Conheça a história de professores indígenas que morreram durante a pandemia

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Higino Tenório levava ideias de Paulo Freire para a Amazônia; Fausto Mandulão defendia uma escola com “o espírito indígena”; os povos originários veem na educação uma das formas de resistir à colonização e ao silenciamento de sua história milenar

Por Yago Sales

“Eu me chamo Higino Pimentel Tenório — é nome dos brancos. Nome do benzimento da minha alma segundo os costumes de nossos avós é Poani”. Foi assim que o professor da etnia Tuyuka, no Amazonas, se apresentou enquanto era gravado, em 2005, pelo padre Justino Sarmento Rezende, da mesma etnia, que queria saber mais sobre a sua história. O professor Paoni é um dos 791 indígenas que morreram em consequência da Covid-19 no país desde o início da pandemia, em março.

De Olho nos Ruralistas identificou, nos últimos meses, cem indígenas — com fotos — entre os que morreram por causa da pandemia e da política genocida do governo Bolsonaro: “Estas são as faces de 100 indígenas mortos por Covid-19 no Brasil“. O perfil de cada um deles pode ser visto por Unidade da Federação, com informações sobre etnia, profissão e data da morte, entre outros dados, neste PDF: Cem Faces Indígenas.

Entre esses indígenas estão professores. A reportagem reuniu casos específicos de educadores que também partiram, de forma mais ou menos invisível, em meio à morte de quase 130 mil brasileiros pelo novo coronavírus. As histórias sobre educação indígena — e desses brasileiros — estão diretamente ligadas ao modo como as etnias percebem o mundo, em conexão direta com o ambiente, com ritmos próprios. A história de Higino, ou Poani, é uma das mais representativas desse universo.

Pesquisa mostra quem foram 100 entre as quase 800 vítimas indígenas do genocídio. (Imagem: De Olho nos Ruralistas)

HIGINO LEVAVA IDEIAS DE PAULO FREIRE PARA A FLORESTA

Em sua trajetória, Higino Pimentel Tenório foi bayá, um condutor de cerimônia, dialogando com o cosmos e o ambiente. Foi construtor de canoas, tradutor trilíngue em um país majoritariamente monoglota. Entendia de petróglifos, as gravuras rupestres em pedras. Sua morte é um prejuízo não apenas à memória do povo Tuyuka, no Amazonas, mas para todos os que se interessam pela floresta, pela terra, pelos rios. E pela história do Brasil.

Como escreveu o padre Justino em um artigo publicado no site do Instituto Socioambiental (ISA), Higino “criou uma ponte importante entre os conhecimentos considerados tradicionais Tuyuka e a construção de um novo modelo de educação”. Depois de passar a infância e adolescência em um internato salesiano, obrigado a não pronunciar sua língua, ele teve uma ideia ousada no meio da Amazônia: criar uma escola à Paulo Freire.

Levava as crianças para o mato, apontava para besouros, árvores, folhas, borboletas, cobras. E dizia o nome do que via no idioma tuyuka. Ensinava e mostrava como era a vida nas malocas, pinturas e como confeccionar instrumentos musicais. Higino representa expressivamente o espírito do professor indígena, que encontra no ensino a flecha para espantar o fantasma da colonização.

Higino em sítio arqueológico no Parque Nacional do Jaú, no Amazonas. (Foto: Raoni Valle/Amazônia Real)

Com a chegada da igreja católica à região do Alto Rio Tiquié, na divisa com a Colômbia, Higino, aos 11 anos, foi levado para um internato salesiano, onde ficou entre 1965 e 1972. Aprendia português, alfaiataria, carpintaria e mecânica. Ele sempre contava que, se as irmãs salesianas o flagrassem falando o tuyuka, era castigado. Ficava sem merenda. Quando o pai de Higino voltou da Colômbia, para onde tinha ido trabalhar para os brancos (foi obrigado pelos padres a se separar da mulher porque ela já tinha sido casada), voltou a falar sua língua.

Com o tempo, foi incentivado pelos salesianos a se tornar professor. Entre idas e vindas da Colômbia, decidiu ficar em São Gabriel da Cachoeira, o município mais indígena do Brasil, no fim da ditadura, para lutar pela educação indígena. Via que a cultura de seu povo se perdia em meio à influência dos não indígenas que apareciam com ideias de salvação, em meio às batinas e crucifixos, e pelo dinheiro — com propostas de empregos longe da floresta.

Enquanto pensava numa forma de criar uma escola para reafirmar o modo de vida Tuyuka, Higino se apaixonou por uma Tukano: Amélia Barreto, da comunidade de São Domingos, com quem teve oito filhos; quatro casais. Como os filhos ficavam mais com a mãe, aprendiam apenas o tukano. O idioma tuyuka era pronunciado apenas pelos mais velhos. Higino procurou saber como mudar isso. Foi quando se envolveu em discussões iniciantes de propostas educacionais voltadas aos indígenas, no fim dos anos 80 e início dos 90.

Nas reuniões, ouvia, anotava, queria convencer tanto seu povo quanto organizações para erguer uma escola em sua aldeia. Foi então que ajudou a criar uma organização, o Conselho Regional das Tribos Indígenas do Alto Rio Tiquié (Cretiart), para, a partir dela, instalar não uma, mas várias escolas indígenas no Amazonas nos últimos vinte anos.

Em 1995, em uma viagem à Áustria, ele recebeu a ajuda que faltava para criar a primeira escola Tuyuka, depois de anos de tentativas. A ideia de Higino deu certo: uma escola do seu povo para o seu povo. Língua tuyuka falada e escrita. Sem computador, ele catalogava o idioma em cadernos encaixotados na Escola Utãpinopona Tuyuka. As crianças voltariam a ter contato com a língua.

Higino queria mais: deixar esses conhecimentos de matemática, sociolinguística, agroflorestal à disposição, para sempre. Sugeriu, orientou e produziu livros ilustrados, escritos e traduzidos pelos próprios alunos, que se espalharam por bibliotecas de escolas diferenciadas, como são chamadas as unidades escolares indígenas. São livros de histórias ancestrais, de batalhas no meio do mato, cobras gigantes, deuses. Conheça alguns exemplos de publicações feitas em parceria com o ISA: “De Rir e Assustar” e “Histórias contadas, ouvidas e escritas”.

Em 2000, Higino criou o projeto Cerimônias Tuyuka, oportunidade para ministrar oficinas de resgate da cultura de seu povo. Em 2009, ele formou a primeira turma de alunos indígenas do ensino médio, em São Pedro. Era mais um passo para a emancipação, a autogestão que precisava para dar fôlego à sobrevivência da cultura de seu povo.

Em agosto de 2011, a repórter Alexandra Lucas Coelho, correspondente do jornal português Público, viajou do Rio de Janeiro, onde era radicada, para São Gabriel da Cachoeira. Ela queria conhecer Paoni, ou Higino, de quem ouviu durante a entrevista: “Os melhores não sobreviveram”. Higino morreu no dia 18 de junho, aos 65 anos.

HISTÓRIA DE FAUSTO MANDULÃO SOBREVIVERÁ NAS ESCOLAS DE RORAIMA

Fausto Mandulão estudava um novo plano de educação quando morreu, aos 58 anos. (Foto: Amazônia Real/Arquivo Pessoal)

A 1.200 quilômetros dali, 15 dias antes da morte de Higino, a etnia Macuxi vivia o luto de perder outro importante educador: Fausto Silva Mandulão, de 58 anos. Vários membros da etnia morreram nessa faixa etária, antes de chegar aos 60 anos. Antes de ser diagnosticado com o novo coronavírus, ele aproveitava as primeiras semanas de quarentena para estudar um novo plano de educação indígena para Roraima.

Tanto Fausto — que também passou a infância em um internato católico — quanto Higino contribuíram, juntos, para diversos trabalhos acadêmicos sobre educação diferenciada. É o caso do relatório “Referenciais para a formação de professores indígenas“, para o qual os dois foram consultados. Viajaram o país, apresentaram experiências, defenderam investimentos. Protagonizaram o cumprimento do artigo 210 da Constituição, que garante educação aos indígenas, segundo os costumes de cada povo.

Em 2004, Mandulão foi responsável por um evento de discussão sobre o tema: o seminário “Os povos indígenas em Roraima e a Educação Escolar: Construindo um ensino médio especifico”. Na ocasião, coordenava o Conselho dos Professores Indígenas da Amazônia. Mais de quinhentos indígenas participaram dos debates. “A ampliação do ensino médio nas comunidades tem como propósito principal a manutenção dos jovens nas suas comunidades para que eles possam contribuir com o desenvolvimento sócio-econômico de seu povo”, dizia Fausto.

Ele também lutava pela formação superior específica para professores indígenas. No editorial de um boletim da Comissão Nacional de Professores Indígenas, Fausto Mandulão defendeu a necessidade de se discutir uma escola que, escreve ele, “tenha a cara e o corpo, o pensamento e o espírito indígena”.

