Novo alvo do agronegócio e da indústria química, setor de bioinsumos têm crescimento de 339% nos registros desde 2015; debate sobre a multiplicação feita no estabelecimento rural tem rachado a bancada ruralista; em seu terceiro ano, projeto Brasil Sem Veneno mostra disputas de narrativas em torno dos agrotóxicos
Por Flávia Schiochet, de O Joio e o Trigo para o especial Brasil Sem Veneno
Faz quase cinco anos que a produtora de gado de leite Luciana Dinato passou a usar bioinsumos nos 65 hectares de milho e 7 hectares de pastagem em sua propriedade familiar. As plantas são transformadas em alimento para um rebanho de 270 vacas na fazenda de 200 hectares em Água Fria, Goiás. A prática não substituiu completamente o uso de produtos químicos, mas diminuiu consideravelmente os custos de produção e os riscos de contaminação à saúde humana.
Luciana usa bioinsumos tanto para tratar o solo, as sementes e as plantas, como para enriquecer a ração animal. O conceito dado pelo Programa Nacional de Bioinsumos é amplo, e abarca todo tipo de produto, processo ou tecnologia de origem biológica. Dentro deste entendimento, encaixam-se práticas tradicionais de manejo da terra, como compostagem de vegetais e dejetos animais e inserção de insetos para controle de pragas.
Para um país acostumado a pensar em produtos químicos quando se fala do manejo no campo, os bioinsumos são um universo à parte de possibilidades.
Mas o termo bioinsumo foi criado para designar uma aparição mais recente e tecnológica da vida microscópica: os microrganismos isolados. São cepas de bactérias, leveduras, fungos, dentre outras formas de vida, usadas para controlar pragas, fertilizar o solo, tratar doenças das plantas e estimular seu crescimento.
Também chamadas de produtos biológicos, estas novas soluções estão no centro de um debate que envolve o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), as indústrias de agrotóxicos e as organizações que compõem o Instituto Pensar Agro (IPA), braço logístico da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), a bancada ruralista.
A disputa de narrativas promovida pelo agronegócio em torno dos agrotóxicos — e suas alternativas — é o tema da terceira fase do especial Brasil Sem Veneno, uma colaboração entre as redações de O Joio e o Trigo e De Olho nos Ruralistas. Em seu primeiro ano, o projeto mapeou as iniciativas de resistência contra os agrotóxicos pelo país e consolidou dados acadêmicos sobre os impactos desses produtos no corpo humano. Essa pesquisa deu origem a uma cartografia inédita e a uma cartilha sobre os impactos dos agrotóxicos, lançadas durante o 12º Congresso Brasileiro de Agroecologia, em 2023.
A fazenda de Luciana é de médio porte, mas ilustra bem a transformação que propriedades de diferentes tamanhos e regiões do Brasil têm passado nos últimos anos. Com equipamentos de alta tecnologia, como biorreatores de inox, ou em estruturas mais simples, como caixas d’água, estes produtores deixam de comprar parte dos agrotóxicos e fertilizantes químicos e passam a produzir alternativas biológicas em sua própria fazenda.
Para isso, adquirem os produtos biológicos em lojas agropecuárias e os usam como “fermento” para transformá-lo em um volume dezenas de vezes maior. Essa prática, chamada de multiplicação on farm, cresceu a partir da instituição do Programa Nacional de Bioinsumos, em 2020, mas ainda não foi regulamentada.
Isso porque o desenvolvimento do mercado de produtos biológicos e a adoção da prática de multiplicação on farm correram paralelamente. A falta de acesso do produtor rural a bancos de material genético que possam ser multiplicados faz com que muitos agricultores usem produtos industriais prontos para uso na lavoura em suas multiplicações on farm.
O tema é um impasse na discussão da regulamentação. A indústria quer que o produtor multiplique em sua propriedade apenas o material genético comercializado para este fim, que hoje é escasso no mercado. E o produtor quer que a regulamentação garanta o acesso às cepas e às tecnologias necessárias para multiplicar os microrganismos isolados em sua propriedade, com a facilitação de compra direta de bancos genéticos. Enquanto a normativa não avança, não há regras oficiais para a atividade on farm.
