Vercilene Dias, primeira advogada quilombola com mestrado em Direito, descreve trajetória de violências e ameaças

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Com a dissertação "Terra Versus Território: Uma análise Jurídica dos Conflitos Agrários na Comunidade Quilombola Kalunga de Goiás”, Versilene Dias se tornou a primeira mulher quilombola a ter mestrado em Direito no Brasil

Assessora jurídica da Terra de Direitos aponta efeitos da intolerância de Bolsonaro no território e na defesa de direitos humanos; ela descreve invasão de fazendeiro em comunidade e o preconceito que sofreu na universidade

Por Priscilla Arroyo, em Brasília   

No dia quatro de abril de 1990, o nível do Rio Paranã — que separa os estados de Tocantins e Goiás — subiu e chegou à porta das casas da comunidade Vão de Moleque, uma das 39 do quilombo Kalunga. A abundância de água dificultou o caminho da parteira Mãe Cipriana até a morada da família Dias, onde todos estavam prontos para comemorar a chegada da segunda filha. Esse sufoco não só marcou o nascimento de Vercilene Francisco Dias, como designou a sua ligação com as águas.

Essa conexão se faz presente em momentos de transição da vida, quando precisa driblar algum obstáculo. A começar do descaso histórico com os quilombolas: “Pra começar, meu nome foi escrito errado no cartório. Era pra ser França, mas na hora o escrivão se confundiu e acabou ficando Francisco. Como pode um erro desses?”

A indiferença é só um dos fatores enfrentados pelos milhares de descendentes de escravos. Para Vercilene, a ameaça histórica aos territórios tradicionais é agravada pela postura intolerante de Jair Bolsonaro. “A posição da pessoa de maior relevância para o estado contribui para a sociedade revelar o ódio que sempre existiu em relação às minorias”, diz.

Em meados de 2017, ainda deputado, Bolsonaro declarou — supostamente após visitar um quilombo em Eldorado (SP) — que aqueles descendentes de escravos, medidos pelo político em arrobas, “não servem nem para procriar“. A posição preconceituosa pode ser traduzida em números. No ano passado, até setembro, o reconhecimento de comunidades quilombolas caiu 91,3% em relação a 2018. 

MENOS DE 1% DOS QUILOMBOS FORAM TITULADOS

A atuação do governo Federal tende a atrasar ainda mais a regularização das comunidades. Hoje há ao menos 3 mil quilombos no Brasil, dos quais apenas 154 foram titulados. A falta de legalidade impede a chegada de políticas públicas nas comunidades e deixa os moradores vulneráveis à invasão de latifundiários. Uma das primeiras memórias de Vercilene é de um coronel vizinho, que durante anos tentou expulsar ela e a sua família, alegando que o pedaço de terra onde sua mãe mora até hoje era de sua propriedade.

“Ele chegava com capangas, cachorros e falava que a gente tinha de sair dali”, lembra. Diante da situação, ela reconheceu o senso de justiça com apenas oito anos, o que a fez vislumbrar o futuro profissional pela primeira vez. “Com essa idade, ganhei meu primeiro brinquedo industrializado, um casal de soldadinhos”, diz, ao remontar o raciocínio que formou ao entender a função real das réplicas. “Meus padrinhos explicaram que eles eram bons e prendiam pessoas más. Naquele momento, decidi que estudaria e de alguma maneira iria ajudar o meu povo prendendo gente como o fazendeiro que nos importunava”.

Um longo caminho seria percorrido até que ela se formasse em direito na Universidade Federal de Goiás (UFG), em 2013, e emendasse à conquista uma pós-graduação, o que a fez a primeira mulher quilombola com mestrado em direito no Brasil. Intitulado “Terra Versus Território: Uma análise Jurídica dos Conflitos Agrários na Comunidade Quilombola Kalunga de Goiás”, a dissertação defendida em fevereiro de 2019 discute o complexo processo de titulação da sua comunidade natal, que se arrasta por quase quarenta anos.

“Tenho esperança que um dia possamos viver em um território totalmente titulado e seguro, que ninguém vai invadir”, afirma. Para concluir os estudos básicos e pisar na universidade, ela venceu a saudades da família, o preconceito, abusos e o cansaço de trabalhar desde menina em troca de moradia e comida para poder frequentar a escola. “Hoje lutamos por igualdade, por educação no quilombo. É um trabalho de formiguinha, mas seguimos”.

‘NÃO VIA MEU PAI PORQUE ELE NÃO TINHA COMIDA’

O quilombo Kalunga tem mais de 300 anos e abriga cerca de 8 mil pessoas. (Foto: Valter Campanato / Agência Brasil)

Na prática, a ausência da presença do Estado nos quilombos separa famílias. A trajetória que Vercilene percorreu para estudar replica a de milhares de pessoas originárias dessas comunidades. Aos cinco anos, ela deixou a casa dos pais pela primeira vez foi morar com os padrinhos em um vilarejo em Tocantins, onde pôde frequentar a escola. Depois da sua partida, novos irmãos nasceram — ao todo, são doze filhos. Os recursos, por outro lado, ficaram mais escassos.

