Dossiê “Arthur, o Fazendeiro” identificou 13 licitações vencidas por empresas do clã Pereira em municípios comandados por parentes do presidente da Câmara em Alagoas; frigorífico que compra bois em terra indígena e filho da ex-prefeita Pauline Pereira são os principais beneficiários
Por Katarina Moraes e Bruno Stankevicius Bassi
Pauline de Fátima Pereira Albuquerque exerce um papel central no clã comandado por Arthur Lira (PP-AL). Ela é a principal ponte entre o império agropecuário e a face política da família em Alagoas. Entre os bois e as urnas mora o uso da máquina pública para beneficiar os negócios dos Pereira.
Publicado na segunda-feira (13/11), o dossiê “Arthur, o Fazendeiro” esmiúça a face agrária do líder do Centrão. A partir de bases de dados da Receita Federal, De Olho nos Ruralistas identificou pelo menos 47 empresas que têm, como sócios, integrantes das família Lira e Pereira, os dois braços do presidente da Câmara em Alagoas. Desse total, 33 constam como ativas no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ). A partir da lista, nossa equipe vasculhou os portais de transparência de seis municípios alagoanos geridos, nos últimos doze anos, por familiares de Arthur Lira.
O levantamento identificou pelo menos treze licitações de fornecimento de carne e outros materiais, firmados entre essas empresas e as prefeituras de Campo Alegre, Junqueiro e Teotônio Vilela. Os contratos somam R$ 8,31 milhões.
O maior beneficiário das contratações é o Frigorífico Dom Grill, de Nicolas Agostinho Pereira dos Santos, que adquiriu 472 cabeças de gado oriundas da área demarcada da Terra Indígena Kariri-Xocó: “Família de Arthur Lira destruiu mata sagrada dos Kariri-Xocó em Alagoas“. Dos cinco contratos assinados pela empresa, apenas três tiveram os valores divulgados. Estes somam R$ 3,9 milhões.
A primeira parceria firmada entre Nicolas e seus primos ocorreu em Campo Alegre, no último ano da gestão da prefeita Pauline Pereira. No dia 17 de junho de 2020, foi publicada no Diário Oficial dos Municípios de Alagoas uma ata de registro de preços para a aquisição de 8,55 toneladas de carne de boi moída e resfriada da Dom Grill, pelo valor de R$ 102.514,50. A ata de preços é um documento de caráter vinculante utilizado na administração pública, cuja assinatura pressupõe uma obrigação entre as partes e precede a formalização do contrato de serviços.
O frigorífico venceu outras duas licitações abertas por Pauline e finalizadas em 2021, durante o mandato de seu sucessor, Nicolas Teixeira Tavares Pereira, o Colinha (PP). Na principal, os lotes adquiridos do frigorífico somam R$ 2,28 milhões. Além dos contratos em Campo Alegre, a empresa conquistou um pregão de R$ 1,51 milhão em Junqueiro, governada à época pelo prefeito Carlos Augusto (PP), um importante aliado dos Pereira na região. Os dados constam no Diário Oficial.
As relações de parentesco são próximas: Nicolas Agostinho é neto de Adelmo Pereira, enquanto Colinha é filho de Oceano Tavares Teixeira. Os dois, já falecidos, eram irmãos de João José Pereira, o “Prefeitão”, pai de Pauline.
Mas a identificação da genealogia não foi imediata. Isso porque o fundador da Dom Grill costuma ocultar o sobrenome Pereira, assinando como Nicolas Agostinho P. Santos. É essa a razão social que aparece nos contratos com as prefeituras e nos rótulos dos produtos vendidos em sua casa de carnes, com sede em Campo Alegre e filiais em Maceió e Arapiraca.
De Olho nos Ruralistas tentou contato com as prefeituras e empresas citadas no dossiê, bem como junto ao gabinete de Arthur Lira. Não houve retorno até o fechamento da reportagem.
Segundo Nicolas Pereira, a escolha do município que abrigaria a Dom Grill ocorreu devido à presença do Matadouro Municipal de Campo Alegre, construído em 2013, durante o primeiro mandato de sua prima Pauline.
Sem uma unidade de abate própria, o frigorífico de Nicolas destina a maioria dos animais criados em fazendas do clã Pereira para esse matadouro público, conforme descrito nas Guias de Trânsito Animal (GTA) anexadas ao processo do espólio de Adelmo, às quais a reportagem teve acesso. A operação da Dom Grill depende disso para se manter viável.
Trata-se, portanto, de uma cadeia verticalizada. Cada etapa do processo agropecuário é controlada pela família, que também utiliza as unidades da Dom Grill para comercializar os queijos e laticínios produzidos na Fazenda Engenho Velho pela JJPZ Agropecuária.