Apesar de a autonomia na produção de biológicos interessar a todos os agricultores brasileiros, a briga é entre dois cachorros grandes. De um lado, o médio e grande produtor rural vendo o quanto economiza ao multiplicar em sua própria fazenda microrganismos isolados para fertilizar a terra ou controlar pragas. Do outro, a indústria química, que mal começou a preencher as prateleiras com seus produtos biológicos, vendo que pode perder um nicho de mercado se seus produtos forem usados para “fazer render” na propriedade rural.
Ambos os setores querem que a prática seja regulamentada o quanto antes, mas os dois projetos de lei criados em 2021 com essa finalidade estão parados na Câmara dos Deputados.
O primeiro, do deputado Zé Vitor (PL-MG), passou pelas comissões da Câmara e seguiria diretamente para o Senado. Porém, um requerimento da bancada do Partido dos Trabalhadores (PT) travou essa manobra desde dezembro de 2022, e o projeto ficou à espera da votação em plenário. O segundo, do senador Jaques Wagner (PT-BA), está parado na Comissão de Meio Ambiente da Câmara desde setembro de 2023. Os parlamentares foram procurados pelo Joio, mas não retornaram o pedido de entrevista até o fechamento desta reportagem.
Com críticas às propostas dos parlamentares, representantes do agronegócio, indústrias químicas e biológicas se reuniram em 2024 para redigir uma proposta de substitutivo e tentar conciliar as diferentes necessidades e exigências do produtor rural e da indústria.
E foi aí que a bancada ruralista rachou pela primeira vez.
Geralmente unidos no lobby pelo agronegócio, os grandes produtores rurais e a indústria química divergiram, a ponto de a CropLife entrar em contradição. A associação representa 53 indústrias de germoplasma, biotecnologia, agrotóxicos e bioinsumos. Durante a elaboração da nova lei de agrotóxicos, a CropLife foi favorável à centralização de registro de agrotóxicos no Mapa. Já em relação à regulamentação de bioinsumos, produtos que apresentam riscos menores à saúde humana e ao meio ambiente, a CropLife defendeu o modelo tripartite de registro, exigindo que todos os produtos passem pela análise de Anvisa, Ibama e Mapa.
“Soou como um desejo de criar uma barreira artificial à entrada de indústrias pequenas no mercado”, analisa Reginaldo Minaré, diretor-executivo da Associação Brasileira de Bioinsumos (Abbins), uma das entidades que assina o substitutivo enviado à Câmara. “Uma gigante do mercado pode esperar um registro moroso até ter retorno de seu registro, mas os pequenos não têm esse tempo e dinheiro.” A CropLife foi procurada pelo Joio, mas não retornou até o fechamento desta reportagem. Em 20 de setembro, a associação publicou uma nota em que afirma ser favorável à produção on farm e que participou do processo de construção de um texto alternativo aos dois projetos de lei, mas não detalha sua posição sobre a gestão tripartite do registro.
A Abbins e a Associação Nacional de Promoção e Inovação da Indústria de Biológicos (ANPII Bio), associações que reúnem produtores de bioinsumos, defendem o pleito de registro junto a Ibama e Anvisa apenas no caso de um novo produto, que ainda não tenha similar aprovado.
Outras 50 entidades assinam o texto alternativo, apresentado à Câmara em julho. Entre elas, figuram a Confederação da Agricultura e Pecuária, a Sociedade Rural Brasileira, a Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja Brasil), a Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa), o Sindicato Nacional da Indústria de Produtos Para Defesa Vegetal (Sindiveg), e a Associação Nacional das Empresas de Produtos Fitossanitários (Aenda). A CropLife, que fazia parte desse grupo, saiu em junho.
O substitutivo propõe a previsão de acesso a bancos de material genético para os produtores para poder proibir o uso de produtos prontos do mercado para a multiplicação on farm. O texto também sistematiza e sugere os fluxos de registro para diferentes tipos de bioinsumos e garante a isenção de registro de bioinsumos de agricultores ligados a povos e comunidades tradicionais. Não há previsão de junção dos projetos de lei parados na Câmara, nem se a proposta de substitutivo será acolhida.
Não estão no centro desse debate os agricultores familiares, agroecológicos, orgânicos e de povos e comunidades tradicionais. Mas nem por isso a regulamentação não interessa a esse setor.
Mesmo que práticas tradicionais – como captura de colônias de microrganismos locais, compostagem, esterco e extrato de plantas – estejam isentas de controle do Estado, muitos produtores conjugam a prática tradicional com a multiplicação de microrganismos isolados.
