Estudo revela as consequências da “marcha para o oeste”: terras indígenas ocupam apenas 2,2%; assentamentos 1%; já grandes latifúndios formam 83% do Estado
Por Izabela Sanchez – de Campo Grande
Palco de um dos maiores conflitos indígenas do país, Mato Grosso do Sul tem 92% do seu território em terras privadas. É a maior abrangência de propriedades particulares do Brasil. Os dados são do Atlas Agropecuário, um projeto do Imaflora em parceria com o GeoLab, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP).
O estudo considera território privado as terras do programa de assentamentos rurais, terrenos com Cadastro Ambiental Rural, imóveis privados cadastrados no Incra ou no Programa Terra Legal e áreas não catalogadas em bancos de dados públicos.
Além do Mato Grosso do Sul liderar a abrangência de terras privadas no Brasil, 83% dessas terras são latifúndios. O Centro-Oeste é a região que mais concentra terras, já que 75% de seu território é formado por grandes propriedades.
Já as terras protegidas, que contemplam, entre outras modalidades, as terras indígenas, representam só 4% de Mato Grosso do Sul. Os assentamentos, apenas 1%. Em todo o Brasil, as terras privadas representam 53% do território, e desse total, 28% são latifúndios. As áreas protegidas, por sua vez, ocupam só 28% da extensão de terras do país. A coordenação da Imaflora comentou:
– A concentração fundiária está ligada a grande desigualdade que existe no Brasil em todos os segmentos da economia, mas que é muito intensa no meio rural. E ela é consequência de um modelo de produção, pesquisa e uma política agrícola que privilegiou um pequeno grupo de produtores de algumas culturas e em certas regiões do pais, aumentando ainda mais a desigualdade. E enquanto a política agrícola deslanchou em uma direção, a política agrária (que deveria cuidar da distribuição das terras) nunca saiu do papel e não teve efeito em uma distribuição mais equilibrada da terra”.
POUCA TERRA INDÍGENA, MUITA VIOLÊNCIA
Do total de 4% de áreas protegidas, apenas 2,2% do território do Estado correspondem a terras indígenas. Mato Grosso do Sul tem 36 milhões de hectares. Apenas 823 mil são regularizados pela Fundação nacional do índio (Funai).
Enquanto o latifúndio e a propriedade privadas concentram o Estado, os Guarani e Kaiowá – entre outras 8 etnias – aguardam pela demarcação de suas terras. Em 2007 o Ministério Público Federal em Mato Grosso do Sul (MPF-MS) teve que firmar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a Funai para que ela cumprisse o estudo de identificação e delimitação de 18 territórios da etnia. Dez anos depois, apenas 4 relatórios foram publicados. No entanto, essas 4 terras indígenas, ainda assim, não foram demarcadas.
Ao visitar o Estado em 2016, uma comitiva liderada pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), declarou que a etnia vive uma tragédia humana.
Intitulado ‘Tekoha: Direitos dos Povos Guarani e Kaiowá’, o relatório divulgado após a visita critica o poder público de forma abrangente. Ao percorrer 6 municípios e diversas cidades no Estado, a comitiva se deparou com um cenário que envolve fome, reservas minúsculas, contaminações por agrotóxico e acampamentos à margem de rodovias.
Maria Emília Lisboa Pacheco, presidente do Consea, declarou:
– A comitiva constatou um quadro de violência com mortes por assassinato, manifestações de preconceitos e violação de direitos humanos, em especial o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA). Uma verdadeira tragédia humana! Assim podemos sintetizar a dura e dramática realidade de vulnerabilidade social e de insegurança alimentar e nutricional grave desses povos.
UMA REGIÃO QUE ERA DOS ÍNDIOS
Antes do processo de colonização de Mato Grosso do Sul, a etnia se estendia por aproximadamente 40 mil quilômetros, espaço reduzido gradativamente após a Guerra da Tríplice Aliança. O século XX foi palco do processo de reservamento, que submeteu as etnias aos micro espaços das atuais reservas. Tudo por ação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que antecedeu a Funai.
Os 92% de territórios privados no Estado são resultado da ‘marcha para o oeste’, período no Brasil, em que o governo brasileiro convocou a colonização dessa região, e que submeteu os índios às margens dessa ocupação. Os Guarani Kaiowá sobreviveram em regimes de troca, trabalho forçado e sub remunerado, em terras recém tituladas pelo Estado.
Eles foram vítimas silenciosas da ditadura de 1964, quando muitos indígenas – essa conta ainda não feita – foram assassinados no Mato Grosso do Sul. Muitos tornaram-se trabalhadores das próprias fazendas que tomaram seus territórios.
Nos últimos anos, as comunidades reagiram e intensificaram o que chamam de retomadas: ocupações de fazendas que incidem nas terras reivindicadas. Para os Guarani Kaiowá, esse espaço sagrado é chamado de tekoha.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) estima que, nos últimos dez anos, uma liderança indígena foi assassinada por ano em conflitos agrários no Mato Grosso do Sul. O último caso ocorreu no ano passado no município de Caarapó, quando parte do território Dourados Amambai Peguá I foi ocupado pelos Guarani Kaiowá.
Clodiode Aquileu Rodrigues de Souza, 26, era agente de saúde indígena e foi assassinado com dois tiros, um no abdômen e outro no peito, no dia 14 de junho de 2016, na fazenda Yvu, em Caarapó.
Na época, a equipe da TV Drone, parceira do De Olho nos Ruralistas, esteve na retomada para um vídeo-reportagem. Confira o vídeo: