Pandemia já atingiu seis quilombos da região onde cresceu Jair Bolsonaro, inimigo dos povos tradicionais; monitoramento nas comunidades e ações autônomas são alternativas à falta de oferta de serviços essenciais pelo poder público
Por Márcia Maria Cruz
Sem a efetivação de políticas públicas para a prevenção e tratamento da Covid-19 nos territórios quilombolas, as comunidades do Vale do Ribeira — a região no sul do estado de São Paulo onde cresceu o presidente Jair Bolsonaro — assumiram para si a responsabilidade de fazer o levantamento de casos e propor ações para barrar o avanço do novo coronavírus na região.
No primeiro boletim epidemiológico, divulgado na última quinta-feira (06), foram identificados trinta casos de Covid-19 nos territórios quilombolas do Vale do Ribeira. Os casos começaram na segunda quinzena de julho e foram registrados nas comunidades Ivaporunduva (14), Nhunguara (7), Poça (2), Piririca (2), Morro Seco (4) e Peropava (2).
Quilombos como o Ivaporunduva restringiram em março o acesso à comunidade. No dia 29 de julho a primeira-dama do estado de São Paulo, Bia Doria, esteve em algumas comunidades entregando cestas básicas, máscaras, álcool em gel e até cobertores. Com direito a fotos em seu Instagram.
Em todo o país, a doença contaminou mais de 4 mil quilombolas e matou 148, de acordo com boletim publicado pela Conaq no dia 07 de agosto. Os quilombos paulistas ainda não têm registrada nenhuma morte por Covid-19.
Localizado no extremo sul de São Paulo, na divisa com o Paraná, o Vale do Ribeira concentra o maior número de quilombos do estado. De acordo com a Eaacone, são 33 comunidades reconhecidas, com mais de 4 mil habitantes. É também a mais pobre entre as regiões administrativas do estado: dos 25 municípios paulistas com menor índice de desenvolvimento humano (IDH), sete estão no Ribeira.
Essa situação se reflete no acesso ao saneamento, uma das principais barreiras de contenção ao avanço do coronavírus, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). “As comunidades têm dificuldade no acesso à água”, afirma Rafaela Eduarda Miranda Santos, advogada da Eaacone e moradora da comunidade de Porto Velho. “Não recebemos a água da Sabesp. Pegamos água nos córregos”.
Para os que adoecem, a situação é ainda pior. Algumas comunidades estão a quatro horas do leito de UTI mais próximo, em hospitais que, em boa parte, já se encontram colapsados. “Quando a comunidade tem instalado um posto de saúde, o atendimento é realizado a cada quinze ou trinta dias”, diz Rafaela. “Em outras, as pessoas se deparam com a dificuldade para chegar ao centro de saúde”.
A área ocupada pelos quilombos no Ribeira está localizada sobre a bacia hidrográfica do Rio Ribeira do Iguapé. Por isso a mobilidade entre os territórios e os centros urbanos precisa, muitas vezes, ser realizada por balsas que não passam por processos de desinfecção. “Se a pessoa não estiver contaminada, se contamina na locomoção”, critica Rafaela.
Devido ao aumento de casos e internações, em junho o governo do estado retrocedeu o cronograma de quinze cidades do Vale do Ribeira, pertencentes ao Departamento Regional de Saúde de Registro, que retornaram à fase 1 do plano de flexibilização das atividades no estado de São Paulo, onde ficam permitidos apenas os serviços considerados essenciais.
Nilce Pereira dos Santos, da coordenação da Conaq, atribui o avanço do coronavírus nos quilombos à invisibilidade dessas comunidades:
— O enfrentamento à pandemia tem sido desafiador. As comunidades já passaram e vem passando por processo de invisibilidade por parte dos órgãos do poder público e nesse momento de isolamento social não é diferente. Nós não temos tido acompanhamento médico nas comunidades quilombolas como deveria ser. Em quase todas as comunidades temos suspeitas de casos, mas não existe comprovação porque não há teste.
A baixa quantidade de testes disponíveis na região torna os diagnósticos oficiais imprecisos. É o caso do Quilombo Ribeirão Grande Terra Seca, no município de Barra do Turvo. “Aqui só pode fazer o teste se a pessoa estiver com os sintomas”, diz Nilce, moradora da comunidade. “Não temos acesso a informação concreta, fica difícil saber se está ou não contaminado. Em se tratando da Covid, estamos à mercê da sorte”.
Coordenador nacional da Conaq, Denildo Rodrigues de Moraes, o Biko, viu a doença contaminar a prima e a ex-cunhada na comunidade de Ivaporunduva, em Eldorado. “O quilombo é uma família”, afirma. “As casas têm poucos espaços privativos. Então, quando se fala em doze casos confirmados, sabemos que é mais”.
Localizada no extremo sul de São Paulo, na divisa com o Paraná, a região do Vale do Ribeira concentra o maior número de quilombos do estado. Ao todo, são 33 comunidades, com 1.573 famílias e 4.602 habitantes, de acordo com a Eaacone.
O processo de ocupação dos territórios começou no século 19, com a chegada de Bernardo Furquim e Rosa Machado que, junto a outros descendentes de africanos escravizados, estabeleceram as primeiras comunidades da região. Segundo a memória oral, Furquim viera em busca do pai, trazido para o Ribeira para trabalhar na exploração de ouro.
