Documentos enviados ao De Olho pelo Ministério Público mostram que ministro adquiriu propriedades sabendo que não poderia desmatar
Por Cauê Seigner Ameni
Palco de uma das maiores riquezas naturais do Brasil, o Parque Serra Ricardo Franco, no Mato Grosso, motiva ações do Ministério Público do Estado do Mato Grosso (MPE-MT) contra fazendeiros. Criado em 1997, o parque fica no município de Vila Bela da Santíssima Trindade, na fronteira com a Bolívia, a 520 quilômetros de Cuiabá. O MPE revelou no fim do ano que, dos 158 mil hectares do parque, 19 mil foram desmatados ilegalmente, entre 1998 e 2015, para exploração – sem licença – da pecuária.
Um dos alvos de denúncia é o ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha. De Olho nos Ruralistas solicitou documentos ao MPE e constatou que ele comprou as fazendas na região – e dentro do próprio parque – depois que o parque já tinha sido criado. Segundo a promotora Regiane Souza de Aguiar, houve até remoção de servidores estaduais para dificultar a execução de ordem judicial. E ainda falta analisar se houve desmatamento em uma terceira propriedade do ministro.
O Parque Ricardo Franco é reconhecido internacionalmente por sua exuberância natural, envolvendo vegetação amazônica, Cerrado e Pantanal, fauna e espécies em risco de extinção. Possui mais de 100 cachoeiras — entre elas a Jatobá, com uma queda d’água de 280 metros, a maior do Estado. Segundo pesquisadores da Universidade de Lancashire, na Inglaterra, o local onde hoje fica o parque inspirou a obra “Mundo Perdido”, de Conan Doyle, que, por sua vez, inspirou Steven Spielberg na criação de “Indiana Jones”.
UM FAZENDEIRO ILUSTRE
Por causa do desmatamento desenfreado no coração do parque, o MPE entrou com 50 ações civis publicas contra os fazendeiros. Braço direito do presidente Michel Temer, Eliseu Padilha (PMDB-RS) aparece como sócio-proprietário em três fazendas, junto com seu ex-assessor e sócio Marcos Antonio Tozzati. São estas as propriedades do ministro que ficam dentro do parque:
1) Paredão I e II, com 4.123 hectares, dos quais 2.268 hectares foram desmatados ilegalmente;
2) Cachoeira, com 2.348 hectares, entre os quais 735 hectares foram desmatados;
3) Agropecuária Jasmin, com 543 hectares; neste caso ainda não foi apurado se houve ou não desmatamento.
Ao todo, segundo os documentos obtidos pelo observatório, Padilha gastou cerca de R$ 1,3 milhão na compra das três fazendas.
Em dezembro, o ministro e outros fazendeiros foram condenados pela Justiça e tiveram cerca de R$ 949,5 milhões em bens bloqueados por degradação ambiental. Um mês depois, o procurador-geral de Justiça em exercício do Mato Grosso, Luiz Alberto Esteves Scaloppe, e a promotora de Justiça Regiane Souza de Aguiar acusaram o governador Pedro Taques (PSDB) de usar a Procuradoria Geral do Estado (PGE) para reverter as ações do MPE na Justiça e beneficiar os fazendeiros. “Uma pessoa que consegue mover um governador, um vice-governador e a diretoria da Sema MT tem que ser poderosa e eu deduzo que seja o ministro Padilha”, queixou-se o procurador-geral.
Taques e políticos locais já defendem abertamente uma nova delimitação do parque, como revelou na semana passada reportagem da TV Guaporei. Tudo para acomodar os fazendeiros – entre eles o ilustre ministro. Nesta mesma semana, jornalistas do portal O Livre, que tentaram fotografar a fazenda pertencentes a Padilha, foram expulsos por policias armados com metralhadoras. Os policiais não queriam fotos do local – especificamente da propriedade do ministro.
O QUE DIZ A PROMOTORA
Enquanto o embate segue na Justiça, a imprensa nacional – atenta a denúncias do Ministério Público que envolvam outros políticos graúdos e casos igualmente amplos de desmatamento – segue em silêncio. Quase não se lê nada sobre as invasões do parque e as ações do MPE contra Padilha e seus amigos.
