Dossiê “Arthur, o Fazendeiro” baseia ação indígena contra a aprovação do Marco Temporal; na COP28, campanha Emergência Indígena denuncia ataques aos territórios a partir de dados do projeto Os Invasores; líderes da Terra Indígena Kariri-Xocó relatam, em vídeo, impasse sobre desintrusão
Por Nanci Pittelkow e Bruno Bassi
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) lançou esta semana uma campanha inédita mostrando os interesses diretos do presidente da câmara, Arthur Lira (PP-AL), em derrubar os vetos de Lula ao Marco Temporal. Os dados foram reproduzidos do dossiê “Arthur, o Fazendeiro”, que revelou a extensão do império agropecuário dos clãs Lira e Pereira, lado paterno e materno da família do deputado alagoano.
Após seis meses de pesquisa, a equipe do De Olho nos Ruralistas descobriu que em São Brás (AL), nas margens do Rio São Francisco, os herdeiros do pecuarista Adelmo Pereira são donos de 2.014,69 hectares sobrepostos à área de reestudo da Terra Indígena Kariri-Xocó, homologada por Lula em abril de 2023. Falecido em 2016, Adelmo era primo de Ivanete Pereira de Lira, a mãe de Arthur. Pouco antes de morrer, o fazendeiro foi multado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) por destruir 259,60 hectares de uma mata considerada sagrada pelos Kariri-Xocó: “Família de Arthur Lira destruiu mata sagrada dos Kariri-Xocó em Alagoas“.
Publicado em 13 de novembro, o dossiê revela o caminho percorrido pelos bois criados em terra indígena. Das fazendas de Adelmo, os animais chegam ao frigorífico Dom Grill, fundado por Nicolas Agostinho Pereira, um dos herdeiros do clã. Os abates são feitos em um matadouro público construído pela prima, a ex-prefeita de Campo Alegre (AL), Pauline Pereira. A fiscalização também fica por conta da família, através do Serviço de Inspeção Municipal do Consórcio Intermunicipal do Agreste Alagoano (Conagreste), que tem como vice-presidente Teófilo Pereira, prefeito de Craíbas (AL) e tio de Nicolas, da Dom Grill. A carne, enfim, chega aos próprios municípios controlados pela família, através de contratos e licitações que totalizam R$ 3,9 milhões.
No dia 28 de abril de 2023, o povo Kariri-Xocó celebrou a tão sonhada demarcação de seu território, na fronteira de Alagoas com Sergipe, na região do Rio São Francisco. O Decreto 11.508/2023, assinado pelo presidente Lula, homologou a nova área de reestudo, ampliando a TI Kariri-Xocó dos atuais 600 hectares para a extensão de 4.689 hectares. Mas o decreto presidencial, sozinho, não garante aos Kariri-Xocó o usufruto de seu território.
De Olho nos Ruralistas foi à região e conversou com líderes indígenas para entender o papel de Arthur Lira e do clã Pereira no impasse. A opinião unânime entre eles é a de que a influência política do presidente da Câmara e de sua família representam hoje o maior impeditivo para a desintrusão imediata do território.
“Oitenta porcento das nossas terras estão na mão do Adelmo Pereira e do Mauro Barreto”, conta o cacique Cícero Suíra. “Oitenta porcento das terras estão na mão deles dois. É onde está todo o impasse. É o Adelmo Pereira, que já faleceu e hoje tem o filho e a filha, que estão aí ainda”. “Mas tem uma influência grande dos políticos”, pondera.
Outro líder da comunidade, o cacique Nadinho, conduziu a reportagem até a área embargada pelo Ibama em 2016, próxima à mata sagrada do Ouricuri, local do ritual dos Kariri-Xocó. Ele conta que os indígenas denunciaram o desmatamento, mas que quando os fiscais chegaram, a floresta já havia sido derrubada pelo correntão:
— E essa mata foi quando Adelmo começou a desmatar. Era uma mata grande. Ele pegou uma máquina e botou derrubando tudo. Quando nós demos parte, denunciamos ao Ibama. O Ibama veio e prendeu, mas já tinha tudo acabado. Ele já tinha acabado com essa mata. Tudo isso para botar boi. Só para plantar pasto.