A região também é o berço da família de Jair Bolsonaro. Antes de entrar para as Forças Armadas, o líder da extrema direita passou boa parte de sua infância e adolescência no Ribeira, onde ainda moram alguns de seus irmãos e sobrinhos. Em abril de 2017, durante uma palestra no Clube Hebraica, no Rio, ele chegou a relatar uma suposta visita a um quilombo no município de Eldorado:
— Quilombolas é outra brincadeira. Eu fui num quilombola [sic] em Eldorado Paulista. Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Acho que nem pra procriador serve mais.
A afirmação rendeu a Bolsonaro uma denúncia na Procuradoria-Geral da República por crime de racismo, mas foi arquivada pelo Supremo Tribunal Federal em 2018, considerando que a liberdade de expressão e, principalmente, a imunidade parlamentar lhe livravam de responder criminalmente pelas declarações. Como mostrou a reportagem do De Olho nos Ruralistas, Bolsonaro mentia: “Quilombolas de Eldorado dizem que Bolsonaro nunca os visitou“.
O mesmo não vale para seus familiares. Casado com uma das irmãs de Bolsonaro, Vânia, o empresário Theodoro da Silva Konesuk foi condenado em 10 de setembro de 2018 a devolver uma área pertencente aos remanescentes do quilombo do Bairro Galvão, em Iporanga, município vizinho de Eldorado. Segundo quilombolas, mesmo com a decisão, Konesuk continuou invadindo as terras e destruiu suas plantações: “Cunhado de Bolsonaro é condenado por invasão de quilombo no Vale do Ribeira“.
Essa ligação de Bolsonaro com o Ribeira continuou após a eleição. Na reunião ministerial de 22 de abril, cujo vídeo foi divulgado pelo ministro Celso de Melo, do Supremo Triunal Federal (STF), o presidente fez menção a uma medida que teria sido revogada pelo Ministério da Agricultura, beneficiando produtores da região. Como mostrou o observatório, tratava-se da Instrução Normativa nº 13, que revogou duas instruções anteriores para permitir a pulverização aérea de plantações de banana até 250 metros de distância de bairros, cidades, vilas e povoados. A distância mínima anterior era de 500 metros: ““Populações receberão chuva de agrotóxicos em suas cabeças”, diz Greenpeace sobre novos limites na pulverização de bananas“.
As barreiras sanitárias e o isolamento dos territórios são medidas eficazes para impedir o avanço da Covid-19. No entanto, a falta de titulação de muitos eles impede que os líderes possam determinar as medidas de fechamento da comunidade a quem vem de fora.
“Muitas comunidades não possuem títulos de suas terras, o que implica na presença de terceiros”, explica a advogada da Eaacone, Rafaela Eduarda Miranda Santos. Segundo ela, são comuns os relatos de turistas que não respeitam a determinação das comunidades de permanecerem em quarentena.
No Quilombo de Porto Velho, comunidade de Rafaela, o conflito se dá com uma empresa que atua na área, que leva diariamente trabalhadores externos até o território. A advogada destaca que, sem a titulação, as comunidades não podem determinar a saída dessas pessoas.
— As comunidades estão vulnerabilizadas por consequência do racismo institucional. Não possuem o título, domínio efetivo. Não têm saneamento básico. Não tem nem água no território para utilizar.
Boa parte das comunidades também não possui acesso aos serviços de telefonia e internet e, quando têm, o sinal é ruim. Com isso, atividades como o ensino à distância e a articulação interna para conter o avanço da doença no território tornam-se mais difíceis. A falta de internet tem também obrigado quilombolas a se dirigir às cidades para solicitar o auxílio emergencial, aumentando as chances de contrair o coronavírus.
“Há uma total ausência de políticas públicas do Estado brasileiro para os povos e comunidades tradicionais”, relata o professor Luiz Marcos de França Dias, do Quilombo São Pedro. “Se você observar a região do Vale do Ribeira, boa parte não tem cobertura de telefonia celular. Só vai ter cobertura de telefonia móvel e internet nos centros urbanos. Afastou do centro urbano você não vai ter mais cobertura”.
Luiz Marcos pertence à quinta geração da linhagem de Bernardo Furquim. Ele leciona na Escola Estadual Maria Chules Princesa, localizada no Quilombo André Lopes, que atende estudantes sete comunidades quilombolas do entorno sem qualquer acesso à internet.
Em meio à pandemia, a advogada Rafaela Santos denuncia que projetos têm sido aprovados sem que haja consulta às comunidades. É o que vem ocorrendo com a implementação do programa Vale do Futuro, que o governo de São Paulo define como “um megaprojeto de políticas públicas para impulsionar ações de curto, médio e longo prazo de desenvolvimento econômico e social”.
O programa prevê R$ 1 bilhão em investimentos públicos e atração de mais R$ 1 bilhão em recursos privados em ações que serão implementadas até 2022. As comunidades também não foram consultadas em relação ao Programa de Regularização Ambiental (PRA), criado em 2015 pelo governo de São Paulo.
Rafaela aponta que, sem consultar a comunidade, esses programas têm impactos negativos para os territórios quilombolas. “São muitas as medidas administrativas, que estão passando, que afetam negativamente às comunidades, que não foram consultadas”, conclui a advogada.
| Márcia Maria Cruz é jornalista |
Foto principal (Sesc): que palavras giram em torno da resistência quilombola ao avanço da pandemia?
|| A cobertura do De Olho nos Ruralistas sobre o impacto da pandemia nas comunidades quilombolas tem o apoio da Fundo de Auxílio Emergencial ao Jornalismo da Google News Initiative ||
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