Substitutivo na Comissão de Agricultura da Câmara não tem nada a ver com ideia original; ele prevê autodeclaração, retirada do conceito de relevância ambiental e pode provocar uma guerra entre estados por empreendimentos devastadores
Por Júlia Dolce
O Projeto de Lei (PL) 3.729/2004, que muda as regras de licenciamento ambiental no país, não foi escrito originalmente para agradar os ruralistas. Ao longo de 15 anos o projeto apresentado por um deputado petista foi capturado pela bancada, a mais poderosa do Congresso, e transfigurado para atender os interesses empresariais, do agronegócio à mineração. Um ex-deputado que agora está no governo Bolsonaro, Valdir Colatto (MDB-SC), ex-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), deixou sua digital nas alterações.
O projeto de licenciamento mais flexível é prioridade para a bancada ruralista. Um levantamento do De Olho nos Ruralistas mostra que a FPA se reuniu pelo menos 45 vezes desde maio de 2016, com direito à presença de Michel Temer, para pressionar por sua aprovação: “Desde maio de 2016, bancada ruralista se reuniu 45 vezes para falar sobre licença ambiental flexível“. A proposta também é prioridade para o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, condenado em São Paulo por adulteração de mapa ambiental para benefício de mineradoras e outras empresas, entre elas a Suzano.
O PL foi apresentado em 2004 ao plenário da Câmara pela bancada do PT, com a assinatura do deputado Luciano Zica (PT-SP). Ele tinha como objetivo regularizar e garantir segurança jurídica aos atos de licenciamento ambiental, estabelecendo regras e multas de acordo com o perfil do empreendimento. De lá para cá, o projeto passou por diversas comissões, teve outras propostas apensadas para tramitação em conjunto e foi modificado na forma de substitutivos. A proposta que tramita hoje virou um projeto guarda-chuva, feito à imagem e semelhança dos interesses dos ruralistas.
Ele foi votado em comissões como a de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, a de Finanças e Tributação e a de Constituição e Justiça e de Cidadania. Em 2013, o então deputado Valdir Colatto, agora chefe do Serviço Florestal do Ministério da Agricultura, requereu a inclusão da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural na análise do mérito. A partir daí o PL 3.729 teve uma inflexão e se tornou alvo de críticas de ambientalistas e órgãos públicos de preservação ambiental.
Colatto era membro ativo da bancada ruralista. Dono de terras em Rondônia, ele foi o autor do projeto de lei que deu origem ao atual Código Florestal. Em abril de 2017, o político defendeu a “reforma dos indígenas” como prioridade no Congresso. ” Nós vamos transformar nossos indígenas em cidadãos”, afirmou. “Vamos fazer com que os indígenas tenham renda, possam arrendar suas terras, ter royalties do petróleo, nos minerais, na floresta”.
Autor do projeto original, Luciano Zica se aproximou da ex-ministra Marina Silva – ele foi secretário Nacional de Recursos Hídricos e Ambiente Urbano – e migrou para o PV, depois para a Rede. Em entrevista ao observatório, ele conta que voltou a acompanhar o trâmite de seu projeto a partir do crime ambiental em Brumadinho, no dia 25 de janeiro. Com 134 mortos e 199 desaparecidos até agora, o rompimento de barragens da mina Córrego do Feijão trouxe a público a irresponsabilidade da aprovação relâmpago do licenciamento que ampliou a exploração da mina em dezembro.
Afastado da vida pública desde 2007, Zica diz que a aprovação da forma atual de seu projeto pode levar a desastres ambientais de proporções similares:
– O que mais me choca e assusta é a fúria da bancada ruralista em assumir esse pensamento que submete a preservação do meio ambiente, que deveria ser o fundamental, a algo secundário. Tratando o empreendimento mais importante do que a preservação. Querem acabar com qualquer regramento para o licenciamento.
