União pagou mais de R$ 1 milhão, em 2011, para assentar camponeses em terras públicas, na região de Tucuruí; ela teve seu corpo queimado há uma semana, a mando de um fazendeiro da região; marido e vizinho também foram executados
Por Julia Dolce
A grilagem de terras acompanhou a militante Dilma Ferreira Silva na vida e na morte. Coordenadora Regional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) em Tucuruí (PA), ela foi assassinada e teve seu corpo queimado há uma semana, na madrugada de 22 de março, no assentamento Salvador Allende, no município de Baião (PA). O marido de Dilma, Claudionor Silva, e um vizinho do casal, Hilton Lopes, também foram assassinados.
Na tarde de terça-feira, a Polícia Civil do Pará prendeu o fazendeiro Fernando Ferreira Rosa Filho, apontado como suspeito de ter sido o mandante do assassinato. Conhecido como Fernando Shalon e “Fernandinho”, ele é acusado de cometer vários outros crimes na região sudeste do Pará, como envolvimento com o tráfico de drogas, roubo a banco, homicídio e grilagem de terras. No mesmo dia da morte de Dilma, Claudionor e Hilton, outras três pessoas foram executadas em fazenda de Rosa Filho.
Testemunhas disseram que a motivação para o triplo assassinato inicial era o interesse do fazendeiro pelas terras do assentamento, onde Dilma vivia desde 2012. O assentamento fica na antiga Fazenda Piratininga, também grilada em área pública da União. Ele foi regularizado em 2011 pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que pagou R$ 1.083.000 pelos 7.270,44 hectares localizados em terra pública. Era uma indenização pelas “benfeitorias” realizadas pelo fazendeiro na terra, entre elas pastagens, cercas, a casa, um galpão e um curral.
O grileiro desapropriado pelo Incra era Renato Lanes Lima. Pecuarista e criador de cavalos, ele se suicidou em junho do ano passado, aos 70 anos. Seu corpo foi encontrado em um hotel na orla de Macapá. O irmão de Renato, o médico Ronaldo Lanes Lima, também é acusado de grilagem em Rondônia. Ele invadiu 30 alqueires da área pública abandonada Canaã, vizinha de sua fazenda, atualmente ocupada por camponeses, obrigando dez famílias a usar apenas 30% de seus lotes de 10 alqueires.
Antes de virar assentamento em Baião, a Fazenda Piratininga foi ocupada há 12 anos por mais de 400 famílias ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Desde então, sofreu uma série de ataques de pistoleiros e conflitos com madeireiros. No dia 6 de agosto de 2007, um grupo formado por quatro homens disparou vários tiros no acampamento, de cima de uma caminhonete e uma moto. Dias depois, outro grupo de 15 homens disparou contra o acampamento, além de agredir fisicamente homens, mulheres e crianças.
O grupo chegou a quebrar os membros de alguns camponeses. Em 2008, Renato Lima foi acusado pela Delegacia Especializada em Conflitos Agrários (Deca) de lesão corporal grave e de ameaçar cinco camponeses do assentamento, entre eles Eládio Batista Gaia. Após os ataques, as famílias foram obrigadas a deixar a fazenda e ocuparam a sede do Incra em Tucuruí. Em seguida, retornaram à terra.
Em 2009, durante sua Jornada de Luta pela Reforma Agrária, o MST ocupou novamente o prédio regional do órgão para pressionar pela desapropriação da fazenda. Em 2011, cerca de 50 famílias da ocupação acamparam na Praça do Mogno, em Tucuruí, para reivindicar a regularização do assentamento. No mesmo ano, as famílias sofrerem um processo de reintegração de posse pelo fazendeiro. Em seguida, o Incra finalmente deu início à mediação dos lotes.
As investigações do assassinato de Dilma Ferreira apontam que o acusado de ser o mandante, Fernando Ferreira Rosa Filho, tinha como objetivo construir uma pista de pouso clandestina na área do assentamento. Os aviões abasteceriam traficantes de drogas da região. As informações são resultado de uma força-tarefa da Polícia Civil, envolvendo o Núcleo de Inteligência Policial, a Diretoria de Polícia do Interior, a Divisão de Homicídios, o Grupo de Pronto-Emprego, policiais da Superintendência Regional de Tucuruí, do Núcleo de Apoio à Investigação de Tucuruí e da Delegacia de Conflitos Agrários.
