Danos do uso de agrotóxicos nas plantações de tomate e cebola à comunidade do Velame são apontados pelo Fórum Baiano de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos; Ministério Público da Bahia também investiga o uso de venenos nas fazendas da região
Por Márcia Maria Cruz
De vegetação e relevo exuberantes, a Chapada de Diamantina guarda 80% das nascentes que abastecem a Bahia — com as Bacias do Paraguaçu, Rio de Contas, Paramirim, Salitre e Jacaré e alguns afluentes do Rio São Francisco. Mas o agronegócio avança sobre o ecossistema. Para expandir plantações de tomates e cebolas, produtores fazem uso de agrotóxicos que contaminam as águas e solos, uma ameaça à vida no território quilombola de Velame, uma das comunidades mais tradicionais da região. Junto aos danos à produção agroecológica de subsistência da comunidade, as substâncias têm causado intoxicação da população local.
Um indício do envenenamento causado por essas substâncias é a procura de pessoas da comunidade do Velame às unidades de saúde. Embora as notificações por intoxicação não estejam sendo realizadas, são muitos os casos reportados ao MPA-BA e ao Fórum Baiano de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos. Outro agravante apontado pelo Ministério Público é que a Empresa Baiana de Águas e Saneamento (Embasa) deveria monitorar a contaminação das águas pelas substâncias tóxicas, só que as análises para atestar a qualidade do recurso hídrico não têm sido feitas.
As fazendas de modelo produtivo extensivo e com uso de agrotóxicos se instalaram há cerca de cinco anos na região. No entanto, desde 2019, a comunidade do Velame vem apresentando queixas relacionadas à contaminação. As vistorias realizadas não surtiram efeitos. Uma fiscalização foi realizada, em 2015, pelo programa de Fiscalização Integrada (FPI). Segundo relatos de moradores, porém, as provas foram maquiadas e os gestores podem ter sido avisados da ação.
Localizado na zona rural de Morro do Chapéu (BA), o território Velame fica próximo das comunidades de Queimada, Malhada de Areia, Ouricuri, Carfarnaum, que também sofrem com os efeitos da contaminação. O uso de agrotóxicos começou com a chegada do agronegócio em Irecê, a oeste da Chapada Diamantina. Além da intoxicação, a agricultura extensiva colabora para a desertificação da região.
Luciano Bernardo de Brito, de 44 anos, afirma que a contaminação do ar por agrotóxicos chega a níveis tão altos que é necessário colocar máscaras e panos para proteger o nariz: “Ouvi relatos e até presenciei pessoas com sangramento de narinas, lacrimejamento dos olhos, gargantas secas e ardência, tontura, tosse e náuseas”. Residente na comunidade de Velame, ele conta que recém-nascidos, gestantes e idosos foram hospitalizados em consequência da intoxicação.
O maior impacto do uso de agrotóxicos, conforme ele pontua, é a contaminação dos lençóis freáticos: “O dano maior é a contaminação do subsolo e, consequentemente, da água que abastece as comunidades”. A situação das águas fica ainda pior, devido à derrubada das florestas. Segundo o quilombola, para abrir espaço para as plantações de tomate e cebola, os produtores derrubam espécies endêmicas, como umburana e umbuzeiro.
O Fórum Baiano de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, Transgênico e pela Agroecologia aponta que o problema decorre da falta de regulamentação da pulverização terrestre e da falta de controle da pulverização aérea. Sem a regulamentação terrestre, não foram estabelecidas regras de distanciamento dessas plantações em relação às águas, aos povoados e à produção agroecológica e orgânica.
A coordenadora do fórum, a promotora Luciana Espinheira da Costa Khoury, diz que a facilitação da entrada de produtos no país, entre eles alguns já banidos em outros países, e a grande dificuldade de realizar controle nos usos, seja no monitoramento da água, dos alimentos, torna os problemas maiores — e sem mensuração. “A ampliação de produtos é completamente absurda, diante de tamanhos descontroles no uso”, afirma.
Luciana destaca que as populações, que produzem com a agroecologia ou de forma orgânica, sem uso de agrotóxicos, como é o caso do território do Velame, são muito prejudicadas pelos vizinhos que pulverizam os venenos. Ela condena o uso de agrotóxicos, seja de qual forma for: “A pulverização aérea é de grandes problemas ambientais e para a saúde das pessoas. A grande deriva dispensada no ambiente causa danos que não tem sido mensurado”.
O problema se agrava com as deficiências na fiscalização. O Ministério Público aponta que a Agência de Defesa Agropecuária da Bahia (Adab), entre 2014 a 2019, emitiu somente quatro autos de infração relacionados aos pesticidas nos 417 municípios baianos. Segundo o relatório de gestão da Adab, apresentado ao Tribunal de Contas do Estado da Bahia, a agência, em 2018, fiscalizou o uso de agrotóxicos em 1.080 propriedades rurais, em todo o estado.
Segundo o Censo Agropecuário de 2017 do IBGE, 145.469 propriedades rurais declararam usar agrotóxicos na Bahia. Pelo ritmo atual, seriam necessários 134 anos para que todas essas propriedades rurais fossem devidamente fiscalizadas. Ou 706 anos, para todos os 762.848 estabelecimentos rurais identificados pelo IBGE no estado. Durante a Fiscalização Integrada foram analisados 2.068 receituários agronômicos para agrotóxicos aplicados na região, e identificados vinte produtos mais utilizados.
O Ministério Público aponta que a Embasa não realiza o monitoramento na água oferecida à população de dezoito dessas substâncias, entre elas o mancozebe e a permetrina, listadas entre as dez mais usadas na atividade agrícola dos municípios. As substâncias estão também entre as 27 de monitoramento obrigatório pela portaria de consolidação 5 do Ministério da Saúde.
O promotor Pablo Almeida, do Ministério Público da Bahia, conta que o mancozebe é o agrotóxico mais utilizado na região. Segundo ele, a portaria determina que compete ao responsável pelo sistema de abastecimento de água para consumo humano manter e controlar a qualidade da água produzida e distribuída, com a realização de análises laboratoriais da água, o que não é feito.
A fiscalização identificou ainda o descumprimento, nas unidades de saúde locais, de norma do Ministério da Saúde, que obriga todos os profissionais de saúde a reportar ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) casos ou suspeitas de intoxicação por agrotóxicos.
De Olho nos Ruralistas entrou em contato com a Embasa e Adab, mas até o momento não obteve resposta.
| Márcia Maria Cruz é jornalista |
Foto principal (Manu Dias/Secom-Governo da Bahia): plantação de tomates na Chapada Diamantina
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