Cem dias de retrocessos: povos do campo são alvo do governo Bolsonaro

Eclosão de conflitos agrários, paralisação da demarcação de terras e registro de 152 novos agrotóxicos estão entre as evidências de que discurso do presidente contra indígenas, camponeses e quilombolas se confirma em sua gestão

Por Julia Dolce

Aprovação de 152 novos registros de agrotóxicos. Transferência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para o Ministério da Agricultura. Ameaça de municipalização da saúde indígena e do fim da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Conflitos no campo e assassinatos de camponeses e seringueiros: a marca de cem dias de governo Bolsonaro, completados nesta quarta-feira, representa para muita gente o período de maiores retrocessos para os povos do campo nas últimas décadas.

Em seus anos de atuação como deputado federal, e, principalmente, durante sua campanha para a Presidência, Jair Bolsonaro já demonstrava que os movimentos organizados de campesinos, indígenas e quilombolas eram seus principais inimigos. Mas a velocidade com que o discurso foi colocado em prática assustou as lideranças. No dia 8 de janeiro, logo após o início do seu mandato, o Incra determinou a paralisação de todos os processos de demarcação de terras no país. A medida atingiu 250 processos de obtenção de terras e 1,7 mil processos de delimitação de territórios quilombolas.

Ameaça de sucatear saúde indígena provoca protestos. (Foto: Amazônia Real)

Diante das críticas, o governo logo voltou atrás. Com isso, os camponeses ficaram em estado de alerta, como explica Iury Charles Bezerra, da Coordenação Nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). “Sabíamos que haveria retrocessos e que o governo os levaria a cabo”, afirma. “Mas assusta a forma e velocidade com que estão sendo implementados e, principalmente, a desorganização desse governo,  inclusive para implementar essas medidas.”

Para Bezerra, o governo tem tomado decisões “desastrosas” com “impactos muito imediatos” na vida dos camponeses. Ele cita o desmonte de programas sociais como o Minha Casa Minha Vida Rural, o programa de eletrificação do campo e a reforma agrária. Na análise de diversas lideranças do campo entrevistadas pelo De Olho nos Ruralistas, o resultado dos primeiros meses do governo Bolsonaro aponta, principalmente, para o empobrecimento da população rural.

FOME E EMPOBRECIMENTO SÃO TEMORES CENTRAIS

Coordenadora nacional do Movimento Camponês Popular (MCP), Sandra Alves afirma que o governo Bolsonaro vem demonstrando um “abandono total” da agricultura familiar e camponesa, ao mesmo tempo em que há um “avanço grande do agronegócio sobre as terras”: “O empobrecimento no campo tem sido notório, o não acesso às políticas públicas e aos programas sociais têm impactos fortes”.

Entre as causas para o empobrecimento da população estão a continuidade da crise econômica e o alto desemprego no país, que chegou a 12,4% no último trimestre, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

“Quem está na cidade consome menos e isso chega no campo”, diz Sandra. “A crise é muito jogada nos alimentos básicos, as famílias produzem, mas, na hora de comercializar, o preço está chapado, não cobre nem os custos, e há também muita dificuldade para acessar crédito e comercializar a produção”.

Para Yury Bezerra, do MAB, o empobrecimento da população campesina já vinha aumentando significativamente em consequência de políticas de austeridade adotadas no governo de Michel Temer, mas a tendência é que o fenômeno se intensifique cada vez mais:

– As políticas públicas que beneficiavam os trabalhadores rurais ainda não estavam enraizadas, eram precoces. Precisam de apoio do Estado para se tornarem efetivas. Então, com o fim dessas medidas, a perda é muito imediata. Vemos a olhos nus a degradação social que a população passa a viver, é um estado de miséria novamente, talvez até pior por conta da conjuntura econômica.

Sandra Alves, do CMP, diz que há um abandono total da agricultura camponesa. (Foto: CPT).

Entre as medidas tomadas pelo governo que afetam diretamente a população campesina está a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), decisão tomada no primeiro dia da nova gestão, por meio da Medida Provisória 870. Desde então, o governo não propôs nenhum outro plano para reorganizar as políticas públicas de segurança alimentar e nutricional no país. Em outras palavras, para combater a fome.

Valquíria Alves Lima, integrante da coordenação Nacional da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), organização que reúne movimentos, sindicatos e cooperativas rurais no bioma, explica que era por meio do Consea que eram discutidas as principais políticas de fortalecimento à agricultura camponesa – familiar, no jargão do governo – e à soberania alimentar.

