AGB, ANA, Consea e centros de pesquisa querem respostas do IBGE, que cortou pessoal e retirou questões sobre camponeses e agrotóxicos
Por Izabela Sanchez
Após o anúncio de cortes no Censo Agropecuário 2017, diversas associações reagiram e emitiram notas de repúdio ou enviaram questionamentos à presidência do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Entre elas a Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), a Rede de Estudos Rurais, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), ligado à Presidência da República.
O IBGE, alegando corte de gastos, diminuiu o número de vagas para aplicadores e retirou questões que envolvem a agricultura familiar, ou camponesa, e itens sobre temas como o uso de agrotóxicos. O órgão terá agora de responder ao Ministério Público Federal (MPF). A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, por meio da procuradora Deborah Duprat, exigiu respostas sobre os cortes.
No documento enviado para o presidente do instituto, Paulo Rabello de Castro, a procuradora – um nome forte na defesa dos povos indígenas e do campo – quer saber de que forma o instrumento “interfere na agricultura familiar”, já que o questionário fomenta diversas políticas públicas, municipais, estaduais e federais. O Censo Agropecuário é um dos principais instrumentos de análise do campo para o poder público.
O Censo Agropecuário começará a ser aplicado em outubro. Entre as questões suprimidas estão as que trazem luz sobre a rotina do pequeno produtor. Perguntas como “se o trabalhador se encaixa em regime de economia familiar”, “se integra projeto de assentamento” e “como está a situação fundiária do local de produção” ficaram de fora.
Outra entidade que reagiu aos cortes – essa ligada diretamente à Presidência da República – foi o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). A secretaria executiva do Conselho questionou o presidente do IBGE em ofício assinado pela secretária-executiva Marília Leão. “A agricultura familiar produz 70% dos alimentos diversificados que chegam à mesa dos brasileiros e gera a maioria dos empregos rurais”, afirmou. O Consea é uma das instituições que utiliza o Censo para organizar ações relacionadas à alimentação.
– A falta de dados atualizados sobre a agricultura familiar e os detalhamentos sobre as suas práticas agrícolas, situação fundiária e características do produtor como ‘cor ou raça’, dentre outros, constitui-se em retrocesso e invisibiliza o segmento no cenário das políticas públicas.
Ao Brasil de Fato, o presidente do Sindicato Nacional dos Trabalhadores do instituto (Assibge), Cassius de Brito, afirmou que a modificação prejudicará séries históricas de dados. “O pessoal está chamando de ‘censo cadastro’”, diz o sindicalista. “Reduziu o questionário, o número de recenseadores a serem contratados. Cortou muita coisa”.
IMPACTOS NA SAÚDE FICARAM DE FORA
A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) também enviou uma carta à presidência do IBGE. O documento contempla mais de 70 representantes de movimentos sociais do campo e das florestas, instituições da sociedade civil, redes de agroecologia, povos indígenas e comunidades tradicionais, agricultores e agricultoras familiares de todo o país.
A ANA considera que o questionário proposto pelo IBGE exclui ou altera perguntas fundamentais para a compreensão da realidade do campo brasileiro e para a avaliação das políticas públicas direcionadas à agricultura familiar:
– As exclusões ou alterações propostas precarizam a qualidade dos dados estatísticos sobre a realidade da agricultura brasileira com repercussões negativas para a formulação de propostas para a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e para a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica.
A ANA afirma que o último Censo Agropecuário possibilitou reconhecer o protagonismo da agricultura familiar na alimentação dos brasileiros, além de ser responsável pela formulação e aprimoramento de “políticas inovadoras voltadas à agricultura familiar e ao desenvolvimento sustentável”:
– Questões importantes não podem ficar de fora do formulário censitário do IBGE, como aquelas referentes à diversidade dos modelos produtivos e dos modelos alternativos de produção; aquelas relacionadas ao uso de adubos sintéticos e agrotóxicos, especialmente importantes para indicar a produção de alimentos saudáveis e impactos na saúde ambiental e das pessoas, aspectos fundamentais para os objetivos de desenvolvimento sustentável.
FIOCRUZ: ‘ORIGEM DA COMIDA NÃO SERÁ VERIFICÁVEL’
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), por meio da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, questionou em seu site os impactos que o corte no questionário pode trazer. Intitulado “Censo agropecuário: que realidade do campo brasileiro se quer mostrar?”, o texto defende mais detalhes sobre a vida do pequeno produtor, já que é ele quem leva alimentos aos brasileiros.
– Talvez você já tenha ouvido falar que a maior parte da comida que chega à mesa do brasileiro hoje é produzida pela agricultura familiar e não pelo agronegócio. Se já sabia, guarde bem a informação porque, em breve, ela não será mais verificável. Não que o cenário tenha se alterado. O que mudou foi a pesquisa que permitiu comprovar essa e muitas outras informações que têm ajudado a desmistificar a realidade do campo brasileiro. É que o próximo Censo Agropecuário, além de acontecer atrasado, vai levantar muito menos dados do que o anterior.
O artigo publicado pela Fiocruz – maior instituição de pesquisa em saúde da América Latina – traz a voz de pesquisadores que comentam as perdas decorrentes da redução de questões no Censo. Para a organização, os efeitos do consumo de alimentos com agrotóxicos sobre a saúde e os riscos implicados no manejo dessas substâncias pelos trabalhadores do campo tornaram esse tema central no debate científico sobre saúde pública.
