Livro mostra grilagem em Belo Monte e conflito dos povos do Xingu com fazendeiros

In De Olho nos Conflitos, Em destaque, Grilagem, Principal, Últimas

Livro organizado por pesquisadores da SBPC relata o processo de ocupação das terras da região; Sudam subsidiou grileiros e povos tradicionais foram vítimas de coações

Por Izabela Sanchez

A Usina de Belo Monte é um empreendimento responsável por deslocar física e psicologicamente a vida de diversos ribeirinhos e comunidades tradicionais do Rio Xingu. Essa é a história mais conhecida. Um relatório escrito por 26 pesquisadores da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) vai além e mostra que o processo de ocupação da região também teve conflitos agrários. Organizado por Sônia Barbosa Magalhães e Manuela Carneiro da Cunha, “A Expulsão dos Ribeirinhos de Belo Monte”, lançado em julho, conta que antes da hidrelétrica grileiros e fazendeiros já ameaçavam a sobrevivência de pescadores e extrativistas.

O primeiro capítulo do livro traz título significativo: “Pequeno no meio dos grandes se machuca: o Incra, os grileiros e as fazendas”. Os pesquisadores Ana De Francesco, Alexandra Freitas, Clara Baitello e Denise da Silva Graça organizam relatos que mostram a pressão de ruralistas sobre as ocupações tradicionais. É o caso da família Braga Gomes, que acabou vendendo o próprio lote para um fazendeiro. Ela vivia da extração da seringa e, em 1977, comprou um lote “na terra firme”, para viver do agroextrativismo:

– Viviam em um lote grande onde plantavam de tudo, a terra era boa, a caça farta. No final da década de 1990 boa parte do dinheiro da Sudam [Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia] serviu a grileiros e fazendeiros comprarem e concentrarem terras na região. A família de Rosa não queria vender o lote, assim como muitos de seus vizinhos; o fazendeiro que estava adquirindo terras na região passou a intimidar de forma violenta as famílias, e a permanência no lote foi dificultada pelo gado que o fazendeiro soltava em seus roçados.

Com isso a família de Rosa e Sebastião perdia a produção e optou por vender o lote. Preço? Menor que o primeiro oferecido pelo grileiro. Foram parar  numa ilha.

Os pesquisadores relatam que famílias ribeirinhas permaneceram à jusante da cidade de Altamira (PA), em áreas próximas da barragem. Na região da cidade, no entanto, o processo de colonização e “a presença de grandes proprietários rurais” levou à “compressão dos ribeirinhos nas ilhas”.

AMEAÇADOS POR MADEIREIROS

Outra família sofreu pressões de fazendeiros e madeireiros. Os pesquisadores contam que a família de Silvestre Gonçalves Pessoa morava “na ilha” por causa dos índios: “Saíram de lá porque a ilha alagava e foram para o lote em frente, onde já cultivavam a roça antigamente. Cortavam seringa, tiravam uma parte nas terras e outra nas ilhas”. Na década de 1970, no entanto, a ocupação tradicional (que havia sido reconhecida pelo então Instituto Brasileiro para Reforma Agrária) acabou.

Por volta de 1972, quando já existia o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), começaram a chegar os fazendeiros e madeireiros. O Incra loteou as terras, contam os pesquisadores, e deu o título definitivo de posse para cada familiar. Os irmãos mais velhos de Silvestre ganharam lotes na frente do rio; os outros ficaram na parte de trás. Ele foi trabalhar como garimpeiro, em Itaituba (PA), “porque não tinha mais castanha, a seringa já tinha entrado em declínio e a roça não provia uma renda suficiente”. O lote da família já estava rodeado de fazendas e pasto.

A colonização também acabou por titular as terras griladas no território onde as comunidades retiravam sua subsistência. Com a violência, os camponeses migraram. Entre eles, Otavio Gomes das Chagas. Nascido em 1953, ele foi criado na Ilha de Serra. Preferia morar lá “porque tinham medo de índio brabo”. Mas a família possuía roça e castanhal na terra firme. Adulto, cortou seringa nas Ilhas de Serra e De Maria. Depois, extraiu castanha. Quando a Transamazônica foi aberta, em 1970, o Incra distribuiu terras, conta o livro:

– Quem não trabalhasse na terra tinha que desocupar. O Incra deu as terras de seu pai Gregório para os colonos, era uma área de castanhal e seringa onde eles trabalhavam, mas não receberam nada por isso. Depois que passou o corte do Incra, os donos das terras não os deixaram mais entrar para tirar castanha e seringa. Em 1986 seu Otávio foi viver na ilha De Maria, onde permaneceu até ser retirado pela Norte Energia.