Mais uma vez os nomes ocultam a origem: os produtos são vendidos sob a marca Engenho do Queijo, enquanto o nome da empresa vem das iniciais de Joãozinho, Jó, Pauline e Zirleno, os quatro filhos mais velhos do Prefeitão. Localizada em Junqueiro, às margens da BR-101, a propriedade é uma das principais referências na criação de gado Gir Leiteiro em Alagoas e “exporta” sua genética para pecuaristas de todo Brasil. Entre os patrocinadores dos leilões consta o frigorífico Dom Grill.
O controle da comercialização não é o bastante para os Pereira. Paralelamente, a família tenta amarrar a última ponta solta: o sistema de inspeção agropecuária.
Em fevereiro de 2023, o Matadouro Municipal de Campo Alegre foi interditado pelo Instituto do Meio Ambiente de Alagoas (IMA) por insalubridade. Os fiscais flagraram gatos e cachorros revirando restos de bois espalhados pelo abatedouro, e sangue, fezes e outros rejeitos correndo diretamente para o solo. A interdição durou menos de uma semana, graças à intervenção do prefeito Colinha e do deputado estadual Fernando Pereira, irmão de Pauline.
Ao comunicar a retomada dos abates, o mandatário de Campo Alegre fez questão de destacar que o abatedouro possuía o selo de verificação outorgado pela Agência Gerenciadora de Inspeção do Matadouro de Campo Alegre (Agimca). A Agimca, por sua vez, opera em convênio com o Sistema de Inspeção Municipal do Consórcio Intermunicipal do Agreste Alagoano (SIM/Conagreste). O Conagreste tem, como vice-presidente, ninguém menos que Teófilo Pereira, tio de Nicolas Agostinho e primo de Colinha e Pauline.
O uso do matadouro público não tem só motivações econômicas: em 2022, o atual prefeito de Junqueiro, Leandro Silva, acusou Colinha, seu rival, de proibir o uso do matadouro por produtores do município.
A relação de Nicolas com os filhos do Prefeitão sempre foi bastante próxima. Pauline e a irmã, a deputada Jó Pereira, estiveram presentes na cerimônia de assinatura do Registro Estadual de Estabelecimento do frigorífico, entregue em mãos pelo então governador Renan Filho, em dezembro de 2018. Em janeiro de 2021, foi a vez de Joãozinho e Fernando prestigiarem o primo durante a inauguração da primeira unidade da Dom Grill em Maceió.
Em uma das fotos, Nicolas posa com Renan Filho. Até aquele momento, Renanzinho mantinha boas relações com o clã Pereira. A ruptura viria em 2022, após um desentendimento entre Arthur Lira e seu pai, o senador Renan Calheiros.
No mesmo clique, abraçando o ex-governador, aparecem o empresário Dudu Albuquerque e Eduardo Medeiros Albuquerque. Eles são, respectivamente, marido e filho de Pauline Pereira. Dois meses antes da inauguração, Dudu fora preso em Arapiraca, por porte ilegal de arma de fogo. Em 2017, durante um breve período, o marido da ex-prefeita de Campo Alegre ocupou um cargo comissionado no gabinete do ex-senador Fernando Collor.
Assim como Nicolas, o filho de Pauline abrevia o Pereira do nome. Sua empresa, o frigorífico E.P. de Albuquerque Ltda., venceu cinco licitações em municípios controlados pela família entre 2019 e 2020. Os contratos são relativos ao fornecimento de merenda escolar e somam R$ 2,70 milhões.
Quatro deles ocorreram em Teotônio Vilela, governada à época pelo tio de Eduardo, Joãozinho Pereira. No maior deles, foi registrada a ata de registro de preços para 30 toneladas de carne bovina, ao preço de R$ 797 mil. O último contrato foi registrado em 30 de outubro de 2020, relativo à “aquisição de gêneros alimentícios” pela prefeitura de Junqueiro, na ordem de R$ 1,06 milhão. Essa licitação também contou com a participação do frigorífico Dom Grill.
A empresa de Eduardo Pereira possui dois CNPJs registrados em Campo Alegre. O primeiro, da matriz, está ativo; o segundo, de uma subsidiária, foi baixado pela Receita Federal em 2023. Nenhum dos endereços parece abrigar um frigorífico ou uma casa de carnes. Um deles, referente à matriz, abriga o restaurante Point da Gastronomia. O outro, localizado na Rodovia Teotônio Vilela, não pôde ser encontrado. Tampouco há endereços ligados à marca comercial da empresa, Top Carnes.
O outro filho de Pauline e Dudu também foi beneficiado pelas licitações. Talvanes de Albuquerque Pontes Neto, sócio da Avante Distribuidora Ltda., venceu um certame cujo teto era de R$ 80 mil para fornecer materiais de limpeza, higiene e descartáveis ao município de Campo Alegre. O valor final não foi informado.
Uma das empresas participantes da licitação, a MRB Distribuidora de Acessórios Empresariais Eireli, chegou a entrar com um recurso administrativo contra a contratação da Avante. Alegou que a empresa de Talvanes não cumpriu com as exigências do edital. A procuradoria geral do município declarou depois que a Avante estava habilitada e manteve o contrato.
