O cacique Crídio Medina passou duas noites na delegacia de Terra Roxa (PR), sob a acusação de levar comida não levada por colheitadeira; os Guarani dizem que crianças colhiam o excedente da produção de uma fazenda ao lado para consumo próprio
Por Mariana Franco Ramos
O cacique Avá Guarani Crídio Medina, da aldeia Ywyraty Porã, localizada no município de Terra Roxa, no oeste do Paraná, foi preso na última quarta-feira (26) acusado de furtar espigas de milho de uma propriedade vizinha da comunidade. Segundo o irmão do cacique, Laucídio Medina, de 38 anos, ele dormiu duas noites na delegacia e foi liberado apenas por volta das 14 horas da sexta-feira.
O delegado de Palotina, Pedro Lucena, que também responde por Terra Roxa, conta que os policiais foram até o local, a 630 quilômetros de Curitiba, após uma denúncia de um agricultor, que trabalha para o fazendeiro José Gaspar Nogueira, dono da lavoura. “Os índios estavam furtando milho da roça”, diz. “Nós agimos dentro da lei”.
De acordo com Laucídio, porém, crianças apenas pegaram as espigas que restaram no solo, não acessadas pela colheitadeira. As dez sacas colhidas seriam usadas para preparar avati ku’i (farinha) e para fazer o kangui e rora, bebida típica dos Guarani, que é produzida com milho maduro.
O proprietário chamou a polícia, que acusou Crídio de “acobertar o crime”. O cacique prestou depoimento, teve a prisão decretada e foi liberado dois dias depois mediante autorização do juiz, em audiência de custódia. Para líderes que atuam na região, houve crime sim, mas de racismo.
“Isso é um absurdo, não justifica a prisão de uma pessoa”, opina Osmarina Oliveira, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Sul. “A impressão é que se trata de perseguição”. Em nota, a organização também classificou a ação como um ato de crueldade, preconceito e abuso de autoridade:
— Os Guarani, que tiveram praticamente todas as terras roubadas e ninguém foi punido, agora são considerados criminosos por buscar sobras de alimentos. É um ato no mínimo covarde, num país em que autoridades são acusadas de rachadinhas e estão em liberdade, mas se torna crime quando um Guarani recolhe milho para se alimentar.
Morador da tekoa (aldeia, em guarani) há nove anos, Laucídio conta que sempre houve perseguição. “Muitas vezes o ruralista vem passar veneno aqui nas terras”, diz. “Ele já entrou aqui e falou um monte de coisas para nós”, acrescenta, em referência a Gaspar Nogueira. Segundo o líder indígena, os agentes foram igualmente truculentos:
— Vieram dois camburões e um paraguaio no meio. Não pediram autorização da liderança para entrar. Começaram a xingar o pessoal em guarani. Não deveriam fazer assim. Poderiam nos respeitar como seres humanos. Somos perseguidos desde muito tempo, de toda forma.
Conforme o irmão do cacique, o próprio fazendeiro tem o costume de pagar crianças e mulheres para que colham o excedente da produção. “Mandam catar o milho e a soja e depois pagam R$ 4 num saco cheio, às vezes R$ 3”, relata. “A gente faz porque precisa, para ganhar algum dinheiro ou para consumo”. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) proíbe qualquer trabalho a menores de 14 anos.
Ele diz ainda que a comunidade, de setenta famílias, está muito abalada com toda a situação. Em virtude da pandemia de Covid-19, ninguém está autorizado a sair da aldeia para trabalhar. Os indígenas são considerados grupo de risco e estão isolados. Muitos ali vendiam artesanato e faziam pequenos serviços na cidade, como forma de garantir alguma renda. “Nesse tempo fica todo mundo parado, para evitar a doença”, conta.
Conforme o delegado Pedro Lucena, não havia criança quando a polícia chegou. “Eram adultos, que se enfiaram na mata”, relata. “É aquele negócio: o índio não está acima da lei”. Questionado se houve discriminação, ele respondeu que não: “Muito pelo contrário. Esses índios deitam e rolam aqui. Eles pegam as vacas, cortam vivas as paletas… Tem um monte de ocorrência de furto. Só que entram na aldeia e ninguém vê quem é”.
Osmarina lembra que essa não é a primeira vez que os Avá Guarani são injustamente acusados de cometer um crime. Em 2018, cinco indígenas da tekoha Mokoi Joegua, no município de Santa Helena, nas imediações do Parque Nacional do Iguaçu, foram presos por cortar três pedaços de bambu numa área de proteção ambiental. Em carta endereçada ao Ministério Público Federal (MPF) na época, eles relataram que sofreram uma série de humilhações e agressões.
No caso de Terra Roxa, o Cimi-Sul solicitou que o MPF e o Ministério Público Estadual (MPE) intervenham e investiguem a ocorrência de racismo e de abuso de autoridade. A reportagem do De Olho nos Ruralistas não conseguiu contato com o dono da fazenda.
| Mariana Franco Ramos é repórter do De Olho nos Ruralistas |
Foto principal (Reprodução): máquinas jogando agrotóxicos ao lado da aldeia Guarani
|| A cobertura sobre segurança e soberania alimentar durante a pandemia tem o apoio da Fundação Heinrich Böll Brasil ||