… E ENTÃO VEIO A USINA

Se o processo de colonização que antecedeu Belo Monte “levou à compressão dos ribeirinhos em ilhas” em razão da concentração fundiária, a construção da usina intensificou ainda mais os conflitos agrários que já existiam na região. Ana A. De Frances, Alexandra Freitas, Clara Baitello e Denise da Silva Graça descrevem o processo de realocação das comunidades tradicionais. Os ribeirinhos foram levados para áreas indicadas pela Norte Energia, responsável por Belo Monte. Desastroso, esse processo trouxe uma série de consequências para a organização das comunidades, além de deixar os ribeirinhos ainda mais expostos aos ruralistas.

As pesquisadoras apontam a desarticulação das redes sociais formadas pelas comunidades, onde as pessoas articulavam, também, a proteção à terra. “Houve uma ruptura nos mecanismos tradicionais de gestão territorial”, escrevem elas, “aumentando atividades predatórias, como a caça e a pesca em locais anteriormente protegidos, assim como surtos de roubo e violência”. E os povos tradicionais eram ameaçados:

A proximidade das áreas de realocação com fazendas produtoras de gado sem a devida delimitação da mesma gera invasão das áreas dos ribeirinhos pelo gado, bloqueio de estrada por parte de fazendeiros e, em alguns casos, ameaças aos beiradeiros e coação.

Algumas áreas foram adquiridas para as comunidades tradicionais do Rio Xingu. Esse processo, ainda assim, deixou famílias expostas à violência de fazendeiros. As pesquisadoras relatam que os proprietários rurais não têm apenas um lote e, “com frequência”, permaneceram nos lotes adjacentes àqueles desapropriados. Elas coletaram o relato de uma das famílias:

O fazendeiro passou uma cerca dentro do nosso lote. A Norte Energia marcou um ponto, 250 para um lado, 250 para o outro e 250 para dentro. Mas o fazendeiro passou uma cerca em 180 metros para pegar um capim que tinha lá e eles trancam a porteira com chave para a gente não passar.

Pela estrada os caminhões passavam para pegar o cacau, mas ficou tudo trancado. E os fazendeiros tentaram novamente tomar aquela área. “A gente já foi na Norte Energia falar e eles falaram que iam mandar a fiscalização”, contou o extrativista. “Eu vim de lá [reassentamento] na quinta-feira e o gado deles estava lá dentro. É gado, é cavalo, tudo solto, lá onde temos o nosso barraco”.

DESIGUALDADE E SEGREGAÇÃO

O livro foi organizado a pedido do Ministério Público Federal, como um relatório. Mas vai além disso e constitui um documento histórico. Pode ser lido aqui, na íntegra.

As pesquisadoras concluem que a chegada dos fazendeiros e da usinas alterou a vida dos ribeirinhos da região:

– A expulsão de um grupo social de um território tradicionalmente ocupado intensifica a desigualdade, o conflito social, a segregação e dispersão das famílias e põe fim à uma complexa rede de parentescos e vizinhança que constituíam mecanismos eficientes de ajuda mútua e proteção territorial. O deslocamento forçado, tal como foi realizado, afetou as camadas mais vulneráveis da sociedade e trouxe sérias ameaças para a reprodução social e cultural dos ribeirinhos do médio Xingu.

***

Foto principal: Anna Maria Andrade/ISA

You may also read!

Doador de campanha de Nikolas protagoniza conflito com quilombolas em Minas

Sócio da Ônix Céu Aberto, Gabriel Baya Andrade doou R$ 20 mil para o deputado, líder de campanha contra

Read More...

Tigrinho, golpistas e ex-sócio de Trump: quem financiou Nikolas Ferreira?

De Olho nos Ruralistas conta quem são os doadores de campanha do deputado mineiro, articulador das notícias falsas que

Read More...

Vídeo mostra como mercado, imprensa, Legislativo e Judiciário naturalizaram Bolsonaro

De Olho nos Ruralistas reúne informações e imagens sobre a ascensão do político patrocinada por empresários e jornalistas; omissão

Read More...

Leave a reply:

Your email address will not be published.

Mobile Sliding Menu