O ex-deputado conta que a intenção era a preservação. Um dos recursos era o estabelecimento de multas elevadas. “A ideia era preservar a fúria devastadora dos empreendedores, na agropecuária, na indústria, na exploração de madeira”, afirma Zica. “A forma como o PL está hoje é toda chocante, é inaceitável, ou retomam sua tramitação nas comissões competentes ou ele precisa ser rejeitado. A comissão de agricultura não deve analisá-lo”.
Com relatoria do deputado ruralista Moreira Mendes (PSD-RO), morto no ano passado, uma nova versão do projeto foi aprovada por unanimidade na Comissão de Agricultura com uma série de anexos. Ele passou a ter itens como prazos curtos para o pronunciamento de órgãos de licenciamento, a diminuição da autoridade desses órgãos e a determinação quase exclusiva dos estados na formulação de critérios e parâmetros para os empreendimentos.
Em seu voto, Mendes disse que o texto proposto visa estabelecer previsões legais “que reduzam a discricionariedade dos agentes públicos e garantam a eficiência do processo”. Por isso ele sugeriu um substitutivo com um marco legal “que melhore a qualidade da gestão ambiental e do ambiente de negócios”.
A nova versão do PL, em 2015, já tinha treze outros projetos apensados. Voltou para a Comissão de Meio Ambiente com a relatoria do então deputado Ricardo Tripoli (PSDB-SP). Houve novas discussões e ele voltou, em parte, ao seu intuito original. Os prazos para o licenciamento foram dilatados e as atribuições que privilegiavam os estados foram retiradas, a partir do entendimento de que a Lei Complementar nº 140/11 regulamentou a preservação do ambiente como competência comum entre União, Estados e Municípios, com o Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama) como único outorgante de licenciamento ambiental no país.
A relatoria de Tripoli também reforçava a autonomia dos órgãos ambientais “ao se afirmar expressamente que o poder decisório compete a eles enquanto autoridades licenciadoras”. O documento foi aprovado, por unanimidade, em 14 de de outubro de 2015.
Foi quando o projeto seguiu para a Comissão de Finanças e Tributações, onde ganhou como relator o deputado Mauro Pereira (MDB-RS), derrotado nas eleições de 2018 quando disputava um segundo mandato. Membro da Frente Parlamentar da Agropecuária, Pereira recuperou as medidas acrescentadas ao PL pela Comissão de Agricultura, tornando-o ainda mais danoso ao ambiente.
“Ele basicamente recuperou a versão do deputado Moreira Mendes”, afirma Rodrigo Vicentin, ex-presidente do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), hoje assessor técnico de Meio Ambiente do PT na Câmara. “Nessa versão ele praticamente abre a porteira”.
Vicentin diz que Mendes desconsidera uma série de elaborações de Tripoli e da Comissão do Meio Ambiente, avançando ainda mais nos pontos que têm sido objetos de críticas, como a retirada do poder de veto de empreendimentos que afetam áreas protegidas dos órgãos gestores de unidades de conservação. E mais: o deputado gaúcho acrescentou a possibilidade de autodeclaração, pela qual o próprio empreendedor tem a responsabilidade de encaminhar pela internet a documentação exigida.
A nova versão transfere exclusivamente aos estados a definição de critérios e parâmetros para classificar os empreendimentos. O ex-presidente do ICMBio analisa:
– Eles excluíram o critério de relevância ambiental da área onde o projeto está sendo instalado, por exemplo, dentro de uma Terra Indígena ou no entorno de uma Unidade de Conservação. Ou seja, tanto faz instalar um empreendimento agrícola ou industrial em uma área de grande relevância ou de menor risco. Essa versão final do PL também flexibiliza a autonomia dos estados, o que pode ter como consequência prática o que chamam de guerra fiscal ambiental, na medida em que cada estado, para canalizar mais investimentos e empreendimentos, pode apresentar exigências mais flexíveis do que os demais.
