Fazendeiros fazem barricadas e cavam valas, enquanto projeto estadual pressiona comunidades tradicionais que lutam para manter suas terras no Vale do São Francisco; capitaneada pelo vice-governador, João Leão (Progressistas), Bahia quer derrubar moratória da cana
Por Caio de Freitas Paes
A situação no oeste baiano piorou, menos de um mês após De Olho nos Ruralistas noticiar tentativas de grilagem em territórios tradicionais na região. Denúncias de quilombolas e ribeirinhos do Vale do São Francisco não impediram novo avanço de invasores em Barra, a cerca de 700 km da capital, Salvador. Desde a segunda quinzena de março, mais frentes de ataque surgiram contra as comunidades de Curralinho, Igarité e Santo Expedito, muito próximas do Velho Chico.
Há relatos de invasões violentas e construção de barricadas e valas para impedir a movimentação da população. Violência respaldada por fraudes em escrituras de terras reclamadas pelos quilombolas. A comunidade de Curralinho, que aguarda sua titulação pelo governo federal, denuncia uma tentativa de grilagem no cartório municipal de Barra. A área em disputa integra um projeto de agricultura irrigada do governo baiano para a região.
“O pessoal quer emplacar um projeto parecido com o que ocorre em Juazeiro (BA), trazendo um monte de empresários, quando temos visto mais e mais conflitos por aqui”, diz Cassiano* (nome fictício), um dos líderes do quilombo de Curralinho. Seu nome está sendo preservado pela reportagem por causa da atuação de pistoleiros na região.
Fazendeiros constroem valas e barricadas, em pressão contra as populações que vivem há anos no local. Segundo os moradores, os vizinhos proprietários se revezam desde 2019 nas ameaças.
Desde aquele ano o governo estadual trabalha para emplacar o cultivo irrigado de cana-de-açúcar e a instalação de usinas de etanol no Médio São Francisco, onde fica o município de Barra, além de incentivar a exploração de gado e soja. O vice-governador da Bahia, João Leão (Progressistas), conduz a empreitada, que envolve um projeto para grãos na fazenda Barracatu, suspeita da grilagem em Curralinho.
“Notamos uma total omissão do governo, seja no âmbito estadual, seja no federal, no que se refere aos direitos e interesses das comunidades tradicionais no Vale do São Francisco”, afirma um líder da Comissão Pastoral da Terra (CPT) na região, que também pede para não ter o nome divulgado. Ele acompanha a movimentação das empresas na região e diz que criação de usinas de etanol e de cana-de-açúcar na região tem relação direta com os conflitos em Barra e adjacências.
A Fazenda Barracatu é controlada pela família Alonso, herdeira da antiga Norton Publicidade, criada nos anos 1940 em São Paulo. O falecido patriarca Geraldo Alonso criou a icônica Galinha Azul, mascote da marca Maggi (que não tem nenhuma relação com o ex-ministro Blairo Maggi), e a logomarca Personalité, usada até hoje pelo Itaú, como relata o portal especializado Meio & Mensagem.
Segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a fazenda em Barra tem mais de 1,7 mil hectares registrados em nome de Geraldo Alonso Filho, um dos herdeiros do publicitário. Segundo o site da Barracatu, outros três representantes da família se apresentam como equipe da fazenda. Quem comanda a fazenda é Geraldo, que se autodenomina arquiteto, publicitário, curador e produtor rural. Ele preside o conselho da Associação Brasileira de Marketing Rural e Agronegócios.
Na Bahia, o clã paulista planta milho, soja e cria raças valiosas de gado – como Nelore, que também está no Cerrado do Mato Grosso do Sul, por meio do grupo Elge.
Não haveria conflitos caso o governo federal tivesse resolvido a titulação de Curralinho, já certificada pela Fundação Cultural Palmares. As 180 famílias quilombolas aguardam uma resposta do Incra desde 2019.“Reivindicamos a regularização do nosso território faz anos, já cobramos muitas vezes, mas o problema é que o governo não tem nenhum interesse em regularizar”, diz Cassiano.
A fazenda que invade o quilombo nem sempre se chamou Barracatu. O cartório local informa que, originalmente, a área chamava-se “Fazenda de Fora”, situada “no lugar Catu”. É um detalhe crucial para entender as raízes da atual disputa.
