Confira também em vídeo a edição do De Olho na Resistência sobre o tema; com redes de apoio, quilombolas, camponeses e indígenas atuam na divulgação de informações das suas e de outras comunidades no Cerrado, na Amazônia ou no sul do país
Por Luís Indriunas
Leandro Santos, do quilombo do Cocalinho, em Parnarama (MA), começou a coletar imagens e vídeos de sua comunidade e logo percebeu o alcance da ação:
— Eu comecei sem treino, fui fazendo. Queria registrar o legado de trabalhar o coletivo, que vai da farinhada à colheita. Tudo é coletivo. A própria identidade surge através do coletivo.
Ele começou a fotografar e filmar há apenas três anos. Para a Campanha em Defesa do Cerrado, Leandro gravou um depoimento da quilombola Raimunda Nonata, fotografou o cotidiano, participou da elaboração de publicações. Seus trabalhos e de outros integrantes da comunidade estão no Facebook e no Instagram.
Além do resgate dos saberes da sua comunidade, o fotógrafo quilombola atua com outras comunidades como a do Tanque da Rodagem, que, desde 10 de setembro, está acampada perto de área de mata que foi destruída por fazendeiros locais. A comunidade reivindica a área desde 2013.
A comunicação popular no campo é tema da última edição do De Olho na Resistência, programa semanal do De Olho nos Ruralistas, apresentado por Luma Prado. Confira aqui o vídeo:
O observatório passará a detalhar também, todo mês, experiências significativas de camponeses, indígenas e quilombolas no campo da comunicação.
Em 1994, o professor Vaulino Huni Kui, pensando em formas de aperfeiçoar o ensino, comprou uma máquina fotográfica Kodak com parte do seu salário de educador. O desejo era registrar alguns eventos da escola que atende dez aldeias da Terra Indígena Kaxinawá do Rio Jordão. A partir das cerimônias ele passou a fazer entrevistas e registrar sistematicamente as festas, as pinturas e outros costumes.
Ao longo dos anos, Vaulino foi atualizando seus equipamentos da forma como conseguia. Chegou a ter mais de mil horas de vídeo gravado, mas acabou perdendo boa parte desse material por problemas no computador. Mas não desistiu. Em agosto, participou de um treinamento da Witness Global, uma organização internacional de direitos humanos que se propõe a treinar as populações vulneráveis a usar de meios tecnológicos para denunciar violações.
Vaulino tem se preparado para registrar possíveis invasões. Isolada e razoavelmente protegida, a terra indígena registrou desmatamento zero em 2009 e 2015. Em 2020, no entanto, a área desmatada chegou a 210 hectares, o maior número nos últimos vinte anos. “É comum aparecer caçadores na área, mas estamos atentos para as derrubadas também”.
O território Huni Kui, com mais de 90 mil hectares, fica na fronteira com o Peru, onde o povo Huni Kui também vive. Cerca de 2 mil indígenas moram no território Os Huni Kui dividem a área com outras três etnias: Shanenawá (Katukina), Madija (Kulina) e Ashaninka (Campa). Indígenas não contatados também circulam no território.
Algumas etnias têm utilizado com frequência as redes sociais e outros canais de comunicação. Por enquanto, os Huni Kui usam ferramentas de trocas de mensagens de celulares para se comunicarem entre si, até pelas dificuldades de sinal em áreas remotas. Vaulino espera que, com apoio, possa ampliar a divulgação das vidas no seu território.
No 1º Encontro de Povos e Comunidades Impactados pelo Matopiba, em 2015, ficou claro para os participantes a necessidade da organização de uma rede de comunicadores. Em janeiro do ano seguinte, surgiu o Coletivo de Comunicação da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, com cerca de vinte profissionais de comunicação e comunicadores populares.
“Desde o início, trabalhamos construindo coletivamente não só entre os comunicadores, mas com toda a rede”, conta Bruno Santiago Alface, assessor de comunicação da campanha. A rede conta com sites e as redes sociais para divulgar suas informações, denunciando o avanço do agronegócio na região e a participação dos governos nesse processo de apropriação e devastação.