O livro “Formação de professores indígenas: repensando trajetórias” traz um artigo em que ele dimensiona a educação indígena, em texto sobre a educação na visão do professor indígena. Diante da diversidade de povos, com línguas, costumes e crenças, e da existência de 170 línguas indígenas, argumentava ele na época, ele dizia que os processos de ensino e aprendizagem e as concepções de mundo, são também diversos: “Esta diversidade de conhecimentos peculiares de cada povo é que torna a educação escolar indígena complexa, diferenciada e rica em saberes que guardam segredos comuns e de reciprocidade”.

Fausto morava na comunidade Tabalascada, em Cantá (RR), com a mulher, a também professora Josilenilda Cruz. Ali a maioria dos jovens frequenta a universidade. Fausto também foi membro do Conselho Estadual de Educação de Roraima, onde tinha o mesmo poder de voz dos não indígenas e buscava defender oportunidades para seu povo por meio do conhecimento e diploma. Os cinco filhos de Fausto e Josilenilda têm formação superior: a médica Joici, a nutricionista Giovana, o analista de sistemas Josafá, a cirurgiã dentista Juliana e o engenheiro agrônomo Giofan.

Flamenguista e jogador de sinuca, Fausto graduou-se em Licenciatura Intercultural com habilitação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), em 2009. Quando o pai foi infectado pela Covid-19, Joici Mandulão trabalhava dobrado nos plantões em um pronto-socorro. Clínica-geral, dedicava-se ao atendimento de vítimas do vírus. Ela também foi contaminada e não conseguiu se despedir do professor, que não via desde o início da pandemia. “Fica um vazio enorme”, conta ela ao De Olho nos Ruralistas. “Ele lutou muito pela educação dos filhos e de todos os seus alunos”.

Menos de duas horas depois de enterrar o marido, em Boa Vista, sem poder lhe dar o último beijo, diante do caixão fechado, no dia 04 de junho, Josilenilda conversou com a reportagem. Ela trabalha na Escola Estadual Indígena Professor Ednilson Lima Cavalcante, na comunidade Tabalascada, onde é gestora. Fausto Mandulão era coordenador responsável por buscar formas de manter os indígenas estudando, cuidando do calendário escolar. “Não sei como vou voltar para a escola sem ele”, diz ela, que sempre ouve áudios e mensagens que trocaram antes da saúde dele piorar.

Ela não sabe como o casal se contaminou, pois não iam nem ao mercado. Recuperando-se da doença, ela lembra que o marido, dias antes dos primeiros sintomas, se dedicava entre o estudo de um novo plano de educação e músicas da cultura indígena, que ouvia atenciosamente. “Ele também ouvia MPB”, lembra. Uma delas, “Um Índio”, cantada por Caetano Veloso, fazia parte do repertório em eventos culturais nas escolas pelas quais Mandulão passou como gestor, coordenador e professor.

“Um índio descerá de uma estrela colorida e brilhante”, diz a música. Josilenilda acredita, ainda, como diz outro trecho da música, que o professor Mandulão virá como “um índio preservado em pleno corpo físico”. Tudo isso faz parte do simbolismo indígena que o Brasil não vê.

ETNIA MACUXI PERDEU SEIS PROFESSORES PARA A COVID-19

Além de Mandulão, pelo menos outros cinco professores Macuxi morreram diagnosticados com Covid-19. Euzébio de Lima Marques dava aulas na Escola Eduardo Ribeiro, na comunidade Campo Formoso, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, município de Pacaraima, norte de Roraima, um território reconquistado após disputa com arrozeiros. Além da educação, lutava pela demarcação da terra e saúde de seu povo, atuando como conselheiro no Conselho Distrital de Saúde Leste. Ele tinha 59 anos quando morreu, no dia 16 de julho.

Com formação em Sociologia e Filosofia, o professor Alvino Andrade da Silva, mais um Macuxi, foi um dos responsáveis pela demarcação da TI Raposa Serra do Sol, numa batalha judicial que chegou ao fim em 2009 após anos, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a expulsão dos não indígenas da região. Alvino também foi um dos elaboradores do Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena da UFRR. Para garantir o ingresso de alunos indígenas nos cursos da universidade, ele coordenou o projeto “E’ma Pia”. Quando morreu, também aos 59 anos, no dia 20 de junho, ele deixou esposa e um casal de filhos.

Como resultado da vontade de Alvino de levar educação às comunidades indígenas, Bernita Miguel se matriculou no Instituto Insikiran. Ainda não tinha concluído a Licenciatura Intercultural, mas já era professora de língua macuxi na Escola Estadual Indígena Artur Pinto, na comunidade Nova Esperança, na Terra Indígena São Marcos, em Pacaraima. Dedicada ao conhecimento da cultura de seu povo, Bernita morreu aos 58 anos, no dia 21 de maio.

