Exonerado da superintendência do Incra em Alagoas, primo do presidente da Câmara privilegiou ações em Maragogi, onde planeja disputar a prefeitura; passagem pelo órgão foi marcada por denúncias de agressão contra assentados e foi tema do relatório “Arthur, o Fazendeiro”
Por Luís Indriunas e Bruno Stankevicius Bassi
Atendendo à pressão de movimentos sociais do campo, o governo federal exonerou Wilson César de Lira Santos, primo de Arthur Lira (PP-AL), da Superintendência Regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em Alagoas. A decisão foi comunicada através de uma portaria do órgão publicada ontem (16).
César Lira foi nomeado em março de 2017, ainda no governo de Michel Temer, quando o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário, responsável pelo Incra, era chefiado pelo líder ruralista Osmar Terra (MDB-RS). Ele é filho de Eliete de Lira Santos, uma das irmãs mais próximas de Benedito de Lira — o Biu, pai do presidente da Câmara. Foi do tio, e não de Arthur, a indicação para que César assumisse a chefia do Incra em Alagoas.
De Olho nos Ruralistas contou essa história no dossiê “Arthur, o Fazendeiro”, que revela a face agrária das famílias Lira e Pereira, sobrenomes paterno e materno do deputado alagoano. Publicado em novembro de 2023, o estudo identificou 115 fazendas, que somam 20.039,51 hectares. Com elas, um histórico de violações de direitos humanos contado de forma inédita. Da criação de gado na Terra Indígena Kariri-Xocó ao despejo de uma família de camponeses em Quipapá (PE).
O relatório foi vencedor do Prêmio Megafone de Ativismo, na categoria Reportagem de Mídia Independente. A premiação foi anunciada na última sexta-feira (12).
Os dados referentes aos conflitos entre a família de Arthur Lira e povos indígenas em Alagoas foram utilizados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) durante a campanha internacional Emergência Indígena, destinada a combater o projeto do Marco Temporal.
À época da nomeação de César Lira para a superintendência do Incra em Alagoas, Benedito de Lira ocupava uma cadeira no Senado e comandava a face política da família. Arthur era ainda uma figura pouco conhecida nacionalmente: sua ascensão à liderança do Centrão ocorreria dois anos depois.
A conexão com Biu de Lira não para por aí. Livia Costa Saleme, esposa de César, foi secretária parlamentar do senador alagoano durante os oito anos de seu mandato. Em janeiro de 2021, quando João Henrique Caldas, o JHC, assumiu a prefeitura de Maceió, Livia foi contratada como servidora comissionada, passando por diversas pastas. Hoje, ela exerce a função de gerente de patrimônio na Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, Primeira Infância e Segurança Alimentar (Semdes).
Em 10 de abril de 2023, cerca de 1.500 camponeses de sete movimentos sociais de Alagoas ocuparam a superintendência regional do Incra, pedindo a exoneração de César Lira. Eles acusavam o primo de Arthur de paralisar a reforma agrária no estado ao distribuir títulos individuais para camponeses e de assediar líderes de assentamentos. Assinavam a nota conjunta a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Frente Nacional de Luta (FNL), o Movimento de Libertação dos Sem Terra (MLST), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento Terra, Trabalho e Liberdade (MTL), o Movimento de Luta pela Terra (MLT) e o Movimento Terra Livre.
O ato integrava a campanha do Abril Vermelho, que pressionava o governo de Luiz Inácio Lula da Silva pela exoneração de todos os superintendentes do Incra indicados por Jair Bolsonaro e Michel Temer. Nos meses seguintes, Lula trocou o comando de 19 dos 29 escritórios regionais. César permaneceu intocável, apesar dos múltiplos relatos de agressões e ameaças.
Em entrevista concedida ontem (16) ao UOL, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira afirmou que, apesar das denúncias contra César, Arthur Lira continua tendo a prerrogativa de indicar um nome para a sucessão do Incra em Alagoas.
Em 10 de agosto de 2020, o camponês Gilvan Emidio da Silva, de 56 anos, ex-presidente do Assentamento Prazeres, na zona rural de Flexeiras (AL), participava de uma reunião com o ouvidor agrário na sede do Incra em Maceió quando foi interrompido pelo superintendente. Exaltado, César Lira começou a insultar o líder dos assentados, partindo rapidamente para empurrões e tapas.