Natural de Marabá, Rosa Filho é proprietário de imóveis rurais, hotéis e supermercados na região de Novo Repartimento, no sudeste do Pará. Em janeiro, segundo camponeses ouvidos pelo site Amazônia Real, ele foi acusado de atirar contra um líder da Frente Nacional de Lutas de Campo e Terra (FNL). Esse camponês, que sobreviveu ao ataque, era responsável por uma ocupação em sua fazenda. O caso não chegou a ser investigado.
O assassinato no assentamento Salvador Allende teve requintes de crueldade: as vítimas foram amarradas, amordaçadas e possivelmente esfaqueadas, de acordo com o relatório da polícia. Há suspeita de que Dilma tenha sido estuprada. O Instituto Médico Legal (IML) de Tucuruí informou que o laudo dos assassinatos deverá sair em até trinta dias. Se for confirmado que o contexto do conflito agrário esteve por trás das mortes, classificadas como “execução”, esse terá sido o primeiro massacre no campo em 2019, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT).
No mesmo dia do assassinato de Dilma, Claudionor e Hilton no assentamento, três funcionários da fazenda de Fernando foram também assassinados – e carbonizados. Eram um casal de caseiros e um tratorista. A fazenda fica nas imediações da estrada vicinal conhecida como “da Martins”, na zona rural de Baião, a 80 quilômetros da cidade de Tucuruí e a 14 quilômetros do assentamento Salvador Allende.
A Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social do Pará informara a princípio que a morte de Dilma não tinha relações com o crime na fazenda. Os assassinatos dos funcionários teriam como pano de fundo uma dívida trabalhista, após se comprovar que Fernando Shalon era responsável pela contratação irregular de funcionários.
As investigações concluíram que os dois casos foram cometidos pelo mesmo grupo, a mando do fazendeiro, e que Fernando teve contato pessoal com os executores antes, durante e após os assassinatos. Os acusados pela execução das seis pessoas são quatro irmãos, dois deles com passagem pela polícia; um deles, foragido do sistema penitenciário, onde cumpria pena por homicídio.
Quem anunciou a prisão do fazendeiro Fernando Rosa Filho foi o governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), por meio de uma rede social. O MAB denunciou o assassinato dos camponeses para a Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) no dia do crime. Logo após receber a denúncia, o presidente da CDHM, o deputado federal Helder Salomão (PT-ES), solicitou providências ao governador.
De acordo com o Movimento dos Atingidos por Barragens, Dilma Ferreira começou sua militância no movimento em 2005, mas já participava de encontros há pelo menos 30 anos, desde que a barragem de Tucuruí acabou com o município onde vivia.
A Usina Hidrelétrica de Tucuruí, construída durante a ditadura, é a maior hidrelétrica inteiramente nacional. Ela está localizada no Rio Tocantins, a 310 quilômetros de Belém. Cerca de 32 mil pessoas foram deslocadas de suas moradias para a construção da barragem, e há mais de 30 anos lutam para garantir direitos.
Após o assassinato de Dilma, o MAB soltou uma nota destacando que a militante contribuiu nas organizações dos grupos de bases do MAB, tanto na área urbana como nas ilhas. Em especial, nos assentamentos. “Dilma, mulher valente e guerreira, lutou incansavelmente para defender os direitos dos atingidos por barragens”, destacou o movimento. “Por onde passava era querida e admirada por todos”.
Em 2011, Dilma participou de uma audiência com a então presidente Dilma Rousseff, quando entregou um documento pedindo uma política nacional de direitos para os atingidos por barragens e atenção especial às mulheres atingidas.
Após o assassinato da homônima, a ex-presidente emitiu uma nota enaltecendo a luta do MAB e criticando o discurso de ódio do governo Bolsonaro. “Dilma Ferreira Silva e seus familiares são as novas vítimas da violência no campo, autorizada pelo discurso de ódio e pelo descaso do atual governo”, afirmou Dilma Rousseff.