Encapuzados, 22 jagunços invadem comunidade tradicional no Maranhão

Camponeses da comunidade Gameleira, em Brejo, denunciam grilagem e desmatamento por correntão a mando de Gilmar Lunelli de Freitas, dono da Masul Agrícola; soja e celulose avançam na região do Baixo Parnaíba, em uma das fronteiras da agricultura e da violência

Por Julia Dolce

Um grupo de 22 jagunços encapuzados invadiu na manhã de quarta-feira (19) a comunidade tradicional Gameleira, no município de Brejo, no leste do Maranhão, na fronteira com o Piauí. São cerca de 60 famílias camponesas que sobrevivem da agricultura e do extrativismo. Os jagunços destruíram cercas e tentaram entrar com trator nas áreas de roça e de Cerrado nativo, onde as famílias extraem frutas como pequi, bacuri, bacaba e murici. As famílias contam que os homens estavam armados com armas pequenas escondidas e com spray de pimenta.

Os camponeses denunciam que os jagunços foram contratados pelo sojeiro Gilmar Lunelli de Freitas, proprietário da empresa Masul Agrícola, que há mais de vinte anos produz soja e ameaça expulsar famílias de diferentes comunidades de seu território na região. A comunidade Gameleira, onde vivem cerca de quinhentas pessoas, tem 120 anos.

Lunelli de Freitas é gaúcho, natural de Passo Fundo, e tem pelo menos três fazendas em seu nome: Fazenda Valessa, em Brejo, e Fazenda Floresta e Fazenda Mori, em Santa Quitéria do Maranhão, outro município do leste do estado, ambos fora da Amazônia Legal, na região do Baixo Parnaíba e na fronteira agrícola conhecida como Matopiba. 

Durante a invasão da Gameleira os jagunços também passaram um “correntão” em outra área da comunidade, destruindo a vegetação presente, como mostram vídeos gravados pelos próprios camponeses. 

OUTRAS DEZ COMUNIDADES DIZEM TER SIDO AMEAÇADAS PELO SOJEIRO

“Correntão” usado para desmatamento e deixado por jagunços na Comunidade Gameleira, em Brejo (MA). (Foto: Delegacia de Conflitos Agrários e Igualdade Racial do Maranhão)

De Olho nos Ruralistas participou nesta sexta-feira de uma reunião virtual com líderes camponeses da Gameleira e outros representantes do município. Na reunião estava presente um morador que nasceu e viveu os seus 70 anos na comunidade. Um dos camponeses, que a reportagem decidiu não identificar por segurança, afirmou que os jagunços chegaram a empurrar e jogar spray de pimenta em moradores: “Eles disseram que estavam contratados para fazer o serviço”. 

Além da Gameleira, outras dez comunidades em Brejo contam já terem sofrido ameaças e violações por parte de Freitas, o sojeiro. São elas: Viado Branco, Água Branca, Centro das Teixeiras, Ingá, Guarimã, Macaco dos Vitos, Corrente, Panela, Mata de Baixo e Mata de Cima.

Os moradores da Gameleira desconfiavam que uma invasão de seus territórios aconteceria porque os jagunços já tinham deixado no local, havia alguns dias, a corrente utilizada para desmatar a área — essa que ilustra a reportagem. Um dia antes da ação, na terça-feira, o padre Chagas Pereira, coordenador do Programa de Assessoria Rural da Arquidiocese de Brejo, recebeu um líder das comunidades que descreveu a provável ação de desmatamento. 

Chagas se juntou ao bispo de Brejo, Dom José Valdeci Santos Mendes, para denunciar a ação para o Secretário de Segurança Pública do Maranhão. “Ele garantiu que no dia seguinte mandaria o comandante da polícia descer para a área”, conta. A polícia agrária chegou na comunidade na manhã de ontem para ouvir os camponeses e registrar Boletim de Ocorrência. 

O governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), chegou a se pronunciar no Twitter sobre o caso. Ele afirmou que o governo destacou um batalhão da polícia para a região a fim de “garantir segurança e o cumprimento da lei”. 

O delegado Agnaldo Timóteo, da Delegacia Agrária da região, afirma que uma viatura ficará na comunidade pelos próximos dias para realizar patrulhamento. Segundo Timóteo, é preciso saber se houve ou não licença para supressão vegetal sobre o território da Gameleira. “A área suprimida é muito grande”, afirma. 