Para entendermos melhor o caso entrevistamos Regiane Souza de Aguiar, promotora de Justiça de Vila Bela da Santíssima Trindade:
De Olho: O MPE denunciou em entrevista coletiva as manobras do governador Pedro Taques para blindar os fazendeiros que estão no parque. Isto por causa do envolvimento de Eliseu Padilha. O que eles fizeram?
Regiane Souza de Aguiar – Dentro do parque estadual existem mais de 120 propriedades, posseiros e proprietários. Alguns estão antes da criação do parque, sem o comprovante, sem o título idôneo dessa propriedade e merecem a indenização, ainda que seja por meio de compensação ambiental. A regularização fundiária ainda não foi realizada. O Estado alegou não ter orçamento para desapropriar essas áreas, mas essa regularização pode ser feita por meio de compensação ambiental, cota de reserva ambiental.
De Olho – Além da denúncia que vocês fizeram na coletiva, o que o MPE vai fazer para reverter a situação?
Regiane – Nós já temos 50 ações civis públicas contra os particulares. Elas pedem a reparação desse dano ambiental, que reconstituam a vegetação dessa área, façam a compensação pelo dano moral e coletivo e pelos danos materiais não passíveis de recuperação. Essas 50 ações já estão em andamento.
Também mandei ofícios e estou tentando marcar uma reunião com as ONGs em Cuiabá, para elas nos auxiliarem na defesa do parque, fornecendo estudos sobre a importância biológica o monitoramento dessa área. A intenção do MPE é continuar a levantar o desmatamento que está sendo realizado, inclusive desmatamentos recentes, e com esses dados entrar com novas ações. Até porque são mais de 120 fazendeiros dentro do parque. Com certeza tem desmatamento ainda sem levantamento, mas já estamos apurando os crimes ambientais.
“Existem fazendeiros que entraram após a criação do parque, mesmo sabendo que ali era uma área de preservação. Mesmo assim, adquiriram e exploram essa área há anos, se enriquecendo às custas do meio ambiente e dos recursos naturais”
Já existem alguns inquéritos policiais em andamento, de acordo com esse levantamento da polícia científica e civil. É a equipe técnica da procuradoria que pode fazer esse levantamento mais estratégico. Com esses dados a gente pretende atuar na esfera civil e na criminal.
De Olho – A senhora foi intimidada em uma reunião no Palácio do Governo, como divulgado?
Regiane – Existe uma ação civil pública contra o Estado ajuizada em setembro de 2015. Essa ação o obrigava a implementar essa Unidade de Conservação (UC) e a fazer a fiscalização ostensiva da área. Com autuação dos desmatamentos ocorridos após a criação do parque, embargo das áreas e retirada do rebanho. Esse item não estava sendo cumprido no tempo determinado pela sentença, seis meses.
Eu estava acompanhando esse processo, realizado por uma equipe da Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema). A equipe se revezava nessas viagens, fazia levantamento de satélite e elaborava os autos de infração. Acompanhei o início do cumprimento das viagens dessa programação de fiscalização. Mas percebi que estava ocorrendo um protelamento no cumprimento dessa liminar, e uma certa dificuldade de fazer um acompanhamento, com o cancelamento reiterado de viagens.
Foi agendada uma reunião com a coordenadora da Sema e com a superintendente de regularização fundiária. Era para discutir questões técnicas, especificamente com relação ao cumprimento dessa liminar. Questionei essa reprogramação de viagens, a remoção da equipe que já estava acompanhando e que tinha conhecimento técnico e de campo. A reunião foi marcada com essas pessoas na véspera e sem o meu conhecimento. Quando perguntei, eles se recusaram a confirmar onde seria a reunião e quem participaria, sendo que até o governador estaria presente. O que a gente percebeu é que há muito mais interesses por trás.
De Olho – Houve só essas interferências na equipe da Sema ou também alguma intimidação pessoal?
