Instrução normativa publicada durante a pandemia e sem consulta prévia pode provocar grilagens de terra, desmatamento e alterações no modo de vida das comunidades de fundo e fecho de pasto; organizações apontam falta de transparência na medida
Por Sarah Fernandes
Em meio à escalada de casos de Covid-19 no Brasil, o governo da Bahia, chefiado pelo petista Rui Costa, acelerou o processo de concessão de áreas de quilombos e de comunidades de fundo e fecho de pasto para empresas de geração de energia eólica instalarem torres, canteiros de obras, linhas de transmissão e abrirem estradas para os empreendimentos. Famílias e líderes de comunidades tradicionais temem, com isso, a ampliação da grilagem de terras, desmatamento e alterações drásticas no modo de vida tradicional.
As novas regras para os empreendimentos fazem parte da Instrução Normativa Conjunta nº 01/2020, publicada em 1º de julho, quando o Brasil já somava 60.713 mortes causas pelo novo coronavírus. Ela criou um processo específico para facilitar a instalação dos parques eólicos em terras públicas e devolutas, muitas delas ocupadas por comunidades tradicionais.
Não foram realizadas audiências públicas para que os moradores fossem ouvidos, atendendo ao princípio da consulta prévia, livre e informada, determinada pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
“O governo publicou esse documento quando estávamos em quarentena e não poderíamos discutir os pontos dos projetos”, relata Edvando Jesus Vieira, membro da Articulação Estadual das Comunidades Tradicionais de Fundo e Fecho de Pasto. “Nas comunidades não há sinal de internet nem telefone”.
A instrução normativa do governo baiano não especifica as áreas em que os parques eólicos serão instalados, nem cita ações necessárias para preservar o ambiente e as nascentes e mananciais que abastecem as populações do campo. É o que o ressalta a análise da IN 01/2020 publicada pela Articulação:
— Não há nenhuma previsão na Instrução Normativa de que as empresas devem respeitar o modo de vida das comunidades tradicionais. Não há obrigação de que as áreas das comunidades não sejam cercadas, de que os caminhos tradicionais devem ser mantidos abertos, ou de que os moradores devem ter acesso às informações sobre o empreendimento para refletirem e tomarem decisões.
A organização que representa as comunidades de fundo e fecho de pasto argumenta que a decisão do governo estadual abre espaço para que áreas comuns sejam apropriadas por eólicas e para que o deslocamento das pessoas nos territórios seja drasticamente reduzido.
“Na prática, as famílias e posseiros individuais continuarão sendo assediados por grileiros com a especulação de terras que a chegada das empresas provoca”, diz o texto do estudo, assinado também por: Comissão Pastoral da Terra (CPT), Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia (AATR/BA), Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA) e pelo grupo de pesquisa GeografAR, da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
As comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto são caracterizadas por serem territórios sem cercas, onde famílias pastoreiam criações de caprinos, ovinos e bovinos em áreas coletivas, utilizadas ao mesmo tempo para extrativismo de plantas medicinais e de frutos, como o umbu, pequi e buriti. São justamente essas áreas devolutas, portanto públicas, que a instrução normativa libera para as eólicas instalarem torres geradoras e linhas de transmissão.
De acordo com a IN 01/2020, terão prioridade as áreas localizadas nos “corredores de vento”, entendidos como espaços com constância de ventos suficiente para a instalação de parques eólicos. Essas áreas, no entanto, ainda não foram especificadas e estão organizadas em mapas apenas ilustrativos, sem informações georreferenciadas que permitam identificar quais e quantas comunidades serão afetadas exatamente.
É um problema de transparência da informação, como destaca Beatriz Cardoso, integrante da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR):
— Existe apenas um mapa com as áreas prioritárias para geração de energia eólica onde valeria a instrução normativa, no entanto não temos acesso às coordenadas geográficas para saber quais áreas exatamente receberão o empreendimento, em um processo mais transparente. A IN se soma a outras facilidades já concedidas para as empresas eólicas, a exemplo do licenciamento ambiental, que possui regras mais flexíveis.
A instrução normativa foi assinada pela Secretaria Estadual de Desenvolvimento Econômico, pela Coordenação de Desenvolvimento Agrário da Secretaria de Desenvolvimento Rural (CDA/SDR) e pela Procuradoria Geral do Estado (PGE). Em nota oficial, o governo baiano defende que a instalação dos parques eólicos vai “movimentar a economia local, gerar emprego e renda, além de ocupar uma área erma e lhe conferir uma destinação socialmente adequada”.
Para Rubem de Frias Cruz, presidente da Associação da Comunidade Borda da Mata, onde desde 2012 está instalado um parque eólico, os impactos são múltiplos. Ele afirma que a comunidade viu as terras comuns se reduzirem ao mesmo tempo em que a violência cresceu:
— Nós criávamos os animais soltos e com as eólicas a área de pastoreio diminuiu. Ficamos espremidos, lutando para permanecer no campo. Não temos vontade de ir para a cidade, mas queremos ter perspectivas aqui. Vivemos cada vez mais presos em casa, pelo aumento da violência e não vimos a geração de emprego prometida. Na época da instalação falava-se em 11 mil postos de trabalho, mas quem está empregado é só gente de fora. Eles dizem que precisam de mão de obra especializada, mas por que não treinar a comunidade em tantos anos? O Estado foi conivente com isso.
As empresas eólicas costumam negociar as instalações de torres diretamente com os moradores, em abordagens individuais, ignorando o uso da terra nas comunidades tradicionais que é, em grande parte, coletivo. Essa prática pode reduzir a participação popular nas tomadas de decisão sobre os empreendimentos, dificultando a compreensão dos impactos sociais e ambientais causados pela obra e impedindo que as comunidades definam suas prioridades de forma autônoma.
“As empresas não sentam para conversar com os líderes comunitários ou para realizar assembleias com as comunidades”, ressalta Edvando Vieira, da Articulação Estadual das Comunidades Tradicionais de Fundo e Fecho de Pasto. “O diálogo é individualizado. Há famílias que poderão arrendar terrenos para receber torres e o vizinho, muito próximo, não. Ele não vai receber nada da empresa e vai ficar só com os impactos: o barulho constante, o desmatamento para abrir estradas e a mudança de hábito de animais, que ficam desnorteados com o zunido das pás das torres de energia eólica”.
As análises de impactos ambientais e os diagnósticos fundiários que viabilizarão o uso da terra pelas eólicas serão produzidos por empresas terceirizadas contratadas e remuneradas pelas próprias companhias eólicas o que, segundo Edvando, favorece as grandes empresas do setor:
— Diversas comunidades ainda não têm seus territórios regularizados. Pela dinâmica tradicional, uma parte da área é utilizada de forma individual e a maior parte dela é de uso comum das famílias. Com a chegada das eólicas começa a correria pela regularização, pessoas que não são da comunidade começam a circular no território tentando grilar áreas e forjar documentações.
Pela Lei Estadual nº 12.910/2013, as comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto teriam até 31 de dezembro de 2018 para protocolar os pedidos de emissão de certidão de autorreconhecimento, o que dificulta o processo de regularização fundiária dessas áreas.
Edvando lembra que o valor pago ao governo baiano e às comunidades tradicionais pelas eólicas pelo uso da terra é um percentual muito baixo da produção de energia, sobre a qual não há controle:
— O governo fala que está fazendo algo muito interessante para as comunidades, que vai gerar renda, mas sabemos que essa renda é algo irrisório, quase simbólico. As comunidades tradicionais têm uma diversidade produtiva muito grande. Se a intenção fosse beneficiá-las, o governo discutiria o que elas precisam para fomentar o processo de produção e comercialização dos produtos tradicionais. Esse seria um caminho de desenvolvimento verdadeiramente sustentável.
| Sarah Fernandes é repórter do De Olho nos Ruralistas |
Foto principal (AATR/Divulgação): Torres eólicas limitam mobilidade em comunidades de fundo e fecho de pasto