Mas também há lugar para esperança, como relata o pajé Julio Queiroz Suíra. “A roça do índio, para a manutenção dele, qualquer tantozinho dá”, afirma. “Nós queremos nossa área é coberta de mato. Fazer mato. Porque o mato é o que garante a terra e a sobrevivência de quem vive dentro dela. Que somos nós.”
Confira o vídeo na íntegra em nosso canal no YouTube:
As peças da Apib sobre os conflitos de interesse de Arthur Lira em relação ao Marco Temporal foram lançadas durante a Conferência das Partes sobre o Clima (COP28), em Dubai, e integram o relançamento da campanha “Emergência Indígena”, que tem o objetivo de denunciar as ameaças contra os povos originários e contra a demarcação de Terras Indígenas (TIs). “O futuro climático global está em risco”, afirma Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Apib, em nota publicada pela Articulação. “Vemos avançar no Congresso os PLs e PECs que pretendem legalizar o espólio de nossas terras e da natureza em geral. Trata-se de um projeto de genocídio indígena legislado”.
O texto apresenta dados levantados pelo projeto “Os Invasores“, lançado pelo De Olho nos Ruralistas no primeiro semestre de 2023 em duas partes: a primeira, focada em empresas com imóveis rurais sobrepostos a TIs, e a segunda nos políticos. Em destaque, o fato de representantes do Congresso e de governos estaduais possuírem cerca de 96 mil hectares de fazendas sobrepostas a territórios indígenas. Os dados também revelam o financiamento de campanha de fazendeiros com propriedades irregulares a 18 membros da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), totalizando R$ 3,6 milhões em doações de campanha. Além da bancada ruralista, o candidato derrotado à presidência, Jair Bolsonaro (PL), recebeu R$ 1.16 milhão de indivíduos flagrados com sobreposições em TIs.
Esse financiamento se traduz em ações concretas. Em 27 de setembro, a FPA organizou uma coletiva de imprensa para comentar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que tornou a tese do Marco Temporal inconstitucional. Ela estabelece que os povos indígenas só teriam direito às terras que ocupavam ou reivindicavam em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da atual Constituição Federal. Na ocasião, a deputada Caroline de Toni (PL-SC), coordenadora jurídica da FPA, prometeu um “banho de sangue” caso o Marco Temporal não se tornasse lei.
Menos de uma semana após a decisão do STF, o projeto de lei (PL) 2.903/2023 foi aprovado pelo Senado em regime de urgência, mas teve os dispositivos relativos ao Marco Temporal vetados pelo presidente Lula.
Diante das falas violentas e ameaçadoras da deputada, reportadas por este observatório, a Apib entrou com uma representação no Ministério Público Federal (MPF) contra a catarinense. Segundo o ofício encaminhado à procuradora Eliana Peres Torelly de Carvalho, “resta-se nítida à ameaça à integridade física de povos indígenas do Brasil”.
Na ocasião, o coordenador executivo da Articulação disse em entrevista: “Nós achávamos que a violência iria retroceder com a eleição de Lula, mas os resquícios do bolsonarismo ainda são fortes”, disse Dinaman Tuxá. “E a política do novo governo ainda não está gerando resultados práticos no enfrentamento da violência sistemática cometida contra os territórios”.
Antes, o deputado Túlio Gadêlha (Rede-PE), líder de seu partido na Câmara, já havia acionado a Procuradoria-Geral da República (PGR) pedindo que a deputada fosse investigada por ameaça e incitação ao crime. Segundo o requerimento, a parlamentar “mentiu para tentar manipular a população”.
| Nanci Pittelkow é jornalista. |
|| Bruno Stankevicius Bassi é coordenador de projetos do De Olho nos Ruralistas. ||
Imagem principal (De Olho nos Ruralistas): em vídeo, líderes Kariri-Xocó expõem os conflitos com a família de Arthur Lira
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