Sem falar do acesso à água, por meio do programa de cisternas. A coordenadora afirma não saber como ficarão programas essenciais para a comercialização de alimentos produzidos por camponeses, como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) e o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar). “Já são cem dias de governo e muitas políticas ligadas ao campo estão sem definição de continuidade, de rumo”, denuncia Valquíria.

Ela conta que, como o Consea sempre foi um canal para o debate, abriu-se um vácuo de diálogo:

– Com a redução de políticas, principalmente onde a gente atua, percebemos o retorno da fome no campo em comunidades camponesas e tradicionais. As medidas dos governos anteriores melhoraram muito a qualidade de vida das famílias, mas não foram estruturantes, dependiam do governo em questão.

A ASA aguardar uma audiência no Ministério da Cidadania, antigo Ministério do Desenvolvimento Social, para tratar do tema.

CAMPONESES  TEMEM REFORMA DA PREVIDÊNCIA

Entre as principais bandeiras do governo Bolsonaro, também herdada do governo Temer, está A aprovação da reforma da Previdência, medida amplamente questionada por movimentos sociais do campo. Em sua proposta, divulgada no dia 20 de fevereiro, Bolsonaro propõe a equivalência de idade mínima da aposentadoria rural entre homens e mulheres para 60 anos, além de estipular pelo menos vinte anos de contribuição.

Candidatura de Bolsonaro teve amplo apoio de fazendeiros. (Foto: Reprodução)

A idade mínima para a aposentadoria de camponesas é de 55 anos. Entre os dias 8 e 14 de março, mulheres de todas as partes do país foram às ruas em uma jornada de lutas que, entre outras pautas, denunciou quais seriam as principais vítimas da nova Previdência. Em pesquisa divulgada nesta quarta-feira pelo Datafolha, 51% brasileiros demonstraram ser contra o projeto de reforma do presidente. O número era maior durante o governo Temer.

Para Denildo Rodrigues de Moraes, o Bico, um dos coordenadores nacionais da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), a reforma pode acabar com a seguridade social no campo. “O segurado social quilombola, indígena, assentado da reforma agrária, faz parte de um público prioritário, especial, da Previdência”, observa. “Mas o governo não tem uma proposta para nós, além de retirar cada vez mais nossos direitos. A reforma da Previdência vai obrigar as famílias a terem uma renda de R$ 48 mil por ano, pagando R$ 600 de contribuição. É muito difícil as pessoas terem esse salário no campo”, explica.

Um estudo divulgado em fevereiro de 2017 pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip) apontava o risco de quebra financeira de mais de 3 mil municípios brasileiros que têm nas receitas previdenciárias o principal motor da economia. Para esses municípios, prioritariamente rurais, a renda da seguridade social garante o mercado de consumo. Para Iury Bezerra, do MAB, o desmonte da aposentadoria rural representaria um empobrecimento “ainda maior” no campo brasileiro. “A reforma nos ataca diretamente, é um alarde para o país.”

GOVERNO APROVA TRÊS AGROTÓXICOS A CADA DOIS DIAS

A estreita relação entre Bolsonaro e a bancada ruralista no Congresso estava definida desde sua campanha, com o apoio dos membros da Frente Parlamentar Agropecuária e a indicação de ruralistas  para cargos no governo. Antiga presidente da FPA, Tereza Cristina foi anunciada ainda em novembro para o cargo de ministra da Agricultura, bem como Nabhan Garcia, antigo presidente da União Democrática Ruralista (UDR), que agora comanda a nova Secretaria Especial de Assuntos Fundiários.

Ao longo desses três meses, o governo Bolsonaro tomou decisões que privilegiam o agronegócio, como a aprovação de 1,5 novos registros de agrotóxicos por dia, um recorde sem precedentes, dos quais boa parte são considerados “extremamente tóxicos” pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Para a coordenadora da ASA, a liberação massiva de agrotóxicos impacta a produção familiar e agroecológica e a vida de trabalhadores que têm contato com os venenos, alguns conhecidos por seus efeitos cancerígenos.

“Nós compreendemos que a agroecologia é a base do desenvolvimento da agricultura familiar, da soberania e da segurança alimentar”, afirma Valquíria. “A liberação de agrotóxicos afeta diretamente essa concepção de estratégia de desenvolvimento que nós temos. Isso fortalece o agronegócio, porque estimula esse modelo baseado na monocultura”.