Se forem muito duras as exigências para a instalação de uma biofábrica on farm, o acesso à tecnologia de multiplicação de microrganismos isolados pode ser inviável para agricultores familiares. Um biorreator de inox com painel eletrônico pode chegar a custar mais de R$ 140 mil para um volume de 2 mil litros. O equipamento é hermeticamente fechado e garante controle de temperatura, pH e aeração, por exemplo. Em muitos casos, os pequenos produtores usam caixas d’água para reproduzir uma cepa de bactéria usando parâmetros visíveis, como cor, cheiro e aspecto do líquido inoculado.
A Emater do Distrito Federal, por exemplo, ensina a instalação de uma pequena biofábrica on farm a partir de bombonas de PVC para reprodução de alguns microrganismos. “A gente adequa a tecnologia para que o investimento do agricultor seja entre R$ 5 mil e R$ 10 mil, mais a compra dos inóculos”, diz Daniel Rodrigues Oliveira, extensionista rural da Emater-DF e integrante do Conselho Estratégico do Programa Nacional de Bioinsumos.
“Pelo menos 50% dos agricultores familiares de morango produzem os bacilos subtilis e o trichoderma em suas propriedades. Em Minas Gerais, a Emater ensina os produtores a fazerem essa multiplicação”, exemplifica Isaac Sassi, assessor parlamentar da Associação Brasileira das Entidades de Assistência Técnica e Extensão Rural, Pesquisa Agropecuária e Regularização Fundiária (Asbraer). “É impossível para o agricultor familiar custear um responsável técnico para esta multiplicação, que é feita com equipamentos simples, produzidos pelos próprios agricultores e com técnicas que já são utilizadas há mais de 30 anos. Se for proibido pela legislação, eles precisarão voltar a comprar estes produtos prontos”, avalia.
Há críticas por parte da indústria quanto à segurança das multiplicações feitas em caixas d’água ou reservatórios similares. “Temos biofábricas muito estruturadas em empresas de agronegócio, que conseguem investir milhões de reais e a sua produção se equipara a uma produção industrial. Mas são minorias”, explica Julia Emanuela de Souza, diretora de relações institucionais da Anpii Bio. “Produzir microrganismos isolados é extremamente delicado, porque eles podem se espalhar com facilidade. Além disso, você pode contaminar a multiplicação [em caixa d’água e similares] com um fitopatógeno que pode condenar sua lavoura. A nossa mão está cheia de microrganismos. Também pode haver uma infecção de patógenos para humanos.”
Para operar uma biofábrica on farm, é preciso um responsável técnico, segundo recomenda nota técnica da Embrapa de 2021. O profissional pode ser contratado diretamente pelo agricultor ou ser um extensionista rural – no caso de quem consegue ter acesso à extensão rural. “O agricultor muito pequeno não vai conseguir ter uma biofábrica on farm, muitas vezes ele não tem nem acesso à extensão rural. Nesse caso, o ideal para fiscalização e controle seria centralizar a produção de bioinsumos em uma cooperativa”, indica Oliveira, da Emater-DF.
A alternativa está prevista nas discussões de regulamentação com o nome de “unidades de produção de bioinsumos”. São espaços geridos por associações, coletivos e cooperativas. Desde 2022, um exemplo exitoso deste modelo se desenvolve em Viamão, em um assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
A unidade de produção de bioinsumos Ana Primavesi foi criada pelo movimento junto à Associação Internacional para Cooperação Popular (Baobab) e a Cooperativa de Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre (Cootap). Essa unidade abastece 390 famílias que cultivam arroz orgânico em uma área de três mil hectares e outras 290 que produzem hortaliças na região metropolitana de Porto Alegre.
Um galpão da fazenda em Viamão foi adaptado para acomodar duas realidades. Uma área para oficinas de práticas tradicionais, onde há uma produção coletiva de compostos orgânicos e uma sala de acesso restrito, onde circulam apenas os técnicos agrícolas responsáveis pela multiplicação de microrganismos isolados. É lá onde está o biorreator, e é de onde saem os cinco mil litros de bioinsumos preparados a partir de quatro cepas de bactérias para controle de pragas, preparar e enriquecer o solo e que estimulam o desenvolvimento da planta.
