Fome, água imprópria, crianças coagidas e assassinatos: as armas da PM contra camponeses em RO

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Moradores dos Acampamentos Tiago dos Santos e Ademar Ferreira, ligados à Liga dos Camponeses Pobres, relatam violências durante reintegração de posse e após retorno deles às terras; meninos e meninas dizem ter medo de ir à escola

Por Leonardo Fuhrmann, em Porto Velho

As palavras devem alcançar o maior número possível de pessoas, mas devem estar desacompanhadas de rostos e de vozes. Este é um dos cuidados que os trabalhadores despejados dos acampamentos Tiago dos Santos e Ademar Ferreira — em Nova Mutum Paraná, um distrito do extenso município de Porto Velho — tomam para denunciar e conter a situação que viveram nas mãos de policiais militares e agentes da Força Nacional de Segurança Pública. As famílias integrantes da Liga dos Camponeses Pobres (LCP) foram expulsas de suas terras no dia 19 de outubro e levadas para a Escola Municipal de Educação Fundamental (EMEF) Santa Júlia, onde estavam no último dia 26, quando a maioria dos depoimentos desta reportagem foi colhida.

A pequena escola, de cinco salas, não tem nenhuma outra estrutura além das salas. O grupo, com mais de trinta crianças, ficou acampado no pátio e teve de improvisar sua cozinha coletiva lá mesmo. Fossas foram cavadas no terreno ao lado da escola, porque os banheiros não eram suficientes para o número de pessoas, que passava de cem. Outros despejados foram para casas de parentes e amigos, segundo a LCP.

Durante a semana que permaneceram lá, um surto de diarreia atingiu mais de uma dezena de pessoas. Algumas crianças precisaram de atendimento médico. A Associação Brasileira de Advogados do Povo (Abrapo), que dá apoio jurídico aos camponeses, colheu uma amostra da água da escola. O exame feito em um laboratório do município apontou “desconformidade” para o consumo humano.

Para saber mais sobra a volta dos camponeses para o acampamento após decisão judicial, assista o último episódio da série audiovisual De Olho na Resistência.

O anonimato é uma maneira de ficarem menos visados e não serem alvo de mais violência policial. Três dias após a visita da reportagem, dois assentados do Acampamento Dois Amigos, também ligado à LCP e no mesmo distrito, foram assassinados pela Polícia Militar. Gedeon José Duque e Rafael Gasparini Tedesco foram mortos a tiros. Duque tinha antecedentes criminais e chegou a cumprir pena por homicídio. Tedesco, não. A versão policial é a de que houve confronto, ao contrário do que contam os camponeses.

Segundo os advogados da Abrapo, os disparos foram efetuados a partir de um helicóptero. Já em terra, dizem eles, os policiais invadiram as casas dos parentes dos mortos e, em um interrogatório informal, cometeram uma série de agressões por mais de duas horas seguidas.

POLICIAIS FIZERAM DISPAROS DE HELICÓPTEROS, CONTAM OS CAMPONESES

O uso de helicópteros em ataques policiais contra os moradores não é novidade. Em agosto, Amarildo Aparecido Rodrigues, 49 anos, seu filho Amaral José Stoco Rodrigues, 17 anos, e Kevin Fernando Holanda de Souza, de 21 anos, foram assassinados pela PM dentro do acampamento Tiago dos Santos. Segundo sete testemunhas que não foram atingidas pelos disparos, ouvidas pelos advogados, dois helicópteros foram usados no ataque.

Eles contaram que Amarildo e Amaral roçavam a terra quando foram mortos e Kevin dirigia sua moto em direção ao lote em que morava. As testemunhas atribuíram a PMs à paisana o assassinato de dois sitiantes da região no dia 23 de setembro. Segundo eles, os policiais trabalhavam como guaxebas, termo que designa pistoleiros que atuam para grileiros.

Polícias revistam carro próximo ao acampamento Tiago dos Santos, durante a volta dos camponeses. (Foto: LCP)

A violência cotidiana não se resume aos grandes episódios, como os assassinatos. São agressões, humilhações, ameaças e constrangimentos contra homens, mulheres, idosos e crianças. Histórias que foram contadas em uma roda de conversa, na presença da ouvidora da Defensoria Pública estadual, um procurador da República e integrantes da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Uma mãe relata que seus filhos não querem mais ir para a escola. Motivo: eles são alvo de ofensas e chacotas dos colegas depois de terem sido expostos nas redes sociais por policiais como “ladrões de terra”. “O governo do estado fala tanta coisa a nosso respeito que as pessoas fora passam a nos tratar como criminosos”, diz. “Queria que eles viessem aqui agora e apontassem na nossa cara quem de nós que é bandido”. Outros pais descrevem crianças sendo revistadas dentro dos acampamentos e submetidas a interrogatórios informais. “Eles colocaram um monte de armas na frente do meu filho e pediram para ele apontar quais delas o pai dele tinha em casa”, conta um deles.