Líder mundial no consumo de agrotóxicos, como provou a Associação Brasileira de Saúde Pública (Abrasco), em dossiê publicado em 2017, o Brasil terá sua contaminação por esses produtos multiplicada. Sandra, do MCP, diz que o aumento do consumo torna a produção orgânica camponesa mais difícil de ser colocada em prática: “Contamina a água, o ar, chega nas produções orgânicas. É uma contaminação extrema, com adoecimento de quem produz e de quem come”.

FALTA DE DIPLOMACIA FRUSTRA ATÉ O AGRONEGÓCIO

O presidente Bolsonaro tem também frustrado alguns setores do agronegócio com decisões que geram um grande impacto para a área. É o caso das ameaças de transferência da embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, cidade dividida entre o estado judeu e a Palestina, e historicamente definida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como capital palestina.

A potencial medida tem gerado reações diplomáticas negativas entre os demais países árabes da região, principais compradores da carne bovina brasileira. A possibilidade de perder tal mercado assusta os pecuaristas brasileiros, que vêm demonstrando incômodo com as decisões de Bolsonaro.

Para Bruno Pilon, da coordenação nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), o governo parece cada vez mais desmobilizado em relação às suas alianças estratégicas: “O agronegócio já começa a se demonstrar descontente, mas sabemos que Bolsonaro não cairá de maduro”. Apesar da contradição, e da fragilidade cada vez maior do governo frente a diversos escândalos, ele vê o descompromisso com a pauta camponesa como “cada vez maior”.

“Acho que eles estão se deparando com problemas de organização interna e estão com menos tempo para maquinar as ações contra organizações camponesas”, afirma o integrante do MPA. “Mas o dia a dia não está fácil. A bronca do agronegócio representa, sim, uma ameaça para o governo, mas também é um setor que sempre se alia ao poderio estatal para garantir suas vontades”.

Segundo Pilon, o agronegócio representa uma estrutura de poder que sempre esteve baseada no poder econômico internacional: “É quase como se ele conseguisse viver sem o Estado brasileiro. No final das contas, quem sempre perde são as organizações do campo, porque se o agronegócio sente que vai perder com o Estado, aumenta seus processos mais antigos de exploração para aumentar seu lucro, por meio da violência e custo de vida para camponeses e para o meio ambiente”.

AMEAÇAS A CAMPONESES OCORREM DESDE A CAMPANHA

Com a eleição de Bolsonaro, a eclosão de conflitos e assassinatos no campo brasileiro se tornou uma das previsões mais alarmantes. Como candidato, o presidente estimulou diversas vezes a violência contra movimentos campesinos e indígenas. “Nem um centímetro a mais”, dizia, em relação a terras indígenas e quilombolas. Ao longo da campanha presidencial, o número de ameaças a acampamentos, assentamentos, quilombos e territórios indígenas chamava a atenção.

Enterro do trabalhador rural Eliseu Queres, em Mato Grosso, a primeira morte do ano no campo. (Foto:CPT).

Logo no segundo mês de governo, uma ameaça ao Cacique Rosivaldo Ferreira da Silva, o Babau, líder do povo Tupinambá da Bahia, foi denunciada ao Ministério Público Federal. De acordo com o indígena, em entrevista realizada pelo De Olho nos Ruralistas, havia um plano formulado em uma reunião entre fazendeiros e policiais civis e militares da região de Ilhéus para assassiná-lo.

Glicélia Tupinambá, liderança da Aldeia Serra do Padeiro, pertencente ao Território Indígena dos Tupinambá de Olivença, conta que o medo da população indígena cresceu muito com as ameaças; “Nosso receio é sempre ao sair da aldeia, ao circular, porque você se encontra vulnerável, sai mais não sabe se volta” . No início do ano ela denunciou  a ameaça ao seu povo na ONU, em Genebra.

A líder aponta o discurso inflamado do presidente como principal incentivo ao ódio contra indígenas e às ameaças. Em um post no Twitter no dia 2 de janeiro, Bolsonaro afirmou que “mais de 15% do território nacional é demarcado como terra indígena e quilombola”. “Menos de um milhão de pessoas vivem nestes lugares isolados do Brasil de verdade, exploradas e manipuladas por ONGs”, escreveu. “Vamos juntos integrar estes cidadãos e valorizar todos os brasileiros”.

Glicélia considera que os indígenas são os “primeiros alvos do governo”. Eles se tornam cada vez mais ameaçados ao pleitearem seus territórios, “principalmente no nordeste, onde os conflitos são maiores e os fazendeiros se sentem coronéis”.