Enquanto a unidade de produção não tem um laboratório próprio para análise, amostras dos produtos são enviadas à Universidade Federal de Santa Maria antes de os bioinsumos serem despachados para as famílias.
“Percebemos um aumento na produtividade depois que começamos a aplicar os bioinsumos. Ainda não fizemos estudos, mas fizemos comparações entre as plantas de arroz que foram tratadas com a bactéria Azospirillum brasilense e as que não receberam o produto. As primeiras tiveram um enraizamento maior”, conta Dionéia Soares Ribeiro, coordenadora da unidade de produção de bioinsumos Ana Primavesi.
Um gargalo para o pequeno agricultor é o acesso à tecnologia. Para além do custo do equipamento, as cepas de microrganismos são compradas no varejo. A falta de variedade de produtos próprios para multiplicação on farm faz com que muitos agricultores usem bioinsumos formulados como “fermento” para suas produções próprias. Nas propostas de lei, é prevista a penalização desta prática.
“Nossa maior necessidade é ter acesso a novas máquinas, subsídio para montar essas unidades de produção em vários assentamentos, e acesso a bancos genéticos de cepas, para não dependermos só do que os fabricantes colocarem no mercado”, enumera Dionéia.
Mesmo que não haja dados governamentais sobre a adesão de agricultores aos bioinsumos, o Brasil lidera o uso, segundo levantamento de duas consultorias especializadas em agronegócio.
A McKinsey aponta que 61% dos produtores brasileiros usam algum tipo de biológico no controle de pragas, e 64% usam algum bioestimulante ou biofertilizante em sua lavoura. Os números são bastante acima da média global, de 20% e 31%, respectivamente. Em segundo lugar, vêm os agricultores da União Europeia, com 25% e 33%. Os dados foram apresentados pela empresa no 22º Congresso Brasileiro do Agronegócio, em agosto. Não há um estudo que investigue quantos desses bioinsumos são produzidos on farm.
A Kynetec divulgou durante o BioSummit 2024, em maio, que a área tratada com bioinsumos cresceu 29% no Brasil em quatro anos, chegando a mais de 58 mil hectares na safra de 2023/2024 – para que se tenha uma ordem de grandeza, a área cultivada com grãos no Brasil é estimada em 78 milhões de hectares.
A oferta de produtos biológicos teve um salto de 339% desde 2015, segundo dados do Mapa. Foi o maior crescimento da série histórica, que começou em 2000. Isso significa que a oferta de produtos biológicos no mercado mais que triplicou, e o mercado nunca esteve tão aquecido.
Pequenos ou grandes, todos querem uma fatia desse bolo, mesmo quem já tem a maior parte dele: o mercado de produtos químicos no Brasil tem um valor estimado de US$ 20 bilhões anuais, montante 20 vezes maior que o dos biológicos.
Partindo do princípio de que qualquer bactéria, substância extraída de planta ou um fungo poderia ser um bioinsumo – desde que provada sua função e eficiência –, as possibilidades são inesgotáveis.
Como o segmento de bioinsumos ainda não tem regulamentação específica, o registro das fabricantes é feito junto ao Mapa como agrotóxico ou fertilizante. Atualmente, são 768 fertilizantes orgânicos dentre mais de 10 mil fertilizantes, e 1.560 bioinsumos para controle ou prevenção de pragas em meio a mais de 3 mil agrotóxicos.
No caso de produtos que promovam o desenvolvimento da planta e condicionamento do solo, por exemplo, não há uma categoria para registrá-los. Isso freia o desenvolvimento de produtos e faz com que o microrganismo precise também ter a função de controle de pragas ou fertilizante para poder ser registrado.
A pecuarista Luciana Dinato, do município de Água Fria (GO), é um exemplo de produtor agropecuário que aplica três tipos diferentes de insumos em sua produção: o tradicional, a multiplicação de isolados e o químico.
Ela é a responsável técnica pela produção de bioinsumos feita em parceria com um vizinho. Dentro de uma construção entre as duas propriedades, ficam um biorreator de 2 mil litros e 20 tanques de mil litros, onde os produtos são armazenados por até seis meses. Antes de usar, eles enviam uma amostra para análise em laboratório para verificar se a composição e a atividade dos microrganismos estão de acordo com o esperado.
