Uma das líderes brasileiras em produção e exportação de derivados do coco possui fazendas sobrepostas ao território dos Tremembé, aponta o relatório “Os Invasores”; principal cliente global da Ducoco teve a rainha do pop Madonna e o ator Matthew McConaughey como investidores
Por Tonsk Fialho e Katarina Moraes
Expressando sua missão institucional, a Ducoco Agrícola S.A. afirma que cultiva e extrai coco no Ceará respeitando sua origem, através de fazendas e fábricas próprias. Uma dessas propriedades, a Fazenda São Gabriel, tem 1.145,77 dos seus 1.494 hectares sobrepostos à Terra Indígena (TI) Tremembé de Almofala, no município de Itarema, desrespeitando a origem ancestral do povo Tremembé, que aguarda há trinta anos a demarcação de seu território. A empresa ainda é dona de outro imóvel, a Fazenda Aguapé, com outros 274,83 incidentes na área indígena.
O conflito entre Ducoco e Tremembé é apontado no relatório “Os Invasores: quem são os empresários brasileiros e estrangeiros com mais sobreposições em terras indígenas“, publicado pelo De Olho nos Ruralistas. Com base nos dados fundiários do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o estudo identificou 1.692 sobreposições de imóveis privados em 213 áreas indígenas demarcadas em todo o país. O documento está disponível na íntegra e pode ser baixado aqui. Confira também as versões em inglês e espanhol.
Em fevereiro de 2023, o juiz Marcelo Sampaio, da 27ª Vara Federal de Itapipoca (CE), rejeitou pedido da Ducoco pela nulidade do processo de demarcação da TI Tremembé de Almofala. Em sua decisão, à qual cabe recurso, o juiz chamou atenção para inconsistências encontradas nos memoriais descritivos apresentados pela empresa — isto é, um possível indício de grilagem ou de fraude cartorial.
A Ducoco é uma das principais exportadoras brasileiras de derivados de coco, como a água, o óleo, o leite e a fruta ralada, e possui uma parceria de fornecimento para a marca estadunidense Vita Coco.
Criada em 2004 pelo israelense Ira Liran, a marca contou com o apoio de um time de celebridades. A rainha do pop Madonna foi uma das investidoras iniciais, estampando uma campanha publicitária da Vita Coco em 2011 e participando nos lucros da empresa. Outro nome conhecido nos Estados Unidos a investir na água de coco brasileira foi o do ator Matthew McConaughey, então casado com uma modelo brasileira. Sem investir diretamente na empresa, a cantora Rihanna também realizou campanhas publicitárias para a marca em 2011, logo após explodir no mercado norte-americano.
A parceria entre Vita Coco e Ducoco, iniciada há mais de dez anos, continua firme. Segundo a plataforma ImportGenius, que rastreia operações de comércio exterior, a empresa brasileira fez sua última remessa para o cliente nos Estados Unidos em 16 de maio de 2023.
No Brasil, a Ducoco é historicamente ligada ao banqueiro e empresário Nelson Nogueira Pinheiro, um dos fundadores do Banco Pine no Brasil e dono do FPB Bank, da BRK Financeira e da Brickell. Todas essas empresas têm passado por seguidas tentativas de recuperação judicial, além de protagonizarem escândalos de corrupção envolvendo o desvio de valores de investidores nacionais e internacionais para contas em paraísos fiscais.
Atualmente, quem figura no quadro societário é Rodrigo Camargo Neves de Luca, dono da Terra Nova Trading, empresa baseada em São Paulo que opera em toda a cadeia de comércio exterior, da logística à tributação, passando por serviços financeiros, atuando em vários segmentos, de maquinários a combustíveis, passando pelo agronegócio.
Em 2015, mesmo ano em que iniciou as exportações para a América Latina, a Ducoco tornou-se a primeira empresa brasileira do agronegócio de coco a obter o selo Rainforest de agricultura sustentável. Na teoria, o programa de certificação tem um sistema de normas que fornecem “estratégias robustas” contra, por exemplo, “a violação de direitos de uso de terra indígena”.
Em relação à sobreposição, a Ducoco respondeu à reportagem que “não tem qualquer relação com as fazendas São Gabriel e Aguapé, em Itarema, Ceará, apontadas no relatório”. O Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR) do Incra contra outra história: ambas as propriedades seguem em nome da companhia, segundo a última atualização da base de dados, de 1º de maio deste ano.
Veja no mapa abaixo as sobreposições apontadas pelo relatório:
Embora o processo de demarcação da TI Tremembé de Almofala tenha iniciado em 1986, a história do território Tremembé é secular, com a doação às famílias indígenas das áreas ocupadas ainda em 1857. Os conflitos para assegurar o território se aprofundaram com a chegada da Ducoco, em 1979, quando o grupo paulista comprou as terras no Ceará.
Assim que se apossou da área, a empresa expulsou todas as famílias Tremembé residentes na aldeia Tapera, sob a alegação de que o local estava incluído na transação comercial, com financiamento da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). “Houve muitos conflitos”, relata o indigenista Florêncio Braga de Sales, da Associação Missão Tremembé. “Acampamentos que foram tocados fogo. Os indígenas reconstruíram tudo. Houve muitas perseguições. Alguns chegaram a falecer por causa da pressão”.
A pressão da empresa gerou ainda um surto de fome no território. “No auge de uma seca muito grande [nos anos 2000], a associação conseguia alimentos para os indígenas”, conta Braga. “Então, quando levava no carro, chegava no portão da empresa Ducoco, era barrado, não entrava ninguém. Proibiam radicalmente de entrar para entregar aos indígenas. [Até que] conseguimos, junto à Procuradoria, levar gente para falar com o chefe para abrir”.
Atualmente, cerca de oito mil indígenas vivem na região, sendo quatro mil na TI Tremembé de Almofala, divididos em 15 aldeias. Entre suas atividades, estão a pesca e agricultura de pequenos roçados de mandioca, milho e feijão, para consumo próprio, além produção de coco. Atualmente, além da questão territorial, os indígenas denunciam a poluição de rios pela pulverização aérea com agrotóxicos, além de uma relação tensa com os seguranças da Ducoco que, segundo líderes da comunidade, praticam intimidações constantes.
As 1.692 sobreposições em terras indígenas reveladas pelo relatório “Os Invasores” comprovam que a violação dos direitos indígenas não é um mero subproduto do capitalismo agrário. Entre os atores dessa política de expansão desenfreada sobre os territórios tracionais estão algumas das principais empresas do agronegócio brasileiro e global.
Confira abaixo o vídeo sobre o relatório:
Os casos descritos na pesquisa estão sendo explorados também em uma série de vídeos e reportagens deste observatório. Com detalhes — muitos deles complementares ao dossiê — sobre as principais teias empresariais e políticas que conectam os “engravatados”, em cada setor econômico, legal ou ilegal.
| Tonsk Fialho é estudante de Direito na UFRJ e pesquisador, com foco em sindicatos e movimentos sociais. |
|| Katarina Moraes é jornalista. ||
Foto principal (Divulgação): Ducoco vende produto como “saudável” enquanto invade território Tremembé no Ceará.
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