Agentes de saúde e políticos foram responsáveis pela transmissão; segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), 158 povos foram atingidos pela pandemia, com 32 mil casos e 808 vítimas fatais; 27% dos registros de óbitos não informam a etnia
Por Poliana Dallabrida
A pandemia do novo coronavírus já vitimou 807 indígenas de 158 etnias. Quase um a cada quatro indígenas mortos em decorrência da Covid-19 pertenciam aos povos Xavante, Kokama e Terena. As três etnias somam 180 óbitos, 22,3% do total de indígenas mortos até o início da semana. Em 27% dos casos registrados não há informação sobre a etnia do indígena morto pelo novo coronavírus.
Segundo a Sesai, o número de indígenas mortos pela Covid-19 é de 421. Pouco mais que a metade do total divulgado pela Apib. Os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) com maior número de óbitos são o DSEI Mato Grosso do Sul, DSEI Leste de Roraima e DSEI Xavante, com 53, 41 e 40 óbitos, respectivamente. A última atualização dos dados da Sesai ocorreu na última quarta-feira (16).
Desde março, a pandemia já atingiu 51,8% do total de etnias identificadas no Brasil. O número total de povos indígenas no país, segundo o Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é de 305. Entre as etnias mais populosas, três reúnem o maior número de mortos.
O povo Xavante é o mais afetado pela pandemia. A etnia já registra 68 mortes na plataforma da Apib e 40 de acordo com a Sesai, que não inclui na contagem os indígenas que vivem fora de aldeias. Cerca de 22,2 mil indígenas Xavante vivem no Mato Grosso. O estado registra 108,8 mil casos e 3,1 mil mortes.
Isso significa uma mortalidade de 90,6 mortos a cada cem mil habitantes, segundo dados atualizados na última quarta-feira (16) pelo Ministério da Saúde. A taxa de mortalidade a cada 100 mil indígenas Xavante é 306,3 — mais de três vezes, portanto, que aquele identificado entre a população total do estado.
Ainda em maio, a Operação Amazônia Nativa (Opan) publicou um estudo sobre a vulnerabilidade do povo Xavante à pandemia e fez recomendações ao poder público. O atendimento de saúde precário era a principal preocupação presente no relatório. Segundo dados do DSEI Xavante analisados pelo estudo da Opan, somente 8,5% das aldeias possuem uma Unidade Básica de Saúde Indígena (UBSI).
Na região, cada polo base atende cerca de 3,5 mil indígenas, a maior relação entre os distritos sanitários do Mato Grosso. No total, o estado possui seis distritos de saúde indígena. Existem nove territórios do povo Xavante no Mato Grosso, a etnia mais numerosa do estado, que abriga um total de aproximadamente 55 mil indígenas.
A Terra Indígena (TI) Marãiwatsédé, entre os municípios de Alto Boa Vista, São Feliz do Araguaia e Bom Jesus do Araguaia, é especialmente vulnerável à pandemia. Além do atendimento de saúde insuficiente, a área é cruzada pelas rodovias BR-158, BR-242 e MT-424, o que aumenta o fluxo de pessoas na região. É também comum o trânsito de indígenas Xavante entre os municípios no entorno da TI.
Nem todos os Xavante respeitaram a orientação de isolamento nas aldeias. Entre 09 e 11 de maio, um torneio de futebol com onze times foi organizado na Aldeia Namunkurá, na TI São Marcos, no município de Barra do Garças. Cerca de mil pessoas participaram do evento, que contou com a presença de políticos da região.
A morte de um bebê de oito meses da TI Marãiwatsédé no dia 11 de maio foi o primeiro óbito por Covid-19 entre indígenas no Mato Grosso. A primeira vítima Xavante era neto de Damião Paridzané, cacique geral da TI Marãiwatsédé. Ele contou à Rede Brasil Atual que a população indígena ficou desassistida e que precisou percorrer os hospitais e unidades de saúde da região para conseguir atendimento especializado.
Apenas no dia 27 de julho a Sesai, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Ministério da Defesa organizaram uma ação em conjunto nos territórios indígenas de Mato Grosso. Damião Paridzané e outros caciques do estado recusaram o atendimento e não permitiram a entrar dos militares nos territórios por não concordarem com a quebra do isolamento, com a distribuição de cloroquina aos indígenas e com a demora no atendimento.
Damião e outros líderes indígenas podem ser responsabilizados pelo Ministério Público Federal de Mato Grosso (MPF-MT) por terem se recusado a receber a “Missão Xavante”. O procurador da República Everton Pereira Aguiar Araújo quer que os indígenas “assumam sua responsabilidade” pelas consequências do impedimento às ações de saúde do governo federal, “inclusive eventos de morte de parentes e amigos”.
Segundo a Funai, a “Missão Xavante” durou até o dia 16 de agosto, atendendo a mais de 2 mil indígenas das etnias Xavante e Bororo. Foram entregues 6,8 mil medicamentos. A assessoria do órgão não especifica quais.
O presidente da Funai, Marcelo Xavier, aproveitou a ida ao estado para assinar um acordo de intenções para a produção agrícola em terras indígenas com o governador Mauro Mendes (DEM) e se encontrou com fazendeiros, como narrou o observatório: “Presidente da Funai vai ao Mato Grosso e prefere se encontrar com ruralistas“.
Segunda etnia mais afetada, os Kokama já perderam 58 indígenas desde o início da pandemia, segundo a Apib. Na contagem da Sesai, o DSEI da região do Alto Rio Solimões, no Amazonas, onde vive a maior parte dos Kokamas no país, registra 35 mortes. Os Kokama também vivem em Manaus, onde o Ministério da Saúde registra apenas onze mortes, e no Vale do Javari, que contabiliza duas mortes. Em ambos os distritos sanitários não há informações sobre as etnias dos indígenas mortos em decorrência do novo coronavírus.
Os municípios amazonenses de Manaus e Tabatinga, este na fronteira com Colômbia e Peru, concentram 68,9% das mortes de indígenas Kokama, de acordo com a Apib. No estado, o número total de infecções chegou a 128,8 mil casos e 3,9 mil óbitos na última quarta-feira (16).
A taxa de mortalidade a cada 100 mil habitantes no Amazonas é de 94,6. Ao se considerar a população indígena Kokama no Amazonas em 14,3 mil habitantes, a taxa de mortalidade na etnia é de 405,5 a cada 100 mil habitantes, um índice 328,6% maior que entre a população geral do estado.
O primeiro caso de Covid-19 entre indígenas no Brasil foi registrado entre a etnia Kokama no dia 25 de março, no município amazonense de Santo Antônio do Içá, na região do Alto Rio Solimões. Uma jovem de 20 anos do povo Kokama foi contaminada após ter contato com um médico que veio de São Paulo e estava a serviço da Sesai. O médico contaminado havia feito atendimento no DSEI Alto Rio Solimões no dia 19 de março.
No dia 03 de maio, já eram 59 casos confirmados de Covid-19 no distrito sanitário. De Olho nos Ruralistas estava atento a uma movimentação muito peculiar do governo federal: “Agentes de saúde indígena contaminados colocam em xeque política do Ministério da Saúde“.
No começo de junho, um enfermeiro, dois técnicos de enfermagem e um agente de combate a endemias não-indígenas que atendem no DSEI Vale do Javari, no oeste do Amazonas, testaram positivo para Covid-19. O caso também foi noticiado pelo De Olho nos Ruralistas: “Alerta: profissionais da saúde contaminam-se no Vale do Javari, região de povos isolados“. O distrito sanitário atende indígenas de sessenta aldeias, incluindo povos de recente contato e indígenas Kokama.
Eladio Kokama Curico, líder do povo Kokama no Amazonas, afirma que a pior fase da pandemia já passou, mas que a comunidade ainda se recupera dos traumas. “Nós passamos dezesseis dias que nunca pensamos em passar na vida”, relembra. “O mês de março foi um pesadelo para nós aqui. Foram dezesseis dias enterrando entes queridos”.
Entre eles está Messias Kokama, líder do Parque das Tribos, maior bairro indígena do país, na capital do Amazonas: “Memórias da Pandemia — Messias Kokama: um cacique de muitos povos“.
O De Olho nos Ruralistas divulgou, no dia 07, uma lista com cem indígenas mortos por Covid-19 no Brasil, entre eles Messias e vários outros membros da etnia Kokama. Um dos objetivos foi mostrar o rosto dessas vítimas, no sentido de ajudar a tirá-la do anonimato. Confira abaixo e na seguinte reportagem: “Estas são as faces de 100 indígenas mortos por Covid-19 no Brasil“.
Em maio, Eladio e outros dois líderes do povo Kokama, Glades Kokama Rodrigues e Edney Kokama Samias, divulgaram uma nota em que denunciavam a negligência no atendimento aos indígenas nas cidades e a omissão do poder público no combate ao avanço da pandemia.
O observatório também contou essa história, no início de maio: “Povo Kokama pede socorro e diz que mortos pela Covid-19 estão sendo registrados como pardos“. “O sistema de saúde público encontra-se sobrecarregado e sem os equipamentos necessários para responder à demanda de casos confirmados por este vírus”, dizia trecho da nota.
