Cinco acampados morreram por disparos aéreos desde agosto; Ouvidoria da Secretaria de Segurança Pública enviou denúncias de violações a direitos humanos às Polícias Civil e Militar; PMs são acusados de restringir acesso a alimentos, destruir casas e coagir crianças
Por Leonardo Fuhrmann, em Porto Velho
A Secretaria de Segurança Pública de Rondônia confirmou ter recebido denúncias de violações a direitos humanos na reintegração de posse do Acampamento Tiago dos Santos, em Nova Mutum Paraná, distrito de Porto Velho. Os ocupantes das terras são ligados à Liga dos Camponeses Pobres (LCP). Em resposta a este observatório, a secretaria afirma que foi comunicada via Ouvidoria e encaminhou para as Polícias Civil e Militar para que os casos fossem investigados. Os PMs são os principais acusados de violações, além de atuação em conjunto com pistoleiros a mando de fazendeiros. Movimentos sociais não acreditam no andamento da investigação e lembram que os principais cargos do estado são ocupados por integrantes da corporação.
Em reportagem publicada no dia 05, De Olho nos Ruralistas divulgou depoimentos de diversos camponeses sobre abusos cometidos ao longo da reintegração de posse, suspensa por ordem do Supremo Tribunal Federal (STF). Em conversas na terça-feira, 16, os camponeses denunciam novos abusos, como apreensões de veículos e objetos de trabalho sem qualquer justificativa e ameaças e a entrada sem autorização em reuniões da comunidade. As informações contrariam a nota divulgada pela secretaria, segundo a qual “a situação é de tranquilidade e o patrulhamento pelas forças policiais permanece visando evitar novas invasões e manter a segurança”.
Mesmo depois de suspensa a reintegração de posse e da determinação que autorizava o retorno das famílias para a área, os PMs continuaram a cercar a região do acampamento por mais alguns dias. Enquanto durou o cerco, além da proibição da circulação de pessoas, os camponeses denunciaram a restrição à entrada de alimentos. Muitas casas foram destruídas, assim como roças. Eles citam também a contaminação de poços com combustível. Alguns foram expulsos de suas casas, que passaram a ser usadas como base e moradia dos policiais. Os PMs também teriam matado animais de criação dos moradores para se alimentar. A secretaria nega e diz que os policiais receberam marmitas.
A Polícia Militar não respondeu a quatro perguntas feitas pelo observatório, com base nos depoimentos dos camponeses: sobre a restrição à entrada de alimento para os acampados, que tiveram suas roças destruídas; a destruição de casas e o uso de outras como centro de operações policiais; a divulgação de fotos de crianças e adolescentes da ocupação em redes sociais com objetivo de constranger as famílias; interrogatórios ilegais de crianças e adolescentes feitos por PMs.
A Secretaria de Segurança Pública confirmou que usou três helicópteros, um deles com atiradores em sua guarnição, durante as operações contra o acampamento. “É procedimento operacional que dentro da tripulação de uma aeronave militar, haja um policial atirador, de forma que somente uma das aeronaves tinha a figura do atirador”, afirma a nota. Segundo os advogados da Abrapo, cinco camponeses foram mortos por disparos efetuados a partir de um helicóptero de agosto para cá.
Em outubro, dois assentados do Acampamento Dois Amigos, também ligado à LCP e no mesmo distrito, foram assassinados pela Polícia Militar. Gedeon José Duque e Rafael Gasparini Tedesco foram mortos a tiros. Duque tinha antecedentes criminais e chegou a cumprir pena por homicídio. Tedesco, não. A versão policial é a de que houve confronto, ao contrário do que contam os camponeses.
Dois meses antes, Amarildo Aparecido Rodrigues, 49 anos, seu filho Amaral José Stoco Rodrigues, 17 anos, e Kevin Fernando Holanda de Souza, de 21 anos, foram assassinados pela PM dentro do acampamento Tiago dos Santos. Segundo sete testemunhas que não foram atingidas pelos disparos, ouvidas pelos advogados, dois helicópteros foram utilizados no ataque.
A secretaria admitiu que a organização dos camponeses dificultou a ação policial. Como exemplo, citou a “ponte de madeiras do Rio Jacu, na linha 29b Km 60, que foi queimada”. Segundo os camponeses, a polícia começou a operação na área uma semana antes de iniciar a reintegração de posse. Eles relatam uma série de ameaças durante este período, inclusive com rajadas de tiros disparadas durante a noite. Árvores também foram usadas para bloquear a passagem.
A reintegração de posse da área foi pedida pela Leme Empreendimentos. A empresa pertence ao fazendeiro Antônio Martins dos Santos, conhecido como Galo Velho e considerado o maior grileiro da Amazônia Ocidental; e a seu irmão, o advogado Sebastião Martins dos Santos.
Os dois são alvo, desde o ano passado, de uma operação do Ministério Público Federal que investiga a grilagem de terras. Entre os investigados no caso estão um juiz e um servidor federal. A quadrilha teria faturado pelo menos R$ 330 milhões com crimes agrários entre 2011 e 2015, em Rondônia. Em razão desta investigação, o registro da fazenda alvo da reintegração de posse está bloqueado. Galo Velho é citado como grileiro desde o Livro Branco da Grilagem, publicado no fim dos anos 90.
Além da PM, a Força Nacional de Segurança Pública (FNSP) tem participado das operações contra os camponeses. Como o De Olho já mostrou, a FNSP foi acionada em uma articulação da administração estadual com o governo Jair Bolsonaro. Além de o próprio presidente acusar, sem provas, a LCP de ser uma “guerrilha terrorista”, o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) e o secretário especial de Assuntos Fundiários, Luiz Antônio Nabhan Garcia, participaram diretamente das articulações.
Para o procurador da República Raphael Bevilaqua, do Ministério Público Federal (MPF) em Rondônia, “Bolsonaro inventou ´guerrilha terrorista´ em RO para justificar ação da Força Nacional“, acusações fantasiosas que também foram usados pelo governo estadual. As acusações de “terrorismo” e formação de “guerrilha”, no entanto, começaram antes, em 2003, quando autoridades ligadas a fazendeiros locais pressionavam o governo federal para que empregasse o Exército no combate à LCP. Frente à impossibilidade de usar tropas regulares, a FNSP entrou no radar dos ruralistas.
Segundo o procurador, o Ministério da Justiça resistiu a mandar ao Ministério Público Federal as justificativas para a utilização da força contra os camponeses. Quando apresentou o plano, usou menções genéricas que não justificavam a decisão. A FNSP foi enviada pelo governo federal em maio pelo prazo inicial de 90 dias e teve sua permanência renovada três vezes, todas pelo prazo de 30 dias.
Para saber mais sobre a reocupação da área pelos camponeses que ocorreu no fim de outubro, assista à edição do De Olho na Resistência que detalha a volta e a tensão na região:
| Leonardo Fuhrman é repórter do De Olho nos Ruralistas. |
Foto principal (Agência Nova Democracia): PMs revistam camponeses acampados na área rural de Porto Velho
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