Um dos fóruns para repercussão é o Tribunal Permanente dos Povos em Defesa dos Territórios do Cerrado, onde são denunciados os destruidores dos recursos hídricos na região. Uma das audiências, entre os dias 30 de novembro e 1º de dezembro, discutiu a injustiça hídrica e o racismo ambiental contra os povos do Cerrado.
Paralelamente, os comunicadores trabalham dentro das comunidades incentivando a produção local de conteúdo, em conjunto com educadores. O livro Saberes dos Povos do Cerrado e Biodiversidade é um exemplo desse esforço. Leandro dos Santos participou em duas frentes: com as fotos e na roda de conversa que gerou um dos artigos da publicação.
Não há dúvida que vídeos são aliados na resistência dos povos dos campos. Famosos por um fenômeno de replicação do nome da etnia nas redes sociais, nos anos 2010, os Guarani Kaiowá filmam os ataques contra seus acampamentos no Mato Grosso do Sul. Camponeses do Cerrado baiano usam drones para mostrar a devastação ilegal do agronegócio.
Com experiência no treinamento de moradores das grandes cidades brasileiras contra a violência policial, a Witness ampliou seu apoio e treinamento para os povos do campo. Fundada em 1992 pelo músico e ativista Peter Gabriel e presente no Brasil desde 2013, a organização já deu oficinas para mais de mil pessoas, de moradores de comunidades cariocas a camponeses paraenses.
Para Victor Ribeiro, coordenador da Witness no Brasil, a comunicação a partir da base é um “processo irreversível”. Nos encontros ou tutoriais disponíveis na internet, não são apresentados apenas os aspectos técnicos para uma boa prova em vídeo, mas questões legais, histórias de casos já ocorridos e a influência e limites dessas gravações.
Assim como no Cerrado, o trabalho da Witness contribui para a documentação e resgate cultural, como no caso de Vaulino Huni Kui. O professor conta que os encontros promovidos em rede garantem uma troca de conhecimento e informação entre os participantes que é muito rica:
— A minha escola na minha vida foi andar nesse Brasil, conhecendo outras culturas indígenas, outros parentes e também outras culturas diferentes, modos de vida diferentes.
Os primeiros trabalhos foram nos anos 90, documentando as ocupações do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) no Rio Grande do Sul. O Coletivo Catarse é uma cooperativa de comunicação, que trabalha desde a resistência até as manifestações culturais.
A antropóloga Clementina Marechal atua na divulgação da retomada dos Kaingang em diversas áreas no sul do país. Numa perspectiva de real intercâmbio, todo o trabalho em vídeo teve a codireção da xamã Iracema Gá Teh Nascimento. “Numa perspectiva de aprendizagem mútua”, acrescenta. Ao mesmo tempo, o coletivo atua na denúncia como no caso das mortes e expulsão das famílias da Terra Indígena da Serrinha, no Rio Grande do Sul.
O jornalista Marcelo Cougo aponta que o coletivo foi criado numa concepção de rede. Do ponto de vista do trabalho cooperado, o coletivo foi um dos pioneiros com sua experiência tornando-se uma das referências para a elaboração da Lei do Cooperativismo de 2012.
Durante a pandemia, o trabalho continuou na mobilização como na resistência ao avanço da mineração no Rio Grande do Sul e no resgaste cultural, como na oficina de tambor de sopapo, tradição dos negros na região Sul. O coletivo continua cobrindo as ações do MST pelo país.
Assim, trabalhando com a base e em redes, comunicadores têm conseguido unir e ampliar a resistência dos povos do campo. Nem sempre são alcançados os resultados esperados, como aponta a Witness, ao listar casos que não foram solucionados mesmo com as provas audiovisuais. Por outro lado, ampliam-se as possibilidades de registros não somente para a conservação da memória, mas também para estratégias de resistência.
| Luís Indriunas é editor do De Olho nos Ruralistas. |
Imagem principal (Montagem com fotos de Leandro dos Santos, Vaulino Huni Kui, Coletivo Catarse Repórter): quilombolas, indígenas e camponeses documentam saberes e registram violências
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