“Meu pai dizia que a mata estava fechada, e por isso não podia ir visitá-los”, conta. “Chorava muito de saudades. Só com o tempo fui entender que ele me impedia de ir porque não tinha comida para todo mundo”. A família plantava mandioca, arroz, feijão, abóbora. Mas durante o período entre colheita e nova semeadura, o estoque não era suficiente.

Quando ela completou 8 anos, seus pais se separaram e a levaram de volta a Goiás, para ajudar no cuidado dos irmãos. Seu desejo de continuar os estudos motivou a família a construir, no quintal de casa, a primeira escola da comunidade Vão de Moleque. “O professor era o tio do meu pai”, diz.

O esforço abriu espaço para a construção de outras escolas na comunidade, mas a falta de professores era um problema latente. Por isso, quando estava na quarta série, Vercilene começou a ser impelida para dar aula aos menores, ensiná-los a escrever. “Mas não queria ser professora, e sim aprender mais”, conta. Diante da falta de mestres no quilombo, a solução foi deixar a sua casa pela segunda vez. 

Aos 11 anos, ela viajou com uma sacola e algumas roupas para Arraias (TO), município de 11 mil habitantes, onde se deparou com uma realidade bem diferente da qual estava acostumada. “Fui morar na casa de um fazendeiro, fazer trabalho doméstico em troca de estadia”, diz. Já na chegada, a garota da roça se surpreendeu ao ver tudo iluminado à noite. Depois de ser apresentada à luz elétrica, na sala da casa da família, veio a segunda estranheza. “Dei de cara com uma televisão e estava passando uma cena de novela na qual o protagonista nadava no mar com Iemanjá”, lembra. “Não entendia como ele não se afogava”, diz, aos risos.

A cena marcou o início dos quatro difíceis anos que ela passara lá. A rotina se resumia a fazer muitos serviços domésticos e ir à escola, compromisso que nunca faltou. “Tive de enfrentar dificuldades que prefiro não comentar”, diz. “Alguns dias, só pensava em quebrar o braço, não fazer mais nada e colocar a culpa em uma pessoa”, conta, com os olhos molhados.

Com 14 anos, Vercilene decidiu mandar uma carta para o seu pai pedindo para voltar. Demorou três meses para ser resgatada. Apesar dos apuros, observando a rotina de uma das filhas do casal, estudante de Direito, ela decidiu que faria o mesmo curso. A volta ao pequeno município de Cavalcante (GO) não lhe apeteceu.

“Descobri a vontade de desbravar o mundo, conhecer pessoas”, lembra. Então mudou para Goiânia e topou um trabalho como doméstica para ter independência financeira. “Em algumas casas que trabalhei tive de lidar com os companheiros das mulheres, que iam para a minha cama à noite”.  

Logo decidiu prestar vestibular para Direito na UFG, que à época tinha recém implantado uma política de cotas para negros e quilombolas. Após passar na primeira fase, se esforçou para não zerar em nenhuma disciplina na segunda fase, diante da dificuldade que tinha especialmente na área de exatas. 

“Considero decisiva uma questão relacionada às águas”, diz. Aqui, mais uma vez seu elemento de sorte se fez presente. “A pergunta era sobre a formação de temporais, assunto que recém tinha visto em um documentário. Acertei”. Quando confirmou que tinha sido aprovada, rememorou todos os obstáculos vencidos até ali e teve orgulho de sua caminhada.

‘NA FACULDADE, NÃO ME DAVAM NEM OI’

Vercilene comemora a conclusão da graduação em Direito com a segunda madrinha, Raimunda Gomes. (Foto: Acervo Pessoal)

Vercilene era uma das cinco estudantes que ingressaram no recém-implantado Programa de cotas UFGInclui, em, 2008. “Entrei na faculdade de Direito e não sabia nem o que era Constituição”, lembra. “Tinha aula de história do pensamento jurídico e hermenêutica. Chorava todo dia”. Nesse momento difícil, ela recebeu apoio de Dona Raimunda Gomes, amiga dos parentes do quilombo, que passou a considerar como uma terceira mãe. “Raimunda é uma mulher negra, forte. Me ofereceu um salário para ajudá-la nos afazeres domésticos, introduziu noções da identidade negra e me deu um lar”.

Na nova casa ela pôde se servir da biblioteca de sua segunda madrinha, o que lhe possibilitou começar a estudar os assuntos que mais interessavam. “Passei a gostar de Michel Foucault, Pierre Bourdieu”, relata. “Conheci o contrato social, de Thomas Hobbes. A partir de então, comecei a entender a questão da propriedade privada. Em minha visão, as coisas eram coletivas”. Foi difícil para a garota que cresceu no ambiente com valores coletivos conciliar a ideia de direito que a faculdade ensinava com o seu entendimento pessoal. 