Hoje, 70% do fertilizante usado por Luciana é biológico e produzido por ela própria. A combinação de três cepas de bactérias aumenta a disponibilidade de fósforo no solo, fixa nitrogênio e dá resistência à raiz em épocas de pouca umidade. Os 30% restantes são de adubo químico comercial, uma composição de boro, zinco e manganês e uma parcela menor de nitrogênio, fósforo e potássio.
Luciana também compra prontos para uso outros oito bioinsumos, usados na prevenção de pragas e na manutenção da saúde das plantas e do rebanho. Ela alia os biológicos a práticas tradicionais de manejo, como as plantas de cobertura. Entre as safras, são semeadas cinco espécies de hortaliças e leguminosas, para que suas raízes descompactem e nutram o solo.
Em novembro, ela inicia o quinto plantio desde que incluiu os produtos biológicos, e tem visto seus custos reduzirem consideravelmente. “Um produto químico para controle de uma praga, que precisa ser aplicado quando ela está atacando, custa em média R$ 200 o litro. O bioinsumo que eu faço na propriedade, para aplicar preventivamente, eu consigo produzir a R$ 5 o litro”, demonstra.
Nestes quatro anos, apenas duas safras foram totalmente livres de químicos. As mudanças climáticas que têm alterado o regime de chuvas e as temperaturas tornam o manejo mais delicado. No ano passado, a chuva incessante impediu que Luciana aplicasse o bioinsumo preventivo para a cigarrinha do milho. “Funciona muito bem, mas precisa ser aplicado com pelo menos seis horas sem chuva, senão a água lava o produto antes que ele faça efeito”, explica.
Conforme os dias passavam e a chuva seguia, a população do inseto aumentava. “Tivemos que pulverizar um químico para dar conta das cigarrinhas. Depois, por causa da umidade, aplicamos duas vezes um fungicida, também químico, porque o biológico leva mais tempo para fazer efeito. Em momentos de crise, não é rápido o suficiente.”
Ainda assim, o uso de produtos biológicos representou 90% na safra de 2023.
A indústria química entendeu que os bioinsumos apresentam um filão novo para a diversificação das suas receitas e há anos começou a modular o discurso. O marketing dessas fabricantes agora fala em “agricultura regenerativa” e lista seus produtos biológicos como uma solução para os problemas causados por elas mesmas.
Enquanto agricultores de povos e comunidades tradicionais manejam a terra com um olhar integrado, em que promover o equilíbrio entre fauna e flora é o caminho para evitar pragas e doenças, o agronegócio foca em paliativos.
A monocultura extensiva compacta e empobrece a terra, diminuindo a biodiversidade e, por consequência, os nutrientes disponíveis para a planta absorver. A aplicação de agrotóxicos elimina qualquer vida vegetal ou animal da área, além de contaminar lençóis freáticos e se dispersar pelo ar. Expostos repetidas vezes aos químicos, animais e plantas daninhas criam resistência ao veneno. Em vez de equilíbrio entre os macro e microrganismos, este ambiente favorece a instalação de organismos oportunistas que podem causar doenças, má nutrição ou mau desenvolvimento da planta. Neste cenário, o bioinsumo chega empacotado pela indústria como uma solução e aplicação similares a de um agrotóxico.
É deste ângulo que ruralistas e fabricantes de agrotóxicos têm mirado nos bioinsumos: um produto para manter o sistema de agricultura comercial com a mesma estrutura. “O agronegócio incorporou os biológicos dentro da lógica do pacote tecnológico e os colocou lado a lado com sementes transgênicas, agrotóxicos e fertilizantes químicos. E estão chamando isso de agricultura regenerativa”, critica Andreia Matheus, coordenadora do coletivo nacional de bioinsumos do MST.
Muitas vezes durante a apuração desta reportagem, as fontes ligadas ao agronegócio se referiram aos bioinsumos como um produto para fazer dupla com agrotóxicos, e não para substituí-los. Em 2020, a Bayer publicou um texto em seu blog em que afirmava que o uso combinado de químicos e biológicos traria diversidade e diminuiria o surgimento de resistência das pragas ao produto.
Outro ponto que faz o setor químico se interessar pelos biológicos é a possibilidade de lançar mais produtos em menos tempo. O intervalo entre o pleito e a concessão do registro é de até um ano para os produtos biológicos, enquanto para os químicos é de cerca de dois anos. Na prática, o tempo médio para registro de um bioinsumo fica em 60 dias.
