Chanceler faz guerra cultural contra o globalismo e conspirações comunistas, mesmo ao falar de pandemia; com isso, tira o Brasil de uma posição de destaque internacional nos últimos trinta anos nas políticas de saúde pública, direitos humanos e ambiente
Por Leonardo Fuhrmann
O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, assumiu um protagonismo na maneira como o governo brasileiro, aos olhos do mundo, passou a se omitir sistematicamente desde o início da pandemia. Isto apesar de ter uma posição secundária no combate operacional ao Covid-19. Seguidor do autointitulado filósofo Olavo de Carvalho, Araújo usou o cargo para divulgar notícias falsas, pressionar embaixadores a atacar a imprensa internacional e declarar guerra contra seus inimigos imaginários, como o que chama de globalismo e de infiltração comunista.
Criador do termo “comunavírus”, Ernesto Araújo é o quarto personagem da série Esplanada da Morte. Ela destaca o papel de cada ministro (entre outros personagens do governo Bolsonaro em cargos de chefia) na explosão da Covid-19 no Brasil, das omissões às agendas negativas, como a divulgação de medicamentos ineficazes ou nocivos. Os primeiros retratados foram o ministro da Economia, Paulo Guedes, o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marcelo Xavier, e a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves.
Para o professor da FGV Guilherme Stolle Paixão e Casarões, das áreas de Administração Pública, Ciência Política e Relações Internacionais, o maior sucesso do Itamaraty ao longo da pandemia foi a repatriação dos brasileiros que estavam em outros países no início do ano. Só que um sucesso por acaso: essa decisão veio cercada de hesitação. Inicialmente, Bolsonaro rejeitou a possibilidade:
— Pelo que parece, tem uma família na região lá onde o vírus está atuando. Não seria oportuno retirar de lá, com todo respeito, pelo contrário. Não vamos colocar em risco nós aqui por uma família apenas. A gente espera que os dados da China sejam reais. [Que seja] só isso de pessoas contaminadas. Se bem que é bastante, mas a gente sabe que esses países são mais fechados no tocante a informações.
O governo chegou a ser alvo de ações com pedido de repatriação. Depois de resistir à pressão, passou a usar a medida como exemplo de ação positiva, anunciando sempre os números de repatriados. Quando foi retirar os primeiros brasileiros de Wuhan, recusou-se a ajudar outros países da América Latina e da África que pediram ajuda. Preferiu dar carona a poloneses, país também governado pela extrema-direita. Na ânsia de inflar seus números, Bolsonaro incluiu em um de seus vídeos os brasileiros que viajaram de volta por conta própria.
Quando alguns dos principais jornais do planeta passaram a criticar a atuação fracassada do governo Bolsonaro em proteger a população do país, Araújo pressionou os embaixadores a responderem de maneira agressiva às críticas. “É algo que vai contra as relações exteriores”, comenta Casarões. “O Itamaraty sempre primou por um papel institucional, que não inclui uma defesa intransigente do presidente do momento”.
Em Madri, o embaixador Pompeu Andreucci Neto enviou uma carta ao El País acusando o jornal de publicar “mentiras e vitupérios”. Segundo ele, o principal jornal espanhol atuava com “arrogância obscurantista”, próxima das “raias de uma verdadeira tara”, com “vocação neocolonialista”. Em Paris, Luís Fernando Serra voltou-se contra um dos mais tradicionais periódicos franceses. “Enganando os fatos, o Le Monde acaba acreditando nas ficções que cria”. Os dois ataques acima foram extraídos de um veículo da imprensa bolsonarista.
O próprio chanceler deu uma contribuição direta para o desgaste. Em uma postagem em suas redes sociais, ele publicou um texto em que se referia à Covid-19 como o “comunavírus“. Para Ernesto Araújo, a quarentena era parte de um plano para impor o comunismo. Ele comparou as medidas de isolamento aos campos de concentração nazistas:
— O que diferencia este novo mundo do campo de Auschwitz é que agora se fará bom uso desta horrível mentira que perverte e humilha dois valores sagrados da humanidade, o trabalho e a liberdade. Os comunistas não repetirão o erro dos nazistas e desta vez farão o uso correto. Como? Talvez convencendo as pessoas de que é pelo seu próprio bem que elas estarão presas nesse campo de concentração, desprovidas de dignidade e liberdade.
A afirmação fez o Comitê Judaico Americano pedir uma retratação do diplomata, o que não aconteceu. O caso é um dos retratados em relatório do Observatório Judaico de Direitos Humanos no Brasil Henry Sobel como exemplo do aumento do antissemitismo durante o governo Bolsonaro.
Aumenta a agressividade, perde-se a influência. “O Brasil ganhou destaque na diplomacia nos últimos trinta anos pela posição de vanguarda em temas de meio ambiente, direitos humanos, em especial de povos originários e na garantia de acesso à saúde pública”, afirma Casarões, da FGV. Exemplos: a organização da ECO-92 e o acesso universal ao tratamento da Aids, com quebra de patente de medicamentos. “Com esses recuos, o Brasil terá dificuldade de se recolocar com a mesma relevância no plano internacional nos próximos governos”.
