Indígenas, quilombolas e camponeses são alvos da violência ligada a territórios e acesso à água; o número de casos de conflitos é recorde na história, com mais de 70% na região amazônica; cresce a presença do próprio Estado como agressor direto
Por Leonardo Fuhrmann
O relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT) divulgado nesta segunda-feira (31/05) aponta um recorde de conflitos no campo em 2020, com 2.054 casos registrados. A Amazônia Legal, formada pelos estados da região Norte, Mato Grosso e a maior parte do Maranhão, consolida-se como o principal foco de violência no campo brasileiro, com 77% dos casos.
O levantamento aponta um aumento de 8% no número de conflitos registrados no campo, de 1.903 em 2019 para 2.054 em 2020, chegando ao maior número da série histórica de 35 anos da CPT. Em 2018, um ano antes de Bolsonaro assumir, foram 1.547.
O número de hectares em conflito também disparou: chegou a 77.442.957 (notem, 77 milhões de hectares) em 2020, ante 53.313.244 em 2019, um aumento de 45%. No ano passado, o território em disputa foi quase o dobro de 2018, quando somou 39.425.494 hectares.
Em 2020, dezoito pessoas, sendo sete indígenas, morreram por causa de conflitos. Em 2019, foram 32.
Apesar do número de conflitos por água ter sido menor do que em 2019, os números continuam muito acima do que o registrado em períodos anteriores. Foram 350 em 2020 e 509 em 2019, ante 279 em 2018.
Para a pesquisadora Patrícia Rosa Chaves, professora de Geografia Humana da Universidade Federal do Amapá (Ufap) e especialista em Geografia Agrária, os dados apontam para uma consolidação da Amazônia Legal como foco da violência agrária. Um movimento que começa a partir de 2015. Ela é uma das assessoras da CPT responsáveis pela análise dos dados.
“A Amazônia sempre foi, apesar dos ataques, uma região com proteção, pelo número de reservas ambientais e territórios indígenas”, afirma. “O atual governo está empenhado em entregar estes bens naturais para os capitalistas brasileiros e do exterior”. Ela lembra que a ideia de explorar a Amazônia em parceria com países aliados já estava no programa de governo de Bolsonaro e repete o projeto da ditadura militar.
Durante os dois primeiros anos de Jair Bolsonaro, o número de conflitos no campo cujo agressor foi o próprio governo explodiu. A CPT registrou 311 casos, sete vezes o número da gestão Dilma Rousseff (PT), quando o governo federal aparecia como agressor em 45 casos. Os principais alvos dessa ofensiva feita com a participação direta ou com o apoio do governo são os indígenas, quilombolas e extrativistas. O número não leva em conta o apoio político aos demais agressores: fazendeiros, garimpeiros e grileiros.
Patrícia aponta que o discurso de Bolsonaro repete o falso argumento de que a região é um vazio demográfico. “O próprio número de conflitos e de famílias atingidas demonstra a falácia do argumento”, explica. “E precisamos lembrar que as famílias no campo, especialmente de povos tradicionais e originários, têm mais integrantes do que é comum nos centros urbanos”. Os 1.576 casos de conflitos na Amazônia Legal em 2020 atingiram 171 mil famílias.
Os conflitos, em um ano de pandemia, se tornaram ainda mais assimétricos: “Não são casos em que essas comunidades estão fazendo ocupações para reivindicar seus direitos. Elas estão em seus territórios, lutando para sobreviver, enfrentando os impactos da Covid-19, e são atacados por quem quer explorar aquelas terras”.
Com políticas de proteção e saúde precárias, essas populações sofreram duplamente, como fica claro nos números sobre mortes de indígenas e quilombolas por conta do coronavírus.
Os ataques a essas populações foram centrais para que a região Norte superasse o Nordeste em número de conflitos agrários. A mudança teve início em 2015 e se consolidou nos últimos dois anos. Em 2020, mesmo estados pequenos do Norte, como o Acre e o Amapá ficaram entre os dez com maior número de conflitos.
“O Amazonas não está entre os dez com maior número de conflitos, mas os conflitos envolvem uma grande população também”, comenta Patrícia. A região mais crítica é o chamado Bico do Papagaio, na divisa do Pará com o Maranhão e Tocantins, na Amazônia Legal. Com parte do território na Amazônia Legal e também no Matopiba, o Maranhão foi o estado com maior número de conflitos.
A pesquisadora demonstra preocupação ainda com a redução nos números relativos ao trabalho escravo: “Não é sinal de que o trabalho degradante ou superexplorado tenha diminuído, mas sim que as investigações e o monitoramento de denúncias pelo poder público perderam força”.
| Leonardo Fuhrmann é repórter do De Olho nos Ruralistas. |
Foto principal (Mídia Ninja): relatório da CPT aponta atuação do governo federal nos conflitos do campo
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