Ainda em Campo Alegre, o marido da deputada Jó Pereira, André Luiz de Mello Feitosa, ganhou uma licitação de R$ 1,64 milhão em 2017, por meio da empresa Mello & Barbosa Comércio e Serviços de Locação Ltda. André também fechou negócios em Junqueiro, em 2011, enquanto o cunhado, Fernando Pereira, era prefeito. A empresa dele, que até então se chamava Téo Gas Ltda, venceu um pregão de R$ 69 mil para abastecer as secretarias e órgãos municipais com água mineral e gás engarrafado.
A aliança com a família Pereira permitiu a Benedito de Lira, pai do presidente da Câmara, chegar em lugares improváveis para o rapaz franzino que, aos 24 anos, estreara na vida pública como vereador da pequena Junqueiro. No fim dos anos 1960, mudou-se para Maceió, onde teve, com Ivanete Pereira, seu primogênito, Arthur. Na capital, tornou-se vereador, depois deputado estadual por quatro mandatos. Brasília estava a um pulo: se elegeu deputado federal em 1994 e, em 2010, alcançou o Senado. Em 2020, após dois anos sem mandato, retornou à política local ao se eleger prefeito de Barra de São Miguel, no litoral alagoano.
Ao longo desses anos, Biu manteve relações próximas com a família de Ivanete, mesmo após o divórcio. Em especial com João José Pereira, o Prefeitão, a quem chamava de “primo-irmão”. Após o falecimento dele, em 2010, Biu transferiu o carinho para os filhos do político junqueirense: seu afeto por Pauline é notório e pode ser constatado em dezenas de fotos publicadas nas redes sociais de um e de outro.
Ao assumir seu assento no Senado, Benedito de Lira se consolidou como patriarca de sua família de “consideração”. Essa condição foi reforçada pela morte de Adelmo Pereira, com quem o Prefeitão tocava seus negócios agropecuários.
Foi nesse período que o clã, em sua segunda geração, passou a eleger representantes em outros municípios do Agreste alagoano. Em 2008, Fernando Soares Pereira foi eleito prefeito de Junqueiro, retomando o cargo perdido no pleito anterior por seu primo Pedro Henrique Pereira, o Peu — escolhido pelo Prefeitão para sucedê-lo nas eleições de 2004. Peu conquistou em 2008 a prefeitura de Teotônio Vilela, sucedendo a outro João José: dessa vez o filho, Joãozinho Pereira.
Em 2012, Pauline Pereira venceu a disputa em Campo Alegre. Fernando e Peu se reelegeram. Nas eleições seguintes, novas conquistas. Em Teotônio Vilela, Peu devolveu o bastão a Joãozinho, que abandonou o mandato na Assembleia Legislativa para voltar à prefeitura do município. Em Junqueiro, Fernando elegeu seu vice, Carlos Augusto Almeida. Pauline foi reeleita em Campo Alegre.
Em 2020, foi a vez de Teófilo Pereira, filho de Adelmo e administrador das fazendas em terra indígena, vencer as eleições em Craíbas após amargar derrotas nos três pleitos anteriores. Enquanto isso, em Junqueiro, Carlos Augusto perdia a reeleição para Cícero Leandro Pereira da Silva. O Pereira no nome não é coincidência: Leandro pertence a um ramo distante da família. Apoiado por Renan Calheiros, ele e seus irmãos se tornaram os principais rivais do clã na região.
Ainda em 2020, Fernando foi derrotado ao tentar expandir a influência para um novo município, São Miguel dos Campos. Em Campo Alegre, Pauline elegeu outro primo, Nicolas Colinha, para sucedê-la. E Peu retornou à prefeitura de Teotônio Vilela, após Joãozinho ser impedido de concorrer à reeleição: ele e a irmã foram condenados a ressarcir R$ 205 mil ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) devido a uma fraude ocorrida em licitações para merenda escolar. Isso ocorreu em 2005, quando Joãozinho era prefeito e Pauline secretária de Finanças de Teotônio Vilela.
As articulações políticas envolvem a Assembleia Legislativa. Desde 2010, os irmãos Joãozinho, Jó e Fernando exerceram, sucessivamente, os mandatos de deputados estaduais. O deputado de plantão é agora Fernando, o caçula, já que sua irmã, Jó, disputava o governo estadual como vice de Rodrigo Cunha (PODE). Apoiada por Bolsonaro, a chapa foi derrotada pelo candidato de Renan Calheiros, Paulo Dantas (MDB). Fernando atualmente preside a Comissão de Agricultura e Política Rural da Assembleia.
| Bruno Stankevicius Bassi é coordenador de projetos do De Olho nos Ruralistas. |
| Katarina Moraes é jornalista. |
Foto principal (Facebook/Pauline Pereira): com adesivo de Fernando Pereira no peito, Arthur Lira recebe a prima Pauline em comício.
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