O líder Kokama afirma que os indígenas passaram a optar pelo tratamento da doença nas próprias aldeias depois de tentativas frustradas de atendimentos nos hospitais: “A nossa esperança era hospital e UPA, mas quem foi para lá, não voltou com vida”. Eladio Kokama Curico vive na Aldeia Sapotal, no município de Tabatinga.
“O pessoal começou a fazer a cura com nossas plantas medicinais”, relata. “Começamos a curar as pessoas na casa mesmo”. Entre as medicinas tradicionais adotadas pelos indígenas estão rituais com Ayahuasca, como relatou o Mongabay. “A doença foi curada nas aldeias”, completa Eladio.
A etnia Terena registra 54 mortes, segundo a Apib, e é a terceira mais afetada pela pandemia. Cerca de 26 mil indígenas Terena vivem no país. A maior parte está no Mato Grosso do Sul, em territórios indígenas cercados por fazendas e próximos a centros urbanos. O DSEI Mato Grosso do Sul registra 53 mortes de indígenas, sem especificar a etnia. O DSEI Mato Grosso do Sul é o que contabiliza o maior número de mortos em decorrência do novo coronavírus.
Segundo dados do Ministério da Saúde, o Mato Grosso do Sul — uma das últimas fronteiras do avanço da pandemia no Brasil — registra 60,9 mil casos e 1,1 mil mortes por Covid-19, segundo boletim divulgado na última quarta-feira.
A taxa de mortalidade a cada 100 mil habitantes no estado é de 40,4. Ao se considerar a população Terena no estado de Mato Grosso do Sul em 26 mil, a taxa de mortalidade para este grupo é de 207,6, o que representa um índice 413,8% maior que aquele da população geral do estado.
Na semana de 14 de julho, seis indígenas Terena morreram na Terra Indígena Taunay/Ipegue, em Aquidauana, no Mato Grosso do Sul. Duas semanas antes, representantes da comunidade haviam participado de uma cerimônia de início das obras de pavimentação da rodovia MS-442, no trecho que liga o distrito de Taunay à BR-262.
O De Olho nos Ruralistas fez, mais uma vez, em primeira mão, um registro da participação do poder público no avanço da pandemia em territórios indígenas: “Seis Terena morrem com sintomas de Covid-19 após inauguração de estrada com prefeito e deputados“.
O evento foi organizado pelo prefeito de Aquidauana, Odilon Ribeiro (PSDB) e contou com a presença de líderes líderes tucanos do estado, como os deputados federais Beto Pereira e Rose Modesto e o presidente da Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul (Alems), Paulo Corrêa.
O município de Aquidauana, uma das fronteiras, ao sul, do Pantanal, tem a maior taxa de mortalidade por Covid-19 no Mato Grosso do Sul: 102,3 óbitos a cada 100 mil habitantes.
A Reserva Indígena Dourados, no município ao sul do estado, abriga cerca de 17 mil indígenas das etnias Guarani, Guarani Kaiowá, Guarani Ñandeva e Terena. Os indígenas convivem com a crônica falta de água devido a sistemas de captação e distribuição de água obsoletos ou inexistentes: “Sem água e saneamento, indígenas de Dourados (MS) vivem o ‘apartheid da Covid’“.
O local também é foco da propagação do novo coronavírus. Segundo o cacique Gaudêncio Benites, da etnia Guarani e líder da Aldeia Bororó, os dez primeiros casos da doença na reserva vieram da fábrica JBS Foods Seara em Dourados, a 233 km da capital Campo Grande: “Contaminação em aldeia em Dourados (MS) começou na fábrica da JBS, diz cacique“.
Elvis Terena, membro do Conselho do Povo Terena e morador da TI Cachoeirinha, no município de Miranda, a 208 quilômetros de Campo Grande, afirma que a comunidade tentou se preparar por conta própria no início da pandemia. “Desde o começo nós nos preparamos para fazer barreiras sanitárias nas nova aldeias da terra indígena”, explica. “Infelizmente não conseguimos impedir que o vírus entrasse na nossa aldeia. E ele veio com tudo”.
O líder Terena explica que o trânsito de trabalhadores entre as cidades próximas, como Campo Grande e Sidrolândia, contribuiu para a expansão do vírus no território. Entre as atividades exercidas por indígenas da etnia Terena está o trabalho em um frigorífico em Sidrolândia. “Com a paralisação dos trabalhos no frigorífico [no início da pandemia], as pessoas voltaram para Cachoeirinha e começou a contaminação”.
| Poliana Dallabrida é repórter do De Olho nos Ruralistas |
Foto principal (Reprodução/Rede Globo): entre as etnias indígenas, povo Xavante tem maior número de mortes
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