Esplanada da Morte (XVIII) — Acuado, STF contraria Bolsonaro, mas evita confronto efetivo

Supremo criou página para listar medidas de combate à pandemia, mas permitiu que o presidente divulgasse notícias falsas sobre decisão por autonomia de estados e municípios no isolamento; e deixou rolar solta a apologia ao uso anticientífico da cloroquina 

Por Leonardo Fuhrmann

A animosidade do presidente Jair Bolsonaro e seus filhos em relação ao Supremo Tribunal Federal (STF) é anterior à eleição de 2018, quando ele foi eleito. Em uma videoaula em julho daquele ano, o hoje deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho número 03, falou sobre a possibilidade de fechamento da Corte:

— Cara, se quiser fechar o STF, sabe o que você faz? Você não manda nem um jipe. Manda um soldado e um cabo. Não é querer desmerecer o soldado e o cabo, não.

Bolsonaro e seus aliados mantiveram o desrespeito ao Judiciário depois da eleição. Um exemplo foi a reunião de 22 de abril, divulgada após o ex-ministro da Justiça Sergio Moro afirmar que ela comprovava a tentativa de interferência do presidente na Polícia Federal para proteger seus parentes e amigos. Nela, o então ministro da Educação Abraham Weintraub foi porta-voz do ataque:

— O povo tá querendo ver o que me trouxe até aqui. Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF. E é isso que me choca.

Mais do que ser conivente com as falas de um de seus filhos e do ministro, o próprio presidente também participou, em um helicóptero militar, de um ato em Brasília, no mês de maio, em defesa de um golpe militar com o fechamento do Supremo. Além de desfilar a cavalo para os manifestantes. Bolsonaro chegou a transmitir a manifestação a seus seguidores pela internet.

Qual o papel do Supremo na escalada da pandemia no Brasil? De Olho nos Ruralistas publica, desde o dia 28 de julho, a série Esplanada da Morte, sobre o papel de cada ministro (entre outros integrantes do governo) no aumento dos casos de Covid-19 no Brasil, em particular entre os povos do campo. Nesta reta final da série, instituições como a Procuradoria-Geral da República (PGR), o STF e o Congresso também estão sendo questionadas.

REVISTA NARROU PLANO DE INTERVENÇÃO NA CORTE

Série de cards questiona personagens centrais na expansão da pandemia. (Imagem: Reprodução/De Olho nos Ruralistas)

Naquele mesmo mês de maio, segundo reportagem da revista Piauí, Bolsonaro chegou a tramar o fechamento do Supremo Tribunal Federal. Foi dissuadido pelos ministros militares a abandonar o plano da quartelada. O motivo seria a decisão do decano da Corte, ministro Celso de Mello, de consultar a PGR sobre um pedido de apreensão dos celulares do presidente e de seu filho, o vereador carioca Carlos Bolsonaro, um dos responsáveis pela movimentação de suas redes sociais.

Nada disso foi suficiente para que o ministro Dias Toffoli, que deixou neste mês a presidência do STF, apontasse autoritarismo do presidente, ao colocar em risco a democracia e espalhar uma atitude negacionista em relação à pandemia. Pelo contrário, Toffoli endossou a atitude de Bolsonaro: “De todo relacionamento que tive com o presidente Jair Bolsonaro e com seus ministros de Estado, nunca vi da parte deles nenhuma atitude contra a democracia”.

O desejo dos ministros de não criar conflitos com o Executivo foi apontado pelo cientista político Paulo Niccoli Ramirez, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em entrevista à Rede Brasil Atual. “A impressão é que o STF toma medidas de cautela e de proteção à própria instituição”, analisou. “É uma instituição acuada pelos discursos de ódio e ameaças que surgem do próprio Bolsonaro ou de seus apoiadores”. Para ele, a situação não muda com o início do mandato de Luiz Fux no comando do STF.

LUIZ FUX E CONVIDADOS FORAM INFECTADOS APÓS A POSSE

Show de trapalhadas: posse de Fux infectou também Rodrigo Maia e Augusto Aras. (Foto: Fellipe Sampaio /SCO/STF)

O novo presidente deu um mau exemplo, a exemplo de Bolsonaro, em sua posse, ao decidir por um evento presencial. Muitos dos convidados não usaram máscaras. O resultado é que, depois da posse, o próprio Luiz Fux testou positivo para o novo coronavírus. Também foram infectados o procurador-geral da República, Augusto Aras, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Maria Cristina Peduzzi, e os ministros do STJ Luís Felipe Salomão e Antonio Saldanha Palheiro.

Bolsonaro aproveitou essa omissão para divulgar notícias falsas a respeito de decisões judiciais. Para esconder seu protagonismo durante a pandemia, ele afirmou que o Supremo não permitiu que ele atuasse, passando a responsabilidade para estados e municípios. Mas a decisão estabelecia que o governo federal, estados e municípios têm poder para tomar decisões em defesa da população. O STF, com a decisão, apenas evitou que o presidente impedisse governadores e prefeitos de criar regras de isolamento.

Na Corte existem três processos contra Bolsonaro e seus ministros pela defesa do uso da cloroquina, mesmo contrariando as evidências científicas. Em nenhum deles há decisão contrária à propaganda e aquisição da substância, que, além de colocar a população em risco e incentivar a automedicação, causa dano aos cofres públicos. Em um deles, o ministro Alexandre de Moraes negou a liminar. O processo chegou a ser pautado para julgamento, mas não entrou em votação. Outros dois estão sob a relatoria do ministro Celso de Mello. Um teve a manifestação do Ministério da Saúde e outro aguarda a resposta da PGR.

Em outros pontos, o Supremo tomou medidas contrárias aos interesses do governo. Suspendeu parte da Medida Provisória (MP 928/2020) que limitava o acesso às informações prestadas por órgãos públicos durante a emergência de saúde pública decretada em razão da pandemia. Também limitou o alcance da MP 966/2020, que queria isentar de responsabilidade os agentes públicos por medidas tomadas no combate à Covid-19.

Para o tribunal, os agentes devem observar critérios técnicos e científicos de instituições médicas e sanitárias durante a pandemia e podem ser responsabilizados caso os contrariem. O Supremo garantiu também, em processos contra a União, a entrega de ventiladores pulmonares a estados e obrigou o governo federal a tomar medidas de proteção à saúde de indígenas. O ministro Gilmar Mendes, por fim, referindo-se às ações do Exército na Amazônia, foi o único a pronunciar a palavra genocídio.

Leonardo Fuhrmann é repórter do De Olho nos Ruralistas |

Imagem principal (G.Dettmar/Ag.CNJ): gestão de Dias Toffoli foi simpática a Jair Bolsonaro

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