“Tinha uma família importante, aqui de Barra, que se dizia dona dessa fazenda, sendo que não existiam documentos” diz Cassiano. “Na verdade eram as terras onde nosso gado pastoreava, de onde tirávamos a madeira usada pela comunidade”.
Nascido e criado em Curralinho, ele diz que, com o passar do tempo, parte da área foi vendida a fazendeiros que “colocaram cerca elétrica seguindo a Caatinga dentro da nossa área”. “Mas eles dependem da nossa declaração, porque somos vizinhos e precisamos confirmar os limites da Barracatu em cartório, e então disseram que iam nos processar, que iam fazer a gente assinar na Justiça”.
A defesa dos quilombolas diz que a abordagem dos fazendeiros para a comunidade assinar os documentos se deu por meio de coação”. “É comum que os poderes econômicos influenciem em instâncias que devem obedecer aos princípios da administração pública”, diz a representante da Associação de Advogados dos Trabalhadores Rurais da Bahia (AATR), Adriane Ribeiro, que atua no caso. “Quando não conseguem, se utilizam da violência direta para ameaçar e expulsar as comunidades”.
De Olho nos Ruralistas buscou a família Alonso. Até o fechamento da reportagem, não houve retorno dos responsáveis pela Fazenda Barracatu.
Em Curralinho, empresários paulistas pressionam por um lado e grupos estrangeiros, por outro. “Nós temos aqui, pelo fundo, um grupo de Portugal que já veio com georreferenciamento invadindo nossa comunidade, já mandou até recolher todos os animais do nosso rebanho”, afirma Cassiano.
Sua referência é ao grupo Euroeste, donos do outro latifúndio ao redor do quilombo, com uma área de mais de 2 mil hectares. O grupo informa ter 4 mil hectares no Brasil; 5.500 em Angola e 800 em Portugal. Em 2016, os portugueses esperavam criar e abater mais de 100 mil suínos na área, voltados ao mercado interno brasileiro, para depois iniciarem exportações para o velho continente.
O grupo citou, na época, o vice-governador João Leão, para quem a carne seria altamente competitiva na Europa, uma vez que os suínos criados no continente eram alimentados com rações oriundas do oeste da Bahia.
“Estão chegando cada vez mais estrangeiros, sem qualquer mediação com os povos tradicionais”, afirma um dos líderes da CPT. “Não há comunicação, mas sim imposição, com políticos dando o projeto como inevitável, cabendo às comunidades apenas saírem do caminho”.
Tal como a família Alonso, o grupo português Euroeste também não se manifestou sobre os conflitos com o quilombo de Curralinho.
A reportagem ouviu movimentos sociais e organizações que auxiliam os quilombolas na luta por terras em Barra. Todos relacionam os recentes ataques à consolidação do projeto do governo baiano.
O Polo Agroindustrial e Bioenergético do Médio São Francisco prevê mais de R$ 500 milhões em investimentos privados para a construção de usinas de cana-de-açúcar e etanol em Barra e região. O setor canavieiro abriria caminho para outros ramos agropecuários, também dependentes das águas do Velho Chico para irrigação.
A advogada da AATR, que defende os quilombolas neste caso, diz que a Secretaria de Desenvolvimento Econômico do estado “negou consulta de territórios tradicionais na região, reforçando um negacionismo comum na atualidade”.
Para o integrante da CPT, “tanto o governo da Bahia quanto a União se fazem de surdos diante das demandas populares, nunca convidaram os povos tradicionais para participarem da elaboração deste projeto de usinas de cana e de etanol”.
Não é de hoje que o governo estadual planeja o uso do mítico rio para fins agrícolas no oeste baiano. O esforço é tamanho que, logo no início do mandato de Jair Bolsonaro, o governo pediu à União que derrubasse a moratória da cana-de-açúcar no país. É o que mostram documentos obtidos pela reportagem via Lei de Acesso à Informação. É o mesmo modelo do projeto do Médio São Francisco.
Ao De Olho nos Ruralistas, a Secretaria de Desenvolvimento Econômico da Bahia — também comandada pelo vice-governador — disse que a elaboração dos projetos, a construção das usinas e o plantio são “de inteira responsabilidade da iniciativa privada interessada”.
| Caio de Freitas Paes é repórter. Escreve para De Olho nos Ruralistas e The Intercept Brasil, entre outros veículos. |
Imagem principal (Reprodução/Quilombo Curralinho): fazendeiros constroem valas no meio do caminho dos quilombolas