ACUSADO DE GRILAGEM FOI QUEM PEDIU REINTEGRAÇÃO DE POSSE

Os abusos são um problema antigo. Mas a situação ficou mais grave em outubro, quando a Justiça estadual de Rondônia concedeu uma liminar de reintegração de posse da fazenda, uma área total de 57 mil hectares, à Leme Empreendimentos. A empresa pertence ao fazendeiro Antônio Martins dos Santos, conhecido como Galo Velho e considerado o maior grileiro da Amazônia Ocidental; e a seu irmão, o advogado Sebastião Martins dos Santos.

Os dois são alvo, desde o ano passado, de uma operação do Ministério Público Federal que investiga a grilagem de terras. Entre os investigados no caso estão um juiz e um servidor federal. A quadrilha teria faturado pelo menos R$ 330 milhões com crimes agrários entre 2011 e 2015, em Rondônia. Em razão desta investigação, o registro da fazenda alvo da reintegração de posse está bloqueado.

Antes de começarem o despejo, os policiais passaram uma semana na área para planejar a ação, que começou a ser feita no último dia 19. Três dias depois, a ação foi suspensa por decisão da ministra Carmen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal. Ela fez valer a decisão do tribunal que suspendeu todas as desocupações de áreas coletivas habitadas durante a pandemia de Covid-19. Ela determinou que a situação anterior à atuação da PM fosse restaurada.

“Polícia está articulada com a pistolagem”

Em diálogo com a Prefeitura de Porto Velho, a Ouvidoria Externa da Defensoria Pública estadual, o Ministério Público Federal e a Comissão Pastoral da Terra, a LCP levou os camponeses da escola para os acampamentos no dia 26. Além deles, a Associação de Juízes para a Democracia (AJD) enviou uma nota contra a criminalização do movimento pelo governo estadual. “O Estado de Rondônia, por sua segurança pública, não pode seguir o caminho da criminalização do movimento camponês e da luta pela terra, em atuação próxima e articulada com a pistolagem e latifundiários da região, fato este já denunciado pelo Ministério Público”, afirma a organização.

O grupo, no entanto, foi barrado por um bloqueio da PM antes de chegar ao local. Depois de duas horas de negociação com o comandante da operação, a polícia passou a exigir a identificação de todos que entrariam nas terras. O comandante disse que cada um seria levado ao seu lote. Os camponeses aceitaram as condições, mas, como já havia anoitecido, eles não quiseram ser levados pela PM no escuro e preferiram começar o retorno na manhã seguinte.

POLICIAIS FICAM NAS CASAS DOS CAMPONESES E COMEM SEUS ANIMAIS

Enquanto durou o cerco, além da proibição da circulação de pessoas, os camponeses denunciaram a restrição à entrada de alimentos. Muitas casas foram destruídas, assim como roças. Eles citam também a contaminação de poços com combustível. Alguns foram expulsos de suas casas, que passaram a ser usadas como base e moradia dos policiais. Eles também teriam matado animais de criação dos moradores para se alimentar.

Assembleia dos acampamentos Tiago dos Santos e Ademar Ferreira, em outubro. (Foto: Agência Nova Democracia)

“A gente ficou desabrigado e tinha de ver eles morando em nossas casas e fazendo churrasco com nossos animais”, citou um agricultor. “Não pude tirar nem mantimentos antes de eles destruírem a minha casa”, afirmou outro. Os mesmos policiais que faziam churrascos limitavam a entrada de comida para os acampados. “A gente só podia entrar com um quilo de arroz”, conta um morador. “Nem o leite para as crianças era permitido passar”.

Os moradores relatam que são abordados por encapuzados, em caminhonetes com vidro escuro e sem placa, que se identificam como policiais. Além dos camponeses, estão na ocupação também pelo menos dez famílias indígenas, que também sofrem os mesmos constrangimentos. O posto de saúde dentro do acampamento também foi fechado e os medicamentos foram apreendidos.

Uma moradora foi revistada quando havia acabado de ir retirar no correio os perfumes e maquiagens que vende para ajudar a manter a casa. “Eles foram abrindo tudo, jogaram os perfumes no chão”, conta. “Do jeito que está, a gente já não tem ganhos e eles nos tiram o pouco que temos”. Outros relataram a destruição de carros e motos. E motos apreendidas, sem nenhum auto de infração.

“Nem o leite para as crianças era permitido passar”

Na manhã do dia 27, a entrada das famílias foi autorizada pela PM. Primeiro, apenas as setenta que estavam na escola. Após nova negociação, foi permitida a entrada de outras famílias que moravam no acampamento. O bloqueio permaneceu lá até a última sexta-feira (05). Mesmo após a retirada, a polícia permanece fazendo o policiamento na região. Segundo os camponeses, as violências e arbitrariedades continuam.

Segundo um dos advogados da liga, um dos principais motivos de revolta dos policiais é a capacidade de resistência dos trabalhadores. “Em uma das reuniões, um dos comandantes responsáveis pela ação nos disse que a polícia não conseguiu alcançar todas as linhas, porque os camponeses destruíram pontes e usaram grandes árvores para fechar as estradas”.

| Leonardo Fuhrman é repórter do De Olho nos Ruralistas |

Imagem principal (Agência Nova Democracia): Liga dos Camponeses Pobres resiste às violências dos militares em Rondônia

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