Uma das medidas previstas no projeto de Mauro Pereira é uma das mais cobiçadas pelos ruralistas: a exclusão da obrigatoriedade de licenciamento ambiental para as atividades agropecuárias. O texto afirma que a licença deve ser dispensada para empreendimentos de “cultivo de espécies de interesse agrícola temporárias, semiperenes e perenes, e pecuária extensiva, realizados em áreas de uso alternativo do solo, desde que o imóvel, propriedade ou posse rural estejam regulados ou em regularização”.
Segundo o ambientalista Mário Mantovani, diretor de Políticas Públicas da Fundação SOS Mata Atlântica, a iniciativa é uma forma de controle social do licenciamento. “Não querem que o licenciamento ambiental seja um instrumento de controle do agronegócio”, analisa o geógrafo. “A ideia deles é conquistar novas fronteiras agrícolas em cima de terras públicas, terras indígenas, unidades de conservação”.
Mantovani considera que a ação bancada pela FPA sinaliza para outros setores a possibilidade de ficarem isentos de fiscalização. “O setor da celulose também já pediu para retirar a atividade de plantio de celulose da Lei de Licenciamento, o setor de carvão também. Temos um desmonte da legislação”.
O ambientalista observa que o setor de mineração já está embalado para fazer parte desse rol. Isso foi constatado na proposta do novo Código de Mineração, relatada por Leonardo Quintão (MDB-MG), conhecido como “deputado da mineração”, agora com cargo no governo Bolsonaro, o de Secretário Especial para o Senado, sob o comando do ministro Onyx Lorenzoni, na Casa Civil.
A atual legislação sobre licenciamento ambiental foi elaborada na década de 1980, através da Lei 6.938/81, que estabeleceu a Política Nacional do Meio Ambiente e determinou que qualquer atividade potencialmente poluidora ou com capacidade de causar degradação deve passar pelo processo de licenciamento, por meio da elaboração de estudos de impacto ambiental, sendo sujeita à avaliação dos órgãos ambientais. O licenciamento cabe ao Sisnama, sistema vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) como órgão executor.
Em 1996, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) estabeleceu a Resolução nº 237, que distribuía as atribuições do licenciamento ambiental entre os entes federativos. Desde então, cabe ao Ibama, em âmbito federal, licenciar atividades desenvolvidas em mais de um estado, ou cujos impactos ultrapassem os limites territoriais de um estado. Para empreendimentos de menor porte, a competência é de órgãos estaduais e municipais. Tal determinação gera uma série de confusões, fraudes e interpretações que já isentam a agropecuária do licenciamento.
“Hoje em dia é evasivo e beneficia as empresas, levando aos crimes ambientais”, afirma o ex-deputado Luciano Zica. “É triste, muito triste. O sentimento que tenho é de me perguntar o que fizemos errado naquela época, porque não evoluímos nos dois anos do meu mandato, e como a degradação do Parlamento brasileiro chegou a esse ponto? O Congresso não acompanhou o cuidado do meio ambiente e a Frente Ambientalista é coordenada hoje por parlamentares que não têm interesse na preservação”.
Rodrigo Vicentin, ex-ICMBio, diz que o projeto, como está agora, “enfraquece as instituições, indo na contramão de tudo que há de mais moderno em qualquer país desenvolvido”. Como o PL tem seu parecer elaborado com requerimento de urgência, explica, ele pode ir para o plenário a qualquer momento, mesmo com o vencimento de mandatos e comissões:
– Todas as matérias que não foram apreciadas na candidatura passada foram arquivadas, mas é só fazerem um requerimento que isso volta à pauta. E essa pauta deve voltar. Ricardo Salles tem destacado que, mesmo com os acontecimentos de Brumadinho, ele insiste em tramitar a proposta da Lei Geral de Licenciamento. Depende simplesmente do presidente da mesa, e da pressão e vontade política por trás do PL. Espero que com a opinião pública voltada para o caso de Brumadinho, consigamos prevenir esses interesses econômicos, porque a correlação de forças aqui no Congresso é absolutamente desigual.