‘ELE DISSE QUE TINHA PODER, ARMA, DINHEIRO E A JUSTIÇA AO LADO DELE’

Tratores de jagunços que invadiram a comunidade Gameleira, em Brejo (MA). (Foto: Delegacia de Conflitos Agrários e Igualdade Racial do Maranhão)

Apesar do tamanho da ação, os moradores da Gameleira conseguiram barrar a entrada dos jagunços na área mais preservada da comunidade, de onde extraem alimentos. Os camponeses contam que não foi a primeira ameaça que receberam por parte de Freitas. No fim de 2020, os camponeses decidiram passar um arame em seu território para impedir a entrada de tratores do sojeiro. O arame chegou a ser cortado durante uma madrugada. 

Em seguida, no início deste ano, a comunidade se reuniu para tirar os tratores deixados na área a mando de Freitas. Os camponeses contam que o sojeiro disse, pessoalmente, que começaria a passar por cima das terras, pois seriam dele. “Ele disse que tinha poder, arma e dinheiro, e que a justiça estava do lado dele”, afirmou um deles à reportagem. 

Os camponeses da Gameleira dizem que o sojeiro faz uso indevido de agrotóxicos, contaminando os córregos e rios onde a comunidade se abastece com água e toma banho. Eles contam que Freitas utiliza pulverização aérea e o maquinário conhecido como “gafanhoto” para aplicar o veneno, e que diversos animais criados por eles já morreram por intoxicação. 

Confira um dos relatos:

— A gente sente o cheiro demais, ave Maria. Ele joga nas cabeceiras dos córregos. Nem todo mundo tem poço artesiano e muita gente ainda usa água da cacimba, toda contaminada. Os animais já morreram tudinho com veneno.

“Os animais já morreram tudinho com veneno”

Segundo esse camponês, a comunidade fica embaixo da chapada, área disputada pelo sojeiro. “Ele quer tomar a chapada todinha”. 

A truculência da ação, em plena luz do dia, chamou a atenção de movimentos e organizações populares do Maranhão. O advogado Diogo Cabral, que trabalha com violência agrária no estado há treze anos, foi o primeiro a divulgar os registros dos camponeses nas redes sociais, e pretende representá-los no caso. 

De acordo com ele, a invasão faz parte de um crescimento alarmante de conflitos agrários na região nos últimos dois anos. Cabral trabalha atualmente para a Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Maranhão (Fetaema).

“Nunca trabalhei tanto quanto nos últimos sete meses”, revela. “Todos os dias tem alguma situação, ou trabalhador rural ameaçado de morte, ou política fazendo batida em casa. É um movimento organizado por setores do agronegócio que não obedecem absolutamente a lei e a coisa está ganhando uma dimensão difícil”. 

A comunidade Gameleira ocupa cerca de 500 hectares na região do Baixo Rio Parnaíba, no Maranhão, na fronteira com o Piauí. A área, uma região de chapada, integra a zona conhecida como Matopiba, uma das últimas fronteiras agrárias no país. Nos últimos vinte anos, a região tem sido cobiçada pelo agronegócio, originalmente pela indústria de papel por meio da plantação de celulose. Mais recentemente, pela sojicultura. 

Cabral explica que com a intensa entrada de sojeiros, as comunidades tradicionais da região começaram a sofrer pressão para vender suas terras. “Agentes imobiliários estariam ameaçando famílias de expulsão, tentando negociar suas terras”, explica. 

CAMPONESA DISSE TER SIDO UTILIZADA COMO LARANJA PARA GRILAGEM

De Olho Nos Ruralistas apurou que o sojeiro Gilmar Lunelli Freitas já levou quinze autos de infração do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), entre maio de 2004 e fevereiro de 2017. As multas somam R$ 1,825 milhão e se referem a desmatamento de até 2.476 hectares de Cerrado nativo, transporte ilegal de carvão vegetal sem documentos, descumprimento de embargos do Ibama e até abandono de embalagens vazias de agrotóxicos. 

A autuação de maior valor, R$ 742.800, refere-se ao desmatamento de 2.476 hectares de Cerrado, em Santa Quitéria. Dois anos antes ele tinha levado uma multa bem menor, de R$ 50.000, relativa ao desmatamento de 500 hectares. As duas últimas autuações, em 2017, ocorreram por causa do descumprimento de embargos em Brejo. O valor de quase R$ 2 milhões, descrito acima, não está atualizado.