Um estudo da IHS Markit encomendado pela CropLife em 2021 reconhece que o alto investimento em registro e reanálise de produtos químicos é um dos motivos para que a indústria inclua os biológicos em seu portfólio. A falta de novos ingredientes químicos e a resistência de pragas a várias substâncias também são listadas. Em miúdos, o documento reconhece que os agrotóxicos não estão mais dando conta de conter pragas sozinhos, e uma forma de manter a demanda pelos produtos da indústria química é vender os biológicos como uma “solução complementar” ao químico.
Na mais recente lista de espera para análise de registro divulgada pelo Mapa havia 116 produtos biológicos. Basf, Syngenta, Bayer, Corteva, Sumitomo, Adama, UPL Brasil e FMC Química do Brasil, as principais fabricantes de agrotóxicos, somavam 29 pedidos de registro – ou seja, um a cada quatro pedidos de registro de bioinsumo é de uma gigante do setor de agrotóxicos.
A título de comparação, na fila de registro para produtos para agricultura orgânica, 90 pedidos aguardavam a análise do Mapa. Nenhum era de uma gigante da indústria química.
Mesmo que as gigantes químicas tenham começado a se interessar pelo mercado de biológicos, a oferta no portfólio ainda é pequena.
A Basf anuncia cinco produtos em sua área “Biológicos“. Três deles são composições que levam químicos como fipronil e outros ingredientes ativos de agrotóxicos – o que, tecnicamente, não seria encaixado como bioinsumo. Apenas dois são livres de químicos: uma cepa de bactéria que fixa o nitrogênio no solo (Bradyrhizobium elkanii) e outra que atua como fungicida e bactericida (Bacillus amyloliquefaciens).
No site da Sumitomo, são quatro os produtos classificados como “inseticida biológico“, cada um com uma cepa de Bacillus thuringiensis distinta. O micróbio produz um cristal que, ao ser ingerido pela lagarta, interrompe seu processo de digestão. O inseto morre antes de se desenvolver completamente.
Na Corteva, são seis, dos quais quatro são biofertilizantes e dois são para controle de pragas. Na bula de dois produtos que alegam ter “cepas exclusivas”, a composição é mantida como “informação confidencial”.
O mercado de bioinsumos vicejou a partir do decreto de 2009 que regulamentou a lei de agricultura orgânica. “Neste decreto, há um comando que permite a produção de produtos fitossanitários para uso próprio para agricultura orgânica, sem necessidade de registro do que já está autorizado em lista positiva”, detalha Reginaldo Minaré, diretor-executivo da Abbins.
Ou seja: mesmo o produtor convencional se beneficiou da lei de orgânicos, podendo multiplicar em sua propriedade microrganismos aprovados pelo Mapa sem precisar avisar ao Estado. O cenário se desenvolveu e uma nova regulamentação é necessária para abarcar os tipos de bioinsumos que surgiram nesse ínterim – muitos têm funções para além da saúde da planta, podendo ser estimulantes de crescimento e desenvolvimento, por exemplo. Por enquanto, os bioinsumos podem ser registrados como fertilizantes ou agrotóxicos.
Aliás, não há o termo bioinsumo na lei brasileira. A expressão usada é “produto fitossanitário para uso próprio” ou “agrotóxico biológico”.
A redação final da nova lei de agrotóxicos, aprovada em dezembro de 2023, retirou apenas parcialmente a emenda que garantia que os “agrotóxicos biológicos” pudessem ser produzidos pelos próprios produtores rurais sem necessidade de registro, conforme o decreto de orgânicos prevê. O comando foi eliminado, mas o conceito continuou no texto. “Esse conceito está no segundo artigo. Combinado com artigo 3º da lei, isso cria um problema enorme pro agricultor, porque obriga todos os produtos citados na lei a serem registrados”, explica Minaré. Isso faria com que a garantia do decreto dos orgânicos, que protegia a produção para uso próprio, se perca.
Uma lei para regulamentar os bioinsumos se torna ainda mais urgente diante desse cenário. Caso contrário, a partir de janeiro de 2025, a produção on farm de qualquer tipo de produto passa a ser ilegal.
| Flávia Schiochet é repórter de O Joio e o Trigo. |
Imagem principal (Denise Matsumoto): regulamentação do setor de bioinsumos gera racha na bancada ruralista e na indústria de agrotóxicos.
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