Regiane – Não chamaria de intimidação pessoal. Na verdade foi uma reunião surpresa e lá eu questionei muito essa questão do cumprimento da liminar, os prazos, a programação de viagens, e eles negaram tudo. Falaram que não tinham a intenção de descumprir a liminar e que eu estava interferindo na administração deles, entrando no mérito deles, que eles é que deveriam definir como seria a programação de viagens.
“Ali só poderia ter pesquisas científicas, turismo ecológico, educação ambiental, e nenhuma atividade econômica. Porém, tem criação de gado, que causa um dano ambiental muito grande. O prejuízo é inestimável para os recursos naturais, como fauna, flora e recursos hídricos”
Eu estou interessada só no cumprimento, independente da forma. A gente estava cumprindo nosso papel, que é cobrar o cumprimento da liminar, documentando que ela não estava sendo cumprida. Na reunião ficou estabelecido que fariam uma reprogramação e me enviariam para fazer o acompanhamento. Mas nunca me encaminharam essa reprogramação e eu comecei a documentar. Na época instaurei um inquérito civil para apurar o descumprimento dessa liminar. De quem seria a responsabilidade desses devedores e agentes públicos num descumprimento que caracteriza improbidade administrativa, por violação dos princípios da administração pública.
De Olho – A equipe que estava cuidando disso começou a não cumprir os prazos?
A equipe não, a equipe estava cumprindo a ordem judicial no fim de junho. Essa equipe apresentou um relatório das atividades, inclusive para a Procuradoria Geral do Estado. Esse relatório demonstrava que eles estavam tendo resultado com essa fiscalização e que já tinham detectado mais de 44 propriedades com desmatamento. As multas já tinham chegado a R$ 200 milhões e a reparação do dano desse desmatamento estava calculado em R$ 600 milhões.
O resultado do trabalho dessa equipe estava sendo produtivo, mas a partir do momento que ele começou a aparecer e a serem feitos os autos de infração, comecei a perceber que eles começaram a protelar o cumprimento, com a remoção desses servidores que seguiam a decisão judicial. A partir desse momento a equipe foi alterada e a produtividade caiu bastante. O número de autuações diminuiu, comprometeu muito o cumprimento da liminar.
De Olho – Teve gente demitida?
Houve remoções e diminuição da equipe, que é composta por servidores da Sema na unidade de conservação. Eles fizeram o levantamento do desmatamento ocorrido entre 1998 e 2015. Aplicaram a multa administrativa e, com esses dados, entrei com as ações civis públicas.
No total, hoje são 50 ações civis públicas, para reparação do dano ambiental em face desses responsáveis, proprietários e possuidores. Dentro do parque existem possuidores que entraram após a criação do parque, mesmo sabendo que ali era uma área de preservação que não poderia ser explorada. Mesmo assim, adquiriram e estão lá explorando essa área há anos, se enriquecendo às custas do meio ambiente, dos recursos naturais, que deveriam estar sendo protegidos e preservados.
De Olho – Um ato de grilagem?
Sim, o doutor Scaloppe usou essa terminologia.
De Olho – Vocês abriram alguma ação por omissão do Estado?
A própria ação civil publica ajuizada em 2015, movida para obrigar o Estado a consolidar essa Unidade de Conservação, tem um pedido de R$ 50 milhões, por causa da omissão. O Estado, sob alegação de que essa liminar estaria gerando lesão à ordem administrativa e à economia pública, entrou com um instrumento chamado suspensão de liminar. O Tribunal de Justiça deferiu e suspendeu os efeitos da liminar.
Interessante citar que, no caso do Parque Nacional da Serra da Canastra, saiu nestes dias uma situação semelhante. O nosso é um Parque Estadual, criado pelo Estado do Mato Grosso, e lá é um Parque Nacional, criado pela União. A Advocacia Geral da União entrou com um pedido de suspensão de liminar no Tribunal Regional Federal para proteger o parque e proibir atividades econômicas, como a criação de gado dentro dessa Unidade de Conservação de proteção integral.