Luciano Perez Bonifácio era conhecido como Lucianinho. Pai de cinco filhos e avô de três Macuxi, Luciano trabalhou em fazenda e estudou Pedagogia e Matemática. Ele entrou na política e aceitou convite para ser candidato a vice-prefeito pelo Partido Verde (PV), em 2016, em Pacaraima, onde também trabalhou na prefeitura, como secretário. Foi um inventivo professor no Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol. Morreu aos 68 anos, no dia 13 de junho.

Luciano Perez Bonifácio nas lentes de Márcia Zoet, da Illumina Imagens e Memória. (Foto: Reprodução)

MESTRE MUNDURUKU ENSINAVA COM CÂNTICOS DOS ANTEPASSADOS

Outro grande mestre indígena, o Munduruku Martinho Boro foi um dos primeiros professores de seu povo. Ele utilizava como método a contação de histórias e cânticos dos antepassados. Além de educador, era um antigo cacique da Aldeia Caroçal Rio das Tropas, no município de Jacareacanga, no oeste do Pará. Os Munduruku perderam o indígena que iniciava os cânticos da etnia no início de assembleias, ou antes de partirem pela mata atrás de indícios de invasores de seu território.

O educador morreu no dia 05 de maio, aos 77 anos. A “História dos Antigos Munduruku” conta quinze fábulas que Martinho Boro traduziu para a língua de seu povo, resultado de correspondências — enviadas por aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) — trocadas durante dois anos com a linguista Marjorie Crofts, que tinha visitado o território e gravado as histórias quando pegou carona na Missão São Francisco no Rio Cururu, em 1977. Ela publicou o livro em 1979. Pela distância, a troca de correspondências durou dois anos. Com a ajuda de Martinho e outros indígenas, a pesquisadora escreveu mais de uma dezenas de livros sobre a etnia.

“Amâncio partiu para junto dos nossos ancestrais e, como um grande guerreiro, herdeiro de Karodaybi, vai continuar nossa luta desse outro lugar”. Assim anunciava, enlutada, a Associação Pariri, a morte de Amâncio Ikon Munduruku, aos 59 anos, no dia 02 de junho. “Seguiremos firmes na luta que ele e nossos antigos travaram. Não ficaremos calados e nem deixaremos que o governo nos mate”, continuou, em tom de aviso, a nota sobre um dos principais líderes de seu povo, responsável pela primeira escola da rede pública a ensinar também a língua da etnia na região do médio Tapajós, em Itaituba (PA).

“A gente olha pra escola e enxerga ele”, disse o filho de Amâncio, Arlisson Munduruku, para o podcast “O Assunto“. Quatro dias depois da morte de Amâncio, outro professor da etnia, Bernardo Akay Munduruku, não resistia às consequências do novo coronavírus no organismo.

Para entender a migração dos Munduruku para a Reserva Indígena Praia do Mangue, o professor Amâncio era procurado por diversos pesquisadores. Foi professor itinerante nas turmas do Ibaorebu, para formação integrada de indígenas tanto no ensino médio como no técnico. Ministrava disciplinas de Magistério Indígena, Técnico em Enfermagem e Técnico em Agroecologia. Coordenado pela Fundação Nacional do Índio (Funai), o curso era oferecido na Aldeia Sai Cinza. Outra luta do indígena foi brigar na Justiça pelo direito de colocar o nome indígena nos documentos, garantia que estendeu aos demais Munduruku.

‘NÃO TINHA ESCOLA, ESCREVIA EM UM PEDAÇO DE ZINCO PINTADO’

Francisco Luiz, da etnia Yawanawá, tinha orgulho de salientar que seu nome mesmo era Ponahãi. Se alguém tivesse dificuldade para pronunciá-lo, pedia que o chamasse de Chicó. Morador da Aldeia Escondida, em Tarauacá (AC), casou-se com uma branca. “Mas ela fala igual eu porque eu ensinei minha língua pra ela”, como lembrou, em um depoimento quando ele tinha 46 anos, em 2004, publicado literalmente na tese de doutorado “A Língua dos índios Yawanawá“, de Aldir Santos de Paula, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Com a mulher branca, Chicó teve onze filhos, seus primeiros. Só que na aldeia não tinha escola. “De primeiro quando eu comecei de trabalhar na escola eu trabalhava assim, eu escrevia assim num pedacinho de zinco que eu arrumei com um missionário que morava na área com a gente”, contou ele, antes de lamentar que aos poucos ia perdendo os alunos que iam se casando ou indo pra cidade. “Era só um pedaço de zinco, pintado com tinta, desse tamãzinho. Era ali que eu dava aula. Agora eu já arranjei um quadrozinho de giz”.

