Chef criado na zona sul de São Paulo reclama do desperdício de alimentos e se preocupa com extinção do Consea: “Estão acabando com vários órgãos responsáveis pela fiscalização e monitoramento dos alimentos”
Por Vivi Cabrera
– Todos os cozinheiros e ajudantes de cozinha de grandes restaurantes moram na quebrada. Em cada cozinha no Brasil, pelo menos uma pessoa do quadro de funcionários é pobre e periférica.
Essa é a constatação que o chef de cozinha Edson Leite, do projeto Gastronomia Periférica, faz a partir de sua trajetória de vida. Na contramão dos que se voltam somente ao paladar de quem pode pagar por boa comida, o autor do livro “Porque Criei o Gastronomia Periférica” (Editora Inova, 2018) decidiu exaltar a gastronomia dos rincões do Brasil.
De origem pobre, viu muitas portas se fecharem. Mas se reinventava: quis ser jogador de futebol, mas um problema na coluna o tirou de campo; foi rapper, produtor musical e DJ, mas as coisas não aconteceram do jeito que esperava; como office boy, trabalhou em uma rede de fast food – um emprego geralmente ocupado por jovens da periferia. Todavia, ele encontrou seu norte somente fora do Brasil. Saiu com apenas R$ 600,00 no bolso e o peito aberto para novas experiências.
Olha só aquele clube que dá hora
Olha o pretinho vendo tudo do lado de fora
Nem se lembra do dinheiro que tem que levar
Do seu pai bem louco gritando dentro do bar
Nem se lembra de ontem, de hoje e o futuro
Ele apenas sonha através do muro
O menino da zona sul paulistana que ouvia “Fim de Semana no Parque”, do Racionais MC’s, e se orgulhava de morar próximo do local da música, no Jardim São Luís, amadureceu na marra. Ter de se virar até para comer era desafiador, um batismo de fogo. Em Portugal, depois de ter trabalhado como entregador de listas telefônicas, foi para Lisboa para trabalhar em dois restaurantes: em um deles era garçom; em outro, lavava pratos.
Num desses revezes do acaso, onde era garçom, as duas chefs faltaram. Em apuros, a dona do estabelecimento perguntou para Leite se ele sabia cozinhar. Com a cara mais lavada do mundo, disse sim. Uma vez dentro da cozinha, concebeu um plano: ligou para o chef do outro restaurante e ficou com o fone de ouvido escutando uma espécie de tutorial para conseguir preparar os pratos.
O que era para terminar em desastre se tornou um novo começo. Chefiou a cozinha de hotéis, navios, hospitais, clubes. Entretanto, sua coluna – que o afastou do futebol – inspirou cuidados e acabou por culminar em uma cirurgia. Era um motivo para voltar para casa.
De volta ao Brasil, em 2012, decidiu estudar Serviço Social. Dividia-se entre a faculdade e o trabalho como chef de cozinha do tradicionalíssimo Esporte Clube Pinheiros, na zona oeste paulistana.
‘GASTRONOMIA PERIFÉRICA PASSOU A SER UMA NOVA CATEGORIA’
Entre dois mundos distintos. Era como se sentia. Saía da zona sul e ia para um clube que é um oásis em meio ao cinza de São Paulo. Lá, famílias abastadas desfilam com seus pets e uma babá a tiracolo para cuidar dos filhos. Não é qualquer um que tem acesso.
Mas as diferenças iam muito além.
Leite viu no desperdício de alimentos um dos grandes vilões da fome e uma questão a ser resolvida. Percebeu que era viável melhorar a qualidade da alimentação das pessoas de baixa renda e, por conseguinte, a qualidade de vida. Aproveitando tudo o que o alimento tem a oferecer (talos, folhas, casca e sementes, além das Plantas Comestíveis Não Convencionais, as Pancs), a redução do custo com alimentação aliviaria o orçamento familiar.
“Na cozinha mediterrânea tudo tem que ser bem aproveitado para não ter prejuízo e porque faltam coisas também”, diz o chef. “A Europa não produz nada em massa a não ser uva. Aqui no Brasil nós ostentamos e descartamos coisas em nossas casas que outras pessoas no mundo se matariam por 30 gramas”.
São as mãos periféricas que preparam o gourmet, que cultivam e colhem os alimentos orgânicos utilizados em pratos para um público, nos restaurantes que consegue pagar por aquele quê a mais. Isso incomodou o chef a ponto de convertê-lo em um agente de transformação social. Queria criar para os jovens da quebrada as mesmas oportunidades que teve para que não precisassem ir tão longe como foi.
Junto com Adélia Rodrigues, montou uma escola de gastronomia no espaço de uma ONG com a contrapartida de fornecer alimento às crianças atendidas por ela. Lá ele apresenta sua arte para a molecada com um olhar socioeducativo, profissionalizando com um olhar voltado ao aproveitamento total dos alimentos.
O projeto possui mais dois espaços e já se formaram mais duas turmas para o curso, totalmente gratuito. A única exigência é que os alunos participem de todos os eventos, como num estágio.
Por meio de um aplicativo chamado Rango – que funciona como um serviço de catering – as pessoas atendidas pelo projeto conseguem um lugar ao sol no mercado de trabalho da periferia, ajudando a movimentar a economia em seus bairros. Na contramão da gentrificação.
O chef costuma dizer que o resultado não se mede nos números. Seu trabalho impacta famílias, um território:
– É como jogar uma pedra no rio e ver as ondulações ao redor. Num universo de 280 mil pessoas que é o Jardim São Luís, fazer uma escola de gastronomia já é um negócio impactante. Vejo a molecada mudando a relação com o alimento, querendo empreender, trazendo a mãe, a família para assistir e participar. Esse é o resultado real. A gastronomia periférica passou a ser uma nova categoria de cozinha. Existe gastronomia italiana, chinesa, japonesa, portuguesa, né?! E por qual motivo não pode existir a Gastronomia Periférica?
Tanto pode como virou tema de livro. Um de autoria do próprio chef e outro de receitas periféricas bancado por uma marca de tintas.
‘PERIFERIA É SEMPRE A PRIMEIRA A SOFRER’
Em meio a uma agenda voltada para interesses que não são os do povo, Leite se mostra preocupado com as medidas tomadas pelo governo brasileiro, como a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. “Extinguiram o Consea e estão acabando com vários órgãos responsáveis pela fiscalização e monitoramento dos alimentos”.
Ele também se preocupa com o crescimento da bancada ruralista e a liberação para uso, no Brasil, de agrotóxicos proibidos no mundo todo. Ou com o sufocamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra por parte do governo:
– O MST que é um dos maiores produtores de arroz orgânico do mundo! A coisa não está boa, mas a gente precisa estar junto. Seja MST, seja a periferia, sejam os movimentos de alimentação saudável. Precisamos nos juntar para mudar essa perspectiva ruim que temos com esse governo. Eu sou um periférico. Moro na periferia que é sempre a primeira a sofrer. Estão nos sufocando com alimentação ruim, nos tratando de forma ruim com ideias ruins. Seja como for. Precisamos estar juntos.
2 commentsOn Edson Leite, do Gastronomia Periférica: “Todo cozinheiro de grande restaurante mora na quebrada”
Amei!!! Umas das melhores matérias do “de olho nos ruralistas” está de parabéns!!👏👏👏👏❤❤❤❤❤
Uma questão muito importante de ser abordada!