Aqui foi exatamente o contrário. A PGE entrou para suspender os efeitos da liminar que o Estado deve proteger. É o Estado que tem a obrigação de consolidar esse parque. É uma área de conservação, de proteção integral, onde só se permite o uso indireto dos recursos naturais. Ali só poderia ter pesquisas científicas, turismo ecológico, educação ambiental e não poderia se admitir nenhuma atividade econômica. Porém, tem a criação de gado. E a pecuária causa um dano ambiental muito grande na erosão do solo. O prejuízo é inestimável para os recursos naturais, tanto fauna e flora como os recursos hídricos. No parque temos o rio Guaporé, esses danos têm um reflexo não só aqui em Vila Bela, mas no Estado e, quiçá, no país inteiro.
De Olho – Esses 19 mil hectares são todos frutos de invasões do parque?
Lá tem mais de 120 propriedades, alguns proprietários estavam lá antes da criação do parque, em 1997. Compraram a terra sem o título e não foi feita a regularização fundiária. O Estado não desapropriou e eles podem continuar lá, não perderão a terra enquanto o Estado não indenizá-los. Esses proprietários não poderiam ter aberto novas áreas, realizado novos desmatamentos.
“Aqueles que compraram após a criação do parque sabiam que a área não poderia ser utilizada e explorada; e ainda desmataram; eles devem responder por esse dano ambiental e não têm direito à indenização do Estado”
Eles teriam que entrar com uma ação contra o Estado por desapropriação indireta e cumprir a legislação, não desmatar mais. Entre esses 50 fazendeiros que foram acionados existem alguns que estavam lá e tinham o título, têm a prova de domínio antes da criação do parque, porém continuaram desmatando, o que não é admitido. E existem outros que entraram após a criação do parque.
De Olho – É o caso do ministro Padilha?
O Padilha comprou esse título de terceiros após a criação do parque. Paredão I, Cachoeira e a Paredão II estão no nome da Jasmin Agropecuária, que é a pessoa jurídica de propriedade do ministro. Existem três propriedades no Cadastro Ambiental Rural (CAR). No caso da fazenda Cachoeira há um contrato de compra e venda. Ele comprou de terceiros em 2006, de uma pessoa jurídica.
A fazenda Paredão, que também está no nome do ministro e do seu sócio, foi adquirida em 2013. Na prática a Paredão II e a Paredão I são uma do lado da outra e só existe uma fazenda. Existe essa separação no CAR, mas na prática acaba sendo uma só, os próprios trabalhadores consideram uma fazenda só. Isto de acordo com as informações passadas pelos policiais que cumpriram a busca e apreensão.
Tem outra fazenda no nome do ministro que é a fazenda Agropecuária Jasmin, mas nessa não foi feito o levantamento do desmatamento. Ela também está dentro do parque, entretanto não tem ação civil pública ainda porque ainda não teve levantamento.
De Olho – Mesmo sem levantamento a senhora diria que houve desmatamento nessa terceira propriedade?
Não teve levantamento oficial, mas, das 60 e poucas propriedades analisadas até hoje, a maioria desmatou. Pouquíssimos proprietários não desmataram. Várias pessoas têm contrato de compra e venda, mas não foram repassadas as escrituras. Outros são posseiros que não têm prova de um título.
A situação é bem diversificada, mas aqueles que compraram posteriormente à criação do parque compraram sabendo que não poderiam utilizar aquela área, que ela não poderia ser explorada. E ainda desmataram. Eles devem responder por esse dano ambiental e não têm direito à indenização do Estado.
Dessas 50 propriedades, três representantes me procuraram e fizemos um acordo, vamos firmar as causas nos próximos dias. Eles reconheceram que estavam irregulares e que fizeram desmatamento irregular, se comprometeram a pagar o dano moral de R$ 1 mil por hectare de desmatamento e, no caso de pessoa jurídica R$ 2 mil.
OUTRO LADO
Questionado pelo Estadão, em relação às afirmações do procurador-geral, o ministro Padilha afirmou em nota que não tem nada a declarar, “pois o fato alegado não existe”. Paulo Taques, secretário da Casa Civil e primo do governador, negou que a PGE tenha trabalhado em favor do ministro ou de qualquer proprietário. “O Estado não olhou nomes ao atuar na questão”, afirmou. O procurador-geral do Estado, Rogério Gallo, respondeu no mesmo tom, negando que o órgão tenha atuado em defesa de interesse do ministro.
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