Gilmar Lunelli de Freitas, da Masul Agrícola, coleciona multas no Ibama e processos. (Foto: Reprodução/Twitter)

Freitas também coleciona processos no Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Em um deles, a camponesa Jeane Oliveira Silva, moradora do povoado Lagoa dos Pinheiros, em Brejo, denuncia ter sido usada como laranja em um processo de grilagem de terras do sojeiro. 

Em seu depoimento, a lavradora conta que, ao realizar uma consulta junto à Previdência Social para regularizar seus dados do Bolsa Família, descobriu que tivera uma redução considerável do benefício. O órgão informou que ela havia adquirido uma gleba de terra de 119,10 hectares no município de Milagres do Maranhão, a Fazenda São Miguel.

Jeane conta no processo que a informação lhe causou espanto, pois sequer conhecia qualquer fazenda no município. Ao visitar o cartório correspondente, o documento apontava que a fazenda havia sido adquirida junto ao Instituto de Colonização e Terras do Maranhão (Iterma) mas revendida, a Freitas, por R$ 419.941.

O marido de Jeane foi funcionário de Lunelli entre 2008 e 2012 em outro município e desconhecia os fatos. Jeane contou que viajou algumas vezes, sob ordens de Lunelli, aos municípios de Chapadinha e de Santa Quitéria do Maranhão, onde, segundo o processo, o sojeiro “obrigava a autora a assinar alguns papéis naquelas serventias, caso contrário o seu marido seria demitido”. 

“A autora, pessoa humilde e de pouca instrução, tinha total desconhecimento do que estava assinando e apenas agiu conforme os mandos de Gilmar Lunelli de Freitas para que seu esposo não fosse demitido do emprego, tendo em vista que são pessoas muito necessitadas e pobres”, continua o documento. 

Durante a reunião realizada com os moradores da comunidade Gameleira, o uso de laranjas por parte de Freitas para grilar terras foi confirmado por outros camponeses. “Uma amiga minha tinha 200 hectares no nome dela na Gleba Ingá e ela nunca morou lá”, descreveu um deles.

— Gilmar Lunelli fez uma escritura dizendo que ela vendeu pra ele essas terras sem ela nem saber. A escritura que ela pegou em Milagres do Maranhão diz que ela recebeu R$ 45 mil e nunca viu nenhum centavo. Ele coloca muita terra no nome de várias pessoas e elas nem ficam sabendo.

REGIÃO DA BALAIADA CONTINUA COM CONFLITOS, 200 ANOS DEPOIS

Outras comunidades em municípios próximos de Brejo têm denunciado ameaças por parte de jagunços ou milicianos — ou seja, grupos que praticam crime organizado no campo. No dia 22 de abril, a comunidade rural do Araçá, no município de Buriti, foi banhada pela pulverização aérea de agrotóxicos. A ação deixou uma criança de 7 anos com feridas abertas no corpo.

A comunidade suspeita que o responsável pela contratação do avião seja o produtor de soja Gabriel Introvini, que tem histórico de conflitos com diversas comunidades da região. 

Entre as comunidades de Bom Jardim e Riachão, no município de Mata Roma, o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTR) recebeu uma denúncia nesta sexta-feira de devastação de Cerrado nativo, igualmente com uso de correntão. Representantes do sindicato estiveram no local e gravaram a ocorrência. O vídeo foi compartilhado nas redes sociais. 

A região desses municípios reúne diversas comunidades tradicionais de povos camponeses, extrativistas e quilombolas. Foi lá que, entre 1838 e 1841, aconteceu a Balaiada, revolta popular por melhores condições de vida de trabalhadores rurais, contra a elite de fazendeiros. Hoje a região é conhecida como “Novo Eldorado do Nordeste”, por ser amplamente ocupada por sojeiros gaúchos. A produção de soja vem acompanhada de grilagem de terras, devastação ambiental e violência bruta contra as comunidades tradicionais. 

Para Diogo Cabral, a conjuntura acontece por uma somatória de fatores, que envolvem a não regularização do território desses povos tradicionais por parte do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e pelo Iterma:

— Temos o discurso bolsonarista incentivando e a ausência completa dos órgãos fiscalizatórios que expedem licenças sem o devido controle sobre as atividades e dos órgãos que deveriam garantir segurança jurídica dessas comunidades. Os agricultores avançam cada vez mais sobre essas comunidades e isso acontece em plena luz do dia, as pessoas perderam a vergonha total.

Julia Dolce é jornalista investigativa, com atuação na área socioambiental. |

Foto principal (Delegacia de Conflitos Agrários e Igualdade Racial do Maranhão): destruição na comunidade Gameleira

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