Um exemplo disso é o fato de a Fundação Oswaldo Cruz ter participado da organização do ‘Dossiê Abrasco: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde’. A organização diz que uma rápida olhada no Dossiê dá ideia do prejuízo que o não mapeamento desses dados poderá provocar:
– Um dos temas que o livro aborda, por exemplo, indica a intensidade do uso de agrotóxicos por tamanho da propriedade e por município no Brasil. Em outro estudo destacado no ‘Dossiê’, é ressaltado o alto índice de estabelecimentos que, segundo os dados do censo de 2006, não faziam o descarte adequado de embalagens de agrotóxicos e dos seus resíduos tóxicos, ressaltando as diferenças sociorregionais expressas também nesses números. Com o questionário reduzido, não será possível avaliar o quanto se avançou nesse quesito porque não haverá dados para serem comparados.
“CORTES ATINGEM QUALIDADE DOS DADOS”
O presidente do IBGE recebeu diversos ofícios das entidades. Quem também enviou documento foi a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Helena Nader, presidente da entidade, afirma que a supressão dessas questões “por certo prejudicará a caracterização da agricultura familiar em aspectos essenciais para sua compreensão e consequente adoção de políticas públicas que possam envolver seu universo”.
– Entendemos ser desnecessário enfatizar aqui a importância da agricultura familiar para o Brasil, nos aspectos econômicos, sociais e ambientais, para solicitar ao IBGE que restabeleça as questões suprimidas ou em estudos para supressão, relativas a agricultura familiar, do censo agropecuário. Do contrário, o IBGE estará deixando de cumprir sua missão de “Retratar o Brasil com informações necessárias ao conhecimento de sua realidade e ao exercício da cidadania.”
Outra organização ligada à pesquisa que repudiou as alterações no Censo foi a Associação dos Geógrafos Brasileiros. A AGB explicou que os cortes atingem a qualidade dos dados produzidos e “a possibilidade de construção de conhecimento sobre o agrário e o agrícola do país”, conhecimento que poderia subsidiar devidamente a elaboração de políticas sociais e de desenvolvimento para o campo:
– A Diretoria de Pesquisas do IBGE, sob o repetido discurso de ausência de recursos, promove uma redução na quantidade e na qualidade de informações a serem levantadas pelo Censo Agropecuário da ordem de 60%.
Ao listar os prejuízos para o conhecimento, a AGB pontua que retirar as questões torna impossível analisar os processos de desenvolvimento da produção familiar, “eliminando as informações relativas ao maior universo social do campo brasileiro, os camponeses (agricultores familiares), considerando que estes sujeitos sociais respondem por mais de 70% da produção nacional de alimentos e mais de 80% do pessoal ocupado no campo brasileiro”.
Segundo a AGB, os camponeses foram beneficiários das várias políticas públicas voltadas para a produção, a assistência técnica, a comercialização e a distribuição de alimentos, tais como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), entre outras. Esses programas, de acordo com a organização, consolidaram a rede de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) “e que também colherá prejuízos de acompanhamento de seus resultados”.
Deixar de perguntar sobre os agrotóxicos implica, para a AGB, “o não reconhecimento da importância de dados sobre a produção agroecológica e uso de agrotóxicos, uma vez que a retirada das questões sobre os processos produtivos impossibilitam identificar as mudanças nas práticas de manejo ambientalmente corretas e o reconhecimento do pluralismo social e tecnológico da produção agrícola brasileira”.
‘DECISÃO INVISIBILIZA AS POPULAÇÕES DO CAMPO’
A Rede de Estudos Rurais – que reúne diversas universidades – também publicou, no boletim do grupo, uma carta aberta ao IBGE. A rede observa que, ao suprimir as questões, a mensagem política enviada pelo IBGE é a de que a alocação de recursos para a agricultura familiar deixa de ser uma necessidade:
– Essas omissões no formulário do censo, alegadamente motivadas pelo corte de orçamento (fato concreto), tiveram uma seletividade que configura uma decisão política pela invisibilidade dessas populações do campo, a maior parte daqueles que são beneficiários das políticas públicas estimuladas pela Lei da Agricultura Familiar.
A organização diz que o IBGE dá invisibilidade às expressões que as questões agrária, ambiental e das populações tradicionais assumem no mundo rural, “para além das produções agrícolas e pecuárias”. “Se tais populações deixam de contar nas estatísticas, deixam de ser relevantes na alocação de recursos para as mais diferentes políticas públicas”, assinala a Rede de Estudos Rurais, “notadamente aquelas voltadas para a promoção do seu desenvolvimento sustentável”.
A Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), que reúne pesquisadores em torno de modelos alternativos ao agronegócio, publicou uma carta aberta ao IBGE no portal, em que pede diálogo ao Instituto, antes de tomar decisões que possam afetar não só os agricultores, mas também as entidades que necessitam dos dados do Censo Agropecuário.
A ABA solicita de forma “veemente” que o IBGE dialogue com a comunidade científica e com os movimentos sociais que representam a agricultura familiar “e não suprima os quesitos relacionados à agricultura familiar, a sustentabilidade ambiental, a visibilidade dos trabalhos das mulheres e juventude e aqueles quesitos que tem permitido o reconhecimento, na América Latina, do nosso país como protagonista na produção de alimentos saudáveis e adequados para toda a população brasileira”.
Segundo a ABA, os cortes no orçamento não justificam a supressão desses itens, que provocará retrocessos políticos e sociais: “A permanência da decisão de suprimir tais quesitos ocasionará graves retrocessos políticos e sociais para a sociedade brasileira e, por isto, conclamamos que seja revista”.
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