Procurado pelo De Olho nos Ruralistas, Gilvan relatou o ocorrido:
— Quando ele ouviu minha voz, saiu da sala dele e mandou eu sair. Perguntei por qual motivo eu deveria sair e se ele era o dono do Incra. Ele me pegou pelo cós da calça, me suspendeu por trás e me jogou no corredor. Estava eu e um companheiro. Fui pegar o elevador e ele só me dando tapa. E eu, olhando para ele, deixei ele à vontade.
Não era a primeira ameaça de César ao assentado: “Uma vez, ele pegou o telefone e me disse: ‘Gilvan, eu tenho coragem de matar’. Outra vez, fui entrar e ele disse: ‘Gilvan, comigo é na bala’. Eu disse que comigo era na base de Deus e que eu não tinha medo da família Lira”.
Após a agressão física, o superintendente afastou Gilvan da coordenadoria do assentamento, apresentando uma carta de renúncia que ele afirma jamais ter assinado. O caso foi parar na Justiça.
Inicialmente, o processo foi registrado diretamente contra César. Em 2022, o caso foi arquivado porque a juíza Eliana Augusta Acioly Machado de Oliveira, do Juizado Especial Cível e Criminal de Rio Largo, entendeu que a demanda deveria ter sido feita em desfavor do Incra, já que os atos do réu foram cometidos durante o exercício de sua função pública, seguindo entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF). O assentado abriu uma nova ação de danos morais, desta vez contra o órgão. O processo corre em segredo de Justiça.
Em resposta ao relatório “Arthur, o Fazendeiro”, o Incra informou que a procuradoria federal especializada junto à autarquia — ligada à Advocacia-Geral da União (AGU) — ingressou com um recurso que tramita no Poder Judiciário. Sobre as acusações de agressão, o órgão relata que foi aberto um processo administrativo para investigar e apurar os fatos, mas que este corre sob sigilo nos termos da Lei nº 8.112/1990.
Gilvan não foi a única pessoa a ter uma mostra do lado violento de César Lira. Diana Aleixo, da Comissão de Mulheres do MLST, também foi ameaçada pelo primo do presidente da Câmara. “Ele entrou numa reunião com uma sacola e disse que tinha uma arma, mas que não ia fazer nada com a gente, que era só para se proteger”, relembra a sem-terra. “Nessa época, ele dizia que era nosso amigo, mas que era bom conhecer o outro [lado].”
Dirigente nacional do MLST, Josival Oliveira diz nunca ter presenciado as agressões, mas é comum receber relatos semelhantes: “Ele [César] anda armado, com segurança particular, e é dessa forma que ele vai para os acampamentos e assentamentos”.
“Todo mundo tem medo dele, porque é metido a ditador”, afirma um assentado que, por medo, pediu para não ser identificado. “As coisas têm que ser como ele quer. César deu em um cara lá em Maragogi, pegou ele. Ele só anda com três caras metidos a capangas”.
É exatamente em Maragogi, o paraíso de águas cristalinas do litoral norte de Alagoas, na fronteira com Pernambuco, que César Lira usa sua influência para tentar conquistar sua primeira vitória eleitoral.
Apesar de carregar o nome Lira e de receber apoio do tio Biu durante suas campanhas, o superintendente do Incra falhou nas quatro vezes que tentou se eleger como vereador de Maceió. Na primeira, em 2004, ficou de fora. Nas três seguintes, conseguiu ficar na suplência. Ele chegou a tomar posse em outubro de 2016, pelo PSD, após o falecimento do vereador titular, mas ficou menos de um mês no cargo. Em entrevista à Gazeta de Alagoas, César afirmou que voltou à superintendência do Incra por um pedido pessoal do então ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha (MDB-RS).
Desde sua chegada ao Incra, em 2017, César tem dado atenção especial para Maragogi. No mesmo ano, o município de 33 mil habitantes passou a ser comandado por Fernando Sérgio Lira Neto (PP), primo de César e Arthur Lira. Segundo o ex-superintendente, as ações do Incra em Maragogi cresceram 980% nesses sete anos.
Ali, César Lira distribuiu cerca de 500 títulos provisórios para assentados e pequenos agricultores através do Titula Brasil. Criado durante o governo Bolsonaro, o programa transferiu aos municípios a atribuição de gerir processos de titulação de terras públicas federais a partir de convênios assinados com o Incra.
Lançado em 2021 pela então ministra da Agricultura, Tereza Cristina (PP-MS), hoje senadora, o Titula Brasil tinha o objetivo principal de enfraquecer a presença dos movimentos de luta pela terra nos assentamentos. Seu idealizador foi o ex-secretário especial para Assuntos Fundiários, Luiz Antônio Nabhan Garcia, um dos líderes da União Democrática Ruralista (UDR), organização que promoveu o terror no campo brasileiro durante a redemocratização (1985-1991). Depois de um breve hiato, a UDR ressurgiu como milícia rural no Pontal do Paranapanema, em São Paulo.
Rapidamente, o Titula Brasil ganhou um novo propósito, transformando-se em plataforma eleitoral. As cerimônias de entrega de títulos provisórios viraram grandes comícios, mobilizando as agendas de líderes do Centrão, bolsonaristas e do próprio ex-presidente, conforme este observatório revelou, em 2022, no dossiê “Incra Vira Máquina de Votos“.
Maragogi é um exemplo dessa dupla funcionalidade. Em julho de 2022, Bolsonaro e Nabhan viajaram ao município para entregar títulos a 87 famílias do Assentamento Oziel Alves. Fundado em 2006 pelo MST, o assentamento era tido como referência do movimento em Alagoas. Mas rompeu com a bandeira sem-terra e abraçou a figura do ex-presidente.
A “conversão” do Assentamento Oziel Alves é tida como uma grande conquista de César Lira. Um ano antes, em julho de 2021, o primo de Arthur escolheu o assentamento em Maragogi para receber a visita dos diretores nacionais do Incra.
A intenção de César Lira em suceder o primo Sérgio na prefeitura de Maragogi é dada como certa pela imprensa local. Segundo o jornal Extra, ainda em 2023, César havia mudado de domicílio eleitoral para o município litorâneo.
Para vencer a disputa, ele utiliza diretamente a máquina estatal e sua influência entre os clãs Lira e Pereira.
A operação eleitoral pode ser constatada nas redes sociais do superintendente. Em julho de 2023, ele esteve no Assentamento Nova Jerusalém, em Maragogi, para realizar a entrega de títulos definitivos e regularização de famílias. Em abril, foi a vez de parabenizar o primo “pelas ações desenvolvidas na zona rural”. Antes, em fevereiro, um registro com Sérgio durante sua passagem por Brasília, onde prestigiou as eleições para a presidência da Câmara ao lado de Arthur e do filho dele, Alvinho.
As ações não se restringem às redes sociais. Em março de 2023, César autorizou a Equatorial Energia a instalar novas linhas de distribuição elétrica nos Assentamentos Aquidabam e Samba. “A instalação dessas linhas trará benefícios não apenas para os assentados, mas também para a população dos municípios”, disse na ocasião. O Assentamento Samba foi palco de um protesto de moradores em dezembro de 2022, após o superintendente anunciar a inauguração de um calçamento, cuja obra, orçada em R$ 9,1 milhões, ainda estava inconclusa. No local também foram entregues 100 títulos de terra.
César tem apoio de outros familiares em sua incursão política. O apoio do prefeito Sérgio Lira, com índice de aprovação superior a 80%, é dado como certo. Arthur Lira também manobra para beneficiar o primo. Em 2 de junho, o superintendente do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs) em Alagoas, Arlindo Garrote, celebrou a entrega de tratores em Maragogi. Ele destacou que foram adquiridos pelo órgão por meio de emendas parlamentares do presidente da Câmara. Ex-prefeito de Estrela, no Agreste alagoano, Arlindo chegou ao cargo por indicação direta de Lira. Ele é filho da deputada Ângela Garrote (PP), eleita em 2022 com apoio de Pauline Pereira e de seu irmão Joãozinho.
O “tesoureiro” do clã é mais um personagem engajado na pré-campanha de César Lira. Em maio, os dois anunciaram uma parceria inédita entre as superintendências alagoanas da Codevasf e do Incra para “proporcionar melhorias no desenvolvimento agrário, bem como a disponibilização de diversos equipamentos”.
| Bruno Stankevicius Bassi é coordenador de projetos do De Olho nos Ruralistas. |
|| | Luís Indriunas é roteirista e editor do observatório. ||
Imagem principal (Reprodução/Instagram): ex-superintendente do Incra, César Lira, posa ao lado do primo Arthur
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