Candidato os mediu em arrobas ao dizer que esteve no município do Vale do Ribeira (SP); eles respondem à declaração de que “não fazem nada” e “não servem nem para procriar”
Por Igor Carvalho e Leonardo Fuhrmann
Quando ameaça os direitos de indígenas e quilombolas, o presidenciável Jair Bolsonaro (PSL) usa um argumento de autoridade: sabe do que está falando porque esteve lá. Em palestra na Hebraica, no Rio, em abril de 2017, ele relatou uma suposta visita a um quilombo no município de Eldorado, no Vale do Ribeira, região em que passou boa parte de sua infância e adolescência e onde alguns de seus irmãos e sobrinhos ainda moram:
– Quilombolas é outra brincadeira. Eu fui num quilombola [sic] em Eldorado Paulista. Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Acho que nem pra procriador serve mais.
O candidato foi alvo de denúncia da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pela prática, indução e incitação da “discriminação e preconceito contra comunidades quilombolas”. A primeira turma do Supremo Tribunal Federal livrou Bolsonaro de responder por racismo. Considerou que a liberdade de expressão e, principalmente, a imunidade parlamentar lhe livram de responder criminalmente pelas declarações. Os ministros Marco Aurélio Mello, Luiz Fux e Alexandre de Moraes votaram pelo arquivamento da denúncia.
Segundo os quilombolas da região, uma das mais pobres do estado de São Paulo, a fala de Bolsonaro não é baseada em nenhuma observação da realidade local. Até porque, dizem, ele nunca esteve em nenhum dos quilombos do Vale do Ribeira.
Líderes de quilombolas e pessoas que convivem com eles afirmam que nunca viram o candidato em qualquer comunidade de Eldorado ou de município vizinho. “Aqui, ele nunca passou, nem de avião, que é mais fácil. Nós nunca vimos esse homem, nem conhecemos ele”, diz Jovita Frutini França, do Quilombo Galvão. “Trabalho há 18 anos com as comunidades quilombolas, não me lembro de ter visto o Bolsonaro aqui”, afirma o vereador de Eldorado Sidney Santana (PT), o Cido.
Os quilombolas também se sentiram ofendidos pela maneira como foram tratados pelo homem que lidera a corrida presidencial. “Eu me sinto triste de uma pessoa dizer que os quilombolas pesam sete arrobas. Assim, ele está comparando a gente com um animal”, diz Auríco Dias, do Quilombo São Pedro. “Nunca vi o Bolsonaro em Ivaporanduva, mas ele disse que a gente pesa sete arrobas. Essa declaração ele não pode fazer, ela é racista”, afirma Benedito Alves da Silva, o Ditão, do Quilombo Ivaporonduva.
Para Dodge, o presidenciável “tratou com total menoscabo os integrantes de comunidades quilombolas. Referiu-se a eles como se fossem animais, ao utilizar a palavra ‘arroba’. Esta manifestação, inaceitável, alinha-se ao regime da escravidão, em que negros eram tratados como mera mercadoria.” O discurso de Bolsonaro servia para embasar um ponto de seu programa de governo, o fim do acesso dos povos tradicionais a terras. “Não vai ter um centímetro a mais de terra demarcada para terra indígena ou quilombola”, afirmou.
FALAS DO CANDIDATO TÊM PERSPECTIVA RACIAL
Bolsonaro cria, em sua fala, um quilombo que seria um entrave ao progresso, um custo para a sociedade: “Recebem cesta básica e mais material em implementos agrícolas. Você vai em Eldorado Paulista, você compra arame farpado, você compra enxada, pá, picareta por metade do preço vendido em outra cidade vizinha. Por que? Porque eles revendem tudo baratinho lá. Não querem nada com nada”.
Na mesma fala, ele contrasta com o que seria o comportamento dos japoneses que vieram para o Brasil. “Alguém já viu um japonês pedindo esmola por aí? Porque é uma raça que tem vergonha na cara. Não é igual essa raça que tá aí embaixo ou como uma minoria tá ruminando aqui do lado”, no momento em que criticou o Bolsa Família. Criticou ainda a possibilidade de o Brasil receber refugiados de outros países, como “haitianos, venezuelanos, angolanos e chineses”.
A discriminação racial também está presente no discurso de seu candidato a vice-presidente, o general Antonio Hamilton Mourão (PRTB). “Temos uma certa herança da indolência, que vem da cultura indígena. Eu sou indígena. Meu pai é amazonense. E a malandragem é oriunda do africano”, afirmou, em agosto deste ano, em uma palestra na Câmara de Indústria e Comércio de Caxias do Sul (RS).
Na véspera do primeiro turno, o general deu nova declaração de desvalorização das demais etnias em relação aos brancos. “Gente, deixa eu ir lá que meus filhos estão me esperando”, afirmou a jornalistas no fim de uma entrevista no aeroporto de Brasília. “Meu neto é um cara bonito, viu ali. Branqueamento da raça”.
Depois de ser denunciado pela PGR e antes da conclusão do julgamento pelo STF, Bolsonaro voltou a atacar os quilombolas de Eldorado e desafiou a procuradora Raquel Dodge a ir junto com ele à mesma comunidade que ele teria visitado. Desta vez, em rede nacional, em abril, no programa “Agora é com Datena”, na Bandeirantes:
– Queria que a doutora Raquel Dodge me acompanhasse nesse quilombola [sic] que eu fui em Eldorado Paulista, para ver o desperdício de recursos, os maquinários abandonados. Eles não fazem absolutamente nada. É uma realidade.
SISTEMA QUILOMBOLA FOI PREMIADO PELA EMBRAPA
A “realidade” apontada por Bolsonaro – que confunde as palavras quilombo e quilombola – não é a mesma presenciada pelo De Olho nos Ruralistas, em uma visita realizada há alguns dias. Ao todo, 19 comunidades quilombolas em Eldorado e região cultivam mais de 200 variedades agrícolas e medicinais. A produção quilombola é 100% orgânica, sem adubo sintético ou agrotóxico.
O sistema tradicional agrícola quilombola do Vale do Ribeira foi reconhecido em setembro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como Patrimônio Cultural do Brasil e já foi premiado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Desde 2007, a Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais reúne milhares de consumidores e turistas em Eldorado.
No dia das crianças, houve uma festa na sede social do Quilombo Galvão, que também acolhe moradores do Quilombo São Pedro. No galpão principal, os quilombolas organizaram oficinas de pintura, distribuição de brinquedos e gincanas. No campo de futebol, bola rolando e crianças brincando com bolas de sabão. Ao lado, a escola da comunidade, que recebe alunos também de outros quilombos.
Apesar de destacarem que o candidato jamais esteve lá, os quilombolas mais antigos garantem que a história era diferente com o pai dele, Percy Geraldo. Mesmo sem formação em odontologia, era um prático: fazia obturações, extraía dentes e fazia dentaduras. Costumava atender os moradores das áreas rurais, inclusive quilombolas. Nos anos 1970, foi acusado de exercício ilegal da odontologia. Chegou a ser preso, mas foi absolvido com o compromisso de exercer somente a atividade de protético.
Curiosamente, a família Bolsonaro atribui o episódio a uma perseguição política. O Brasil vivia na ditadura militar e Percy Geraldo foi candidato a vereador de Eldorado pelo MDB, de oposição ao regime.
O assessor de imprensa do presidenciável Jair Bolsonaro (PSL) foi procurado antes do início da publicação da série, mas não respondeu aos recados.
LEIA MAIS:
Cunhado de Bolsonaro é condenado por invasão de quilombo no Vale do Ribeira