Com esse jeitinho, Chicó deixou uma cratera na luta pela manutenção da cultura de seu povo, na Aldeia Yawanawá,  na região do Rio Gregório, em Tarauacá. Ele morreu no dia 8 de julho aos 69 anos, mas deixou contribuições para a memória de seu povo no livro “Plano de Vida Yawanawá“, onde deixou um ensinamento sobre a preservação das águas e árvores:

— A gente tinha muito cuidado com a terra antigamente. Era para não derrubar assim as palheiras para fazer casas. Às vezes, quando estava na mata, o certo não era derrubar, era trepar e tirar as frutas, porque se derrubasse ia fazer falta. Porque se num ano tinha, se derrubasse no outro não ia ter. Não podia fazer roçado muito grande. Antigamente era assim, bem controlado, de não jogar muito tingui no rio e nos lagos, e estamos levando esse controle até hoje.

Diante do avanço sem controle da pandemia, as perdas de professores indígenas se sucedem, nas mais diversas etnias. Bepkrajpo Kayapó tomou para si a missão de não deixar que a tradição Mebêngôkre desaparecesse entre seu povo, na Aldeia Kokokuedjà, onde ensinava a língua e costumes aos jovens e crianças. Considerado uma biblioteca, o indígena da etnia Mebêngôkre, em Ourilândia do Norte (PA). morreu no dia 19 de junho.

Retratado pelo site Inumeráveis, Luiz Carlos Rodrigues Curico, da etnia Kokama, concluía o Curso de Licenciatura em Formação de Professores Indígenas (FPI) da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), quando morreu de Covid-19 no dia 23 de maio. Ele tinha 44 anos e não era um número.

O corpo de Aldenor Basques Félix Gutchicü, de 44 anos, foi enterrado em uma cova coletiva em Manaus dois dias após sua morte, no dia 28 de abril. Raramente ele era visto sem o violão, um pedaço de papel e caneta. Era sua paixão compor e cantar. O Tikuna se apaixonou pela ideia de se tornar professor aos 19 anos, quando, em fevereiro de 1995, participou da turma de 226 alunos do Curso de Formação de Professores Tikuna.

“Tinha fome de viver”, escreveu o professor de História da Amazônia José Ribamar Bessa Freire, doutor em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Um dos brasileiros que estão a prestar, sistematicamente, homenagens às vítimas da pandemia.

PROFESSORAS INDÍGENAS, AS ESQUECIDAS ENTRE OS ESQUECIDOS

Aikrekatati Aprakwyti Kwynkre, mais conhecida como Mami, dava aulas de cultura para crianças em Marabá, no sudeste paraense, função da qual se orgulhava de se lembrar. Quando surgiram os primeiros sintomas, foi levada à floresta. Mas a indígena da etnia Gavião Kyikatêjê não resistiu. Ela é uma entre as professoras indígenas vítimas da pandemia e do genocídio — como tal, excluída entre os excluídos.

A morte por Covid-19 chegou também aos Wapichana. Elizabeth Ribeiro ainda não tinha comprado o enxoval do bebê quando foi diagnosticada com o novo coronavírus. Ela morreu aos 37 anos, dia 03 de junho, 21 dias após dar à luz. Ela lecionava na comunidade Canauanim, em Cantá (RR). Em busca de uma vida melhor, decidiu ser professora e conseguiu se matricular no Centro de Formação Wapichana, na comunidade Malacacheta. A família da professora precisa de doações de leite e fraldas para o bebê que ficou órfão de mãe.

Elizabeth dava aulas na Escola Indígena Tuxaua Luiz Cadete, na Canauanin, região da Serra da Lua. De vez em quando se encontrava com a professora Dulcirene Freitas de Lima, de 47 anos, da etnia Taurepang, que ministrava aula na mesma unidade escolar indígena.

Dulcirene morreu quatro dias antes da colega Wapichana, no dia 30 de maio. É ela quem posa para a foto dentro de uma sala de aula, máscara pendurada, vestida com uma camiseta escrita “professora”. Para não ter o salário cortado, como informou o site Brasil de Fato, teve de continuar dando aulas mesmo durante a pandemia.

| Yago Sales é repórter do De Olho nos Ruralistas |

Imagem principal (Reprodução): reunião de fotos de dezesseis indígenas vítimas da pandemia e do genocídio

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