A perda de prestígio ficou evidente na Organização Mundial da Saúde (OMS). O país ficou fora da aliança de acesso a medicamentos de tratamento da Covid-19 e da aliança por aceleração das pesquisas em busca da vacina. Bolsonaro distorceu uma fala do diretor-geral, para embasar seu discurso contra o distanciamento social, disse que a OMS incentivava a homossexualidade e a masturbação entre crianças e ameaçou retirar o país da organização, seguindo o que fez Donald Trump.
“O Brasil não tem a mesma relevância econômica que os Estados Unidos, que são financiadores dessas organizações multilaterais para entrar e sair delas quando quer”, afirma o professor. “Nossa relevância era muito mais de opinião”.
A visão ideológica, explica Casarões, faz a diplomacia brasileira agir de maneira maniqueísta. “Não existe nas relações internacionais isso que um país é 100% bom e o outro é 100% mau”, explica. Com seu alinhamento automático a Trump, Bolsonaro passou a ser um garoto-propaganda da cloroquina. O Brasil chegou a receber 2 milhões de doses da substância dos Estados Unidos pouco antes dos estadunidenses terem suspendido oficialmente o uso do medicamento no combate à doença. Parte dessas doses está sendo despejada, à margem das recomendações da OMS: “Governo federal distribuiu 100 mil unidades de cloroquina para indígenas“.
O discurso em defesa da cloroquina como solução mágica para a Covid-19 tem servido para justificar o papel pouco relevante do Brasil nas pesquisas de vacinas. “A China tem um papel importante nas pesquisas”, afirma Casarões. Apesar de ser uma parceira comercial estratégica para o Brasil, em particular na compra de commodities, a China é alvo de ataques de Bolsonaro, de seus três filhos políticos e de Ernesto Araújo. O chanceler chegou a apontar uma ação da China para dominar outros países após a pandemia.
A baixa participação do Brasil nas pesquisas é também uma maneira de o governo enfraquecer os centros de pesquisa brasileiros. “Os centros brasileiros que poderiam participar são ligados a universidades públicas, estaduais e federais”, afirma Casarões. A universidade pública foi um alvo constante do grupo olavista, capitaneado no Ministério da Educação primeiro por Ricardo Vélez Rodriguez e depois por Abraham Weintraub.
Não por acaso, uma das polêmicas mais recentes de Araújo foi a participação na operação para a ida de Weintraub para os Estados Unidos, diante da divulgação de notícias falsas e de ameaças ao Supremo Tribunal Federal (STF). Weintraub deixou o ministério e foi indicado por Bolsonaro para um cargo no Banco Mundial. Para evitar constrangimentos na entrada nos Estados Unidos, barrada ao brasileiro comum por conta da pandemia, o presidente retardou a publicação da sua exoneração e o Itamaraty se empenhou diretamente na concessão do visto.
No último domingo (26), o presidente Jair Bolsonaro foi denunciado ao Tribunal Penal Internacional por genocídio e crime contra a humanidade. O documento, assinado por mais de sessenta organizações, aponta “falhas graves e mortais na condução da pandemia de Covid-19”. Duas semanas antes, o ministro do Supremo Gilmar Mendes já havia usado a palavra genocídio para se referir à atuação do Ministério da Saúde. Ele disse que, ao aceitar que militares da ativa comandem a pasta, o “Exército está se associando a genocídio”.
Não foi a primeira denúncia contra Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional (TPI). No ano passado, ele já havia sido denunciado por incitação ao genocídio de povos indígenas, por omissão em relação aos crimes ambientais e à invasão de territórios indígenas na Amazônia. Um dos fundamentos do pedido foi o enfraquecimento dos órgãos de fiscalização. Os autores alegaram que a forma como foi escolhido o procurador-geral da República, Augusto Aras, enfraquecia a atuação do Ministério Público Federal. Bolsonaro desprezou a lista tríplice elaborada pelos procuradores e escolheu Aras.
Desde a denúncia do ano passado, a cúpula do Ministério das Relações Exteriores tem orientado os embaixadores a reagir sempre que o termo genocídio for utilizado para descrever as ações e omissões do governo. A desembargadora brasileira Sylvia Steiner, que atuou no TPI entre 2003 e 2016, considera improvável que o presidente seja de fato investigado, porque o tribunal tem atuado mais em conflitos armados. Casarões tem a mesma opinião, mas faz uma ressalva: “A denúncia aumenta a pressão internacional para que Bolsonaro não continue com essa política”.
Por enquanto, a pressão tem funcionado principalmente no aspecto econômico. Representantes dos ruralistas, setor que apoiou entusiasticamente a eleição do presidente, já demonstraram preocupação com a possibilidade de perderem vendas para a União Europeia por causa do aumento da devastação ambiental. A ameaça é também de perda de investimentos, necessários para a recuperação econômica após a pandemia.
| Leonardo Fuhrmann é repórter do De Olho nos Ruralistas |
Foto principal (Marcelo Camargo/Agência Brasil): Ernesto Araújo não representa apenas Ernesto Araújo
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