Áudio obtido por De Olho nos Ruralistas mostra homem oferecendo a possível interessado uma fazenda “topíssima” às margens do Rio Araguaia, em Luciara, região de conflitos; “tem de jogar uma grana na mão dos posseiros, porque tirar na tora é meio complicado“
Por Mariana Franco Ramos
Um áudio obtido por De Olho nos Ruralistas mostra um intermediário oferecendo terras públicas ocupadas por retireiros em Luciara, às margens do Rio Araguaia, no nordeste do Mato Grosso. A operação é considerada ilegal, uma vez que propriedades fluviais são de domínio da União.
“O Palocha conhece tudo lá, Carlinho”, diz o homem, na gravação. “É um cara pronto pra tudo quanto é tipo de situação”. Fontes ouvidas pela reportagem dizem que ele se refere a Valmo Rodrigues Matos, ex-morador da região que atua como uma espécie de corretor, sempre a favor de grileiros e fazendeiros de outros estados.
“É uma fazenda muito bonita”, prossegue o negociador. “Tem esses enroscos aí, mas é coisa boa”. Os retireiros, povos que vivem do pastoreio do gado nos chamados retiros em áreas coletivas, não souberam informar quem seria Carlinho. “Possivelmente mais um corretor”. Entretanto, ligaram o alerta, temendo novos conflitos, num local com histórico de tensões, e o aumento da pressão de forasteiros na comunidade.
Palocha, esse sim, é conhecido pelas famílias de Luciara: é proprietário de uma fazenda menor, a Retiro, de 87 hectares. Outro terreno “muito bacana para se fazer uma proposta, prossegue o corretor, no áudio, “é a fazenda do Valdir Fiorucci”.
Na realidade, quem se apresenta como dono de uma área de 7 mil hectares, conforme os moradores, é Jair Fiorucci, sócio de Hélio Feitosa no Piraru Group. A holding, que atua em atividades de administração de fundos, “agrobusiness” e aluguel de imóveis, possui ramificação até nos Estados Unidos.
O negociador conta que a fazenda em questão, a Araguaia, está “invadida” por “posseirinhos”, que aceitariam sair em troca de algum dinheiro. “Dá pra gente comprar essa fazenda do Fiorucci no jeito, barata”, sugere.
“Ele pega seus imóveis, entendeu, e aí vai ter que jogar uma grana na mão dos posseiros pra tirar eles, porque tirar na tora é meio complicado”. E finaliza: “é uma fazenda topíssima, topíssima”.
Ouça a íntegra do áudio:
Luciara tem pouco mais de 2 mil habitantes e fica a 1.174 quilômetros de Cuiabá, no Vale do Araguaia. A região, entre o Cerrado e a Amazônia, guarda intensos conflitos, que remontam aos tempos da ditadura. Tudo começou nos anos 60, quando fazendas agropecuárias passaram a se instalar ali, com incentivo fiscal do governo. Muitos moradores não resistiram à lógica perversa do agronegócio e, acuados, foram vendendo suas terras.
“A nossa luta não é só contra os fazendeiros e grileiros”, relata uma retireira, que prefere não se identificar, por já ter sofrido ameaças, inclusive de morte. “É contra quem vê essa terra fácil, tira um pedaço, diz que é dono e, se vem oferta maior, vende”.
Foi também em Luciara que Dom Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia, denunciou ao mundo a existência de trabalho escravo contemporâneo, como mostra a Repórter Brasil. “No início do século 21, grandes lavouras se expandiram, cobiçando o solo fértil e plano das margens do Araguaia”, afirma o texto.
“Justo as terras dos retireiros, que, embora sejam propriedade da União, passaram a ser objeto de fraude de titulação – a famosa grilagem”, completa. Paralelamente e de forma ilegal, pessoas físicas e empresas sem ligação com a atividade agropecuária, caso da Imobiliária Ytapuã, com sede então no Aeroporto Internacional de Brasília, foram agraciadas com títulos, visando o aumento de arrecadação de receita.
A imobiliária entrou com uma ação judicial para reintegração de posse. Em julho de 2006, no entanto, a Justiça negou o pedido e a comunidade conseguiu permanecer no território. “A gente já ganhou deles em duas instâncias e ninguém mais tira nós de lá”, garante outro morador.
A líder comunitária ouvida por De Olho nos Ruralistas explica que o poder público facilita o processo de grilagem. “O cara paga o imposto no cartório e se acha no direito”, comenta. “Como ele tem tanta certeza que os posseiros vão sair?”, questiona, sobre o intermediador que aparece no áudio.
O observatório não conseguiu contato nem com os sócios, nem com a empresa citada.
Desde 2003, os retireiros do Araguaia lutam pela criação de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS), com o objetivo de barrar a especulação fundiária, a formação do latifúndio e a perda do território comum, além de diminuir os impactos ambientais.
Em 2009, o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio) chegou a elaborar um relatório fundiário favorável à RDS Mato Verdinho. O órgão destinou uma área de 110 mil hectares para a reserva. Na época, havia 94 famílias no local.
“Hoje são por volta de trinta que veem o território como realmente coletivo”, conta a fonte ouvida pelo observatório. O processo travou após a ocorrência de um intenso conflito, quatro anos depois, em 2013, envolvendo pessoas contrárias à implantação da RDS.
Autointitulados proprietários de terra fecharam os acessos a Luciara, fizeram barricadas e queimaram as casas de dois líderes. A situação foi retratada na dissertação de mestrado de Lidiane Taverny Sales na Universidade de Brasília (UnB) e também compõe o Mapa de Conflitos da Fiocruz.
Um professor, dois motoristas e 16 pesquisadores da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), que seguiam para um estudo na comunidade tradicional, foram mantidos em cárcere dentro do ônibus e ameaçados de terem o veículo incendiado se não respeitassem a ordem de sair da região, sob escolta. A rodovia MT 100, que dá acesso à cidade, foi bloqueada e o clima de tensão perdurou por sete dias.
Se, por um lado, a reserva até hoje não saiu do papel, por outro a expansão invasiva de fazendeiros, atrelada ao avanço da soja e do arroz, continua. Segundo os relatos, novos invasores impuseram cercas de arame e se apropriaram de uma quantidade enorme do território.
“Isso fora a pressão sobre o ambiente”, conta a moradora, que se mostra preocupada ainda com a pesca predatória. “As pousadas oferecem um pedaço à beira do lago, os turistas chegam e se acham no direito”, afirma. “Não é ecoturismo. É turismo predatório”.
| Mariana Franco Ramos é repórter do De Olho nos Ruralistas. |
Foto principal (Acervo Lidiane Sales/Brasil de Fato): avanço da grilagem e do agronegócio coloca modo de vida tradicional em risco
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