Na terça-feira (09), treze representantes de povos indígenas denunciaram, por meio de uma carta aberta, a política ambiental de Bolsonaro, considerando-a uma “ameaça para a maior floresta tropical do mundo e para a sobrevivência dos povos ancestrais”. A carta, assinada pela Aliança dos Guardiães da Mãe Natureza, foi publicada no jornal francês Le Monde.

POVOS  INDÍGENAS PROTAGONIZAM MOBILIZAÇÕES DE RUA

Povo Truka ocupou a BR 428 em Pernambuco. (Fotos: Wilke Torres)

Os povos indígenas têm sido protagonistas da oposição nas ruas ao governo Bolsonaro, após atos nacionais que marcaram o chamado Janeiro Vermelho, pela demarcação de suas terras. Também em março, indígenas se mobilizaram em pelo menos 22 estados brasileiros contra a extinção da Sesai, a secretaria de saúde indígena, conquistando o adiamento do projeto de municipalização da saúde, conforme informou, por nota, o Ministério da Saúde.

As lideranças indígenas e camponesas apontam também o decreto que mudou a regulamentação da posse de armas, assinado no dia 15 de janeiro por Bolsonaro, como uma das graves ameaças para seus povos. O documento facilita e flexibiliza as regras para conseguir comprar armas no país. Em 2018, o Brasil foi considerado, pela organização internacional Global Witness, líder mundial em assassinatos de pessoas que lutavam por terra ou pela defesa do meio ambiente. Somente em 2017, foram 57 vítimas assassinadas no campo.

Em um intervalo de doze dias, entre o fim de março e o início de abril, a Amazônia testemunhou três ataques com mortes a camponeses, elevando para onze o número de assassinados neste ano. Para Bruno Pilon, do MPA, os últimos ataques e massacres representam “o agronegócio mais arcaico que há, recebendo licença para matar”:

– Uma licença que passa a se legalizar a partir do debate do porte de armas, uma questão muito simbólica para esse agronegócio mais aristocrata e latifundiário, que acredita que os ‘tempos áureos da Ditadura Militar’, onde quem fazia a lei no campo era quem tinha mais terra, voltaram.

Os camponeses do MPA sentem-se ameaçados e sabem que estão literalmente na mira do agronegócio. “Nem sempre somos os primeiros a sermos atingidos, mas sentimos que já faz parte do imaginário da vida dos militantes a noção de que eles não sabem quanto tempo duram”, analisa Pilon. “Esse medo inibe a capacidade de mobilização. Há um processo de violência que pode ainda não nos tirar a vida de forma generalizada, mas nos tira a dignidade.”

Sandra Alves, do Movimento Camponês Popular, define como notório o crescimento diário da violência no campo. Inclusive com a presença de milícia. “Se elas já existiam, agora estão mais fortes ainda”, afirma. “O porte de armas, a apologia à ditadura e à militarização não trazem segurança para ninguém”. As principais vítimas, diz ela, são as mulheres do campo. “Vemos que não temos a mesma liberdade que tínhamos antes”.  

LIDERANÇAS DO CAMPO FALAM SOBRE RESISTÊNCIA

Em pesquisa divulgada pelo Datafolha no domingo (07), o mandato de Bolsonaro aparece como o governo de pior avaliação nos primeiros cem dias, entre todos os presidentes eleitos após a redemocratização. Com 57,7 milhões de votos, Bolsonaro fez “menos do que se esperava” no exercício do cargo, isto segundo 61% dos brasileiros ouvidos pelo instituto.

“Para cem dias é uma carrada de retrocessos que comprometem, inclusive, a recuperação econômica do Brasil”, aponta Sandra Alves. “Ele extrapola a expectativa negativa, inclusive na desorganização”.

A indígena Glicélia Tupinambá diz que o governo representa um “maremoto”. Ela afirma não possuir palavras para comentar a quantidade de atrocidades realizadas até agora em relação aos povos indígenas: “Vários tratados internacionais e a própria Constituição estão sendo desrespeitados. Será um ano muito ruim para nós, povos indígenas”.

Coordenador da Conaq, o líder quilombola Bico lembra o compromisso que o Estado tem com os direitos dos povos tradicionais, o de promover a justiça social e levar a eles dignidade, emprego e saúde. Mas ele não se surpreende com os retrocessos dos primeiros meses de Bolsonaro. “Para nós nunca foi fácil ao longo dos últimos quinhentos anos, jamais vamos abaixar a cabeça”, afirma. “O governo completa cem dias sem propostas, sem plano nenhum. É um saco que não para em pé”.

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