Além da dificuldade com o conteúdo do curso, estar à vontade no ambiente acadêmico parecia impossível. “Era a única negra entre os 61 alunos da minha sala”, descreve Vercilene. Sua presença só era notada quando opinava de maneira diferente do grupo:

— Teve gente que passou mais de cinco anos estudando na mesma sala e nunca me deu um oi,  sentia esse preconceito. Em uma ocasião, um colega me disse que a política de cotas facilitaria uma guerra racial. Respondi que nós, negros, já estávamos em guerra. Em guerra contra a desigualdade, para sobreviver diariamente, uma batalha para manter a vida digna. Guerra para ter um espaço na faculdade. A sala parou e o professor até mudou de assunto para não aprofundar a discussão. 

Tal cenário mudou quando ela descobriu o Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular (Najup), considerado como o grupo “esquerdista” da faculdade, onde encontrou a sua turma ao praticar protestos contra injustiças e cobrar da reitoria melhores condições para os cotistas. “O Najup foi a revolução que precisava na UFG, que me fez entender aquele espaço”.  

O segundo passo de sua militância acadêmica foi a formação da União dos Estudantes Indígenas e Quilombolas, coletivo que se dedicou a combater fraudes denunciando pessoas que se beneficiaram de cotas sem ter direito e a lutar para melhorar a condição das minorias dentro da UFG. Entre as vitórias importantes do movimento, se destacam as aulas de reforço de matemática e português e uma casa de estudante dedicada unicamente a indígenas e quilombolas. 

“Com essa estrutura montada, passamos a trabalhar para mostrar aos colegas quilombolas que a universidade era para eles também”, afirma. “Deu certo, hoje tem mais de 300 alunos indígenas e quilombolas na UFG”. A dedicação lhe trouxe novos amigos e importantes oportunidades, como viajar até o Peru para fazer uma especialização de litígio estratégico em direito internacional de indígenas, experiência essencial na sua formação. 

“Ao fim do curso, fui prestar o exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)”, recorda-se. “Queria provar que eu podia”. Foi aprovada e, em seguida, entrou no mestrado. Mas faltava colocar a teoria na prática e concretizar o objetivo inicial: ajudar os quilombolas. Em 2018, começou a trabalhar como assessora jurídica na Terra de Direitos, organização com sede em Curitiba, e se mudou para Brasília.

Ela se dedica a traduzir para a linguagem jurídica valores que ultrapassam a racionalidade. “A maioria dos juízes não são sensibilizados com a questão dos quilombolas e das minorias”, afirma. “Por isso, quando vamos ao tribunal o maior desafio é  traduzir dentro dos parâmetros do direito os sentimentos da comunidade em relação ao modo de vida, a ancestralidade”.

PROJETO DA FAMÍLIA CAIADO AMEAÇA COMUNIDADE

A situação de insegurança dos Kalunga é uma das suas principais preocupações, assim como o lamento por muitas pessoas precisarem deixar o quilombo por não ter como manter o sustento lá. “Gostaria que mais quilombolas entendessem, assim como entendi, que podemos ser nós mesmos e defender os nossos costumes, os nossos direitos”, afirma. “A questão da baunilha [registrada pelo chef Alex Atala] é um exemplo de problema que poderíamos evitar com mais engajamento. É um bem nosso que está sendo apropriado. Não dá para aceitar isso”. 

A comunidade Vão das Almas, umas das 39 ameaçadas pelo projeto da família Caiado. (Foto: Valter Campanato / Agência Brasil)

Em sua avaliação, embora alguns grupos dentro da comunidade são conscientes desse poder, mobilizar todo o quilombo continua sendo um grande desafio. “As pessoas vivem distantes, não trocam ideias. Uma das consequências desse isolamento é que pessoas mal intencionadas chegam lá e cooptam aqueles que não têm estudos para apoiar algum absurdo contra a comunidade”. 

A maior ameaça para os Kalunga há cerca de duas décadas é o projeto de construção da Pequena Central Hidrelétrica (PCH) Santa Mônica, encabeçado pela empresa Rialma, de Emival Caiado, primo do governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM). A mudança no curso do Rio das Almas, fonte de água para parte dos Kalunga, afetaria diretamente a rotina dos moradores que dependem do rio para matar a sede, tomar banho ou cozinhar:

— Eles estão colhendo assinaturas de pessoas que são a favor do projeto. A maioria daqueles que coloca nome e documento não sabe ler. A princípio, a construção desapropriaria 140 famílias. 

Foto principal: Vercilene Dias, advogada da Terra de Direitos. (Foto: Victor Moreira)

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