constam no cadastro do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Outras 12 fazendas com cadastro ativo no Incra possuem indícios de irregularidades, conforme destaca a tese de doutorado da pesquisadora Sandra Helena Gonçalves Costa, no programa de Geografia Humana da Universidade de São Paulo (USP). Um exemplo é a Fazenda Veredão, no município de Berizal, com 238 hectares, mas cuja área registrada é de 7.780 hectares. O dono dessas propriedades é Newtão, o pai, latifundiário confesso. Em 2009 ele disse à imprensa que detinha patrimônio de R$ 2,5 bilhões e possuía 145 fazendas – embora, em 2010, tenha declarado apenas R$ 77,9 milhões ao Tribunal Superior Eleitoral.

Somente no município de Grão Mogol existem ao menos outras seis companhias na mesma situação da Rio Rancho. Para defender o território, os geraizeiros adotaram a estratégia de manter acampamentos em algumas dessas propriedades. Cerca de 180 famílias se dividem em ocupações nas fazendas Batalha, de Newtão; Buriti, pertencente à Floresta Empreendimentos; e São Francisco, que abriga instalações da Floresta Rio Doce, antiga controlada da mineradora Vale

TORRES AFETAM ÁREA DE CULTIVO DOS QUILOMBOLAS

Áreas são desmatadas para a instalação das torres e para plantações de eucaliptos. (Foto: Gui Gomes/Repórter Brasil)

Oito quilombos são afetados por parte da obra de colocação das torres de transmissão da Mantiqueira Transmissora de Energia, que está em fase final. Trata-se de uma comunidade de 2 mil pessoas habitando 12 mil hectares nos municípios de Berilo e Virgem da Lapa, por onde passam 50 quilômetros de fios.   

“Isso descaracteriza o nosso lugar”, afirma José Mauro Gonçalves Pereira, líder quilombola que representa as comunidades de Capim Puba e Campinho. “Não podemos plantar na faixa de servidão das torres, que é de 70 metros quadrados cada uma, e são mais de cem”, diz. Durante o processo de desmatamento, parte das plantas usadas na produção de medicamentos foram extirpadas. 

Mesmo diante das violações, os quilombolas optaram por manter uma relação cordial com a Mantiqueira Energia. “Em novembro de 2017, quando a empresa começou a colocar as torres, fomos aconselhados pelo Ministério Público a dialogar, até porque eles estão operando com licença ambiental”, diz Gonçalves, que critica a atuação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais e Renováveis (Ibama) na região. “Só consideram fauna e flora, não reconhecem as populações que vivem aqui”. 

A companhia contratou a Dossel Consultoria Ambiental para prover informações e manter contato com as comunidades. Há cerca de dois meses, prometeram aos quilombolas fazer algumas benfeitorias, como um poço artesanal. “Já se passaram dois meses desde a conversa e nada, são só promessas”, diz Gonçalves. 

BROOKFIELD É 3ª EMPRESA ESTRANGEIRA QUE MAIS DETÉM TERRAS

O Brasil figura entre os cinco países que mais vendem terra para estrangeiros, junto à Rússia, Indonésia, Ucrânia e Papua-Nova Guiné. Esse fenômeno de apropriação de grandes parcelas de território pelo capital internacional é chamado de land grabbing. Tal dinâmica se potencializou depois da crise financeira de 2008, quando os principais fundos de investimento internacionais passaram a adquirir mais territórios agrícolas de nações em desenvolvimento. O mercado considera um cenário de escassez, no qual companhias que detiverem nascentes de água e solo para produzir alimento trarão bons retornos financeiros aos acionistas.

De acordo com relatório da Chain Reaction, dez empresas de investimento estrangeiras controlam pelo menos 1,2 milhão de hectares de terras agrícolas no Brasil. A gestora canadense Brookfield, por meio da subsidiária brasileira Brookfield Brasil, é a terceira dessa lista e detém 269 mil hectares, área aproximada do país europeu Luxemburgo. A maior parte desse território, equivalente a 168 mil hectares, está localizado na região de Matopiba – que compreende os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia – e são administradas por duas acionistas da companhia: Brookfield Asset Management e Brookfield Agriculture Group que, em 2015, captaram US$ 144 milhões de fundos de pensão do Oregon e do Novo México para compra de terras no Brasil.

Na lista das estrangeiras, a Brookfield fica atrás somente da gestora americana Nuveem, controlada pelo fundo de pensões americano TIAA, um dos maiores do mundo, com cerca de US$ 1 trilhão em patrimônio – com 299 mil hectares; no terceiro lugar figura o fundo de dotação da universidade americana Harvard, dono de 294 mil hectares.

Em maio, o Deter Cerrado (Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real) identificou o desmatamento de 954 hectares na Fazenda Nebraska, no município de Balsas (MA). A propriedade está em nome da Guabiju Agronegócio Ltda, pertencente à multinacional canadense. Entre 2000 e 2017, segundo dados da Chain Reaction, a Brookfield desmatou um total de 13.746 hectares no Matopiba.

Foto principal: Gui Gomes/Repórter Brasil

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