Latifundiária há quase duas décadas, nova secretária especial de Cultura fez declaração em 2009 em Dourados, pivô dos conflitos contra os Guarani Kaiowá e outras etnias; ela se referia à criação de portarias da Funai para a criação de reservas indígenas no Estado
A nova secretária de Cultura do governo Bolsonaro se sente à vontade no campo. Há quase duas décadas, Regina Duarte cria gado da raça Brahman em uma fazenda em Barretos, interior de São Paulo. Convidada para falar da sua atividade na 45ª edição da Expoagro, evento apoiado pela Bunge que aconteceu em 2009 em Dourados (MS), a atriz disse “sentir medo” das portarias da Fundação Nacional do Índio (Funai) para a criação de reservas indígenas no Mato Grosso do Sul.
Conforme registrado na época pelos jornais sul-mato-grossenses e, no UOL, por Leonardo Sakamoto, ela apoiou produtores e líderes rurais quanto à demarcação de terras indígenas e quilombolas. “O direito à propriedade é inalienável”, disse. Conhecida pela frase “eu tenho medo”, durante a campanha de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002, a atriz ainda se colocou à disposição dos ruralistas: “Podem contar comigo, da mesma forma que estive presente nos momentos mais importantes da política brasileira”.
Ela se colocou à disposição em um dos maiores conflitos mundiais contra povos indígenas. Essa violência atinge as etnias Guarani Kaiowá, Guarani Ñandeva e Terena, no sul do estado. Foi no Mato Grosso do Sul que, em 2013, os fazendeiros se organizaram o “leilão da resistência“, um evento inicialmente organizado para financiar ataques armados contra as populações indígenas na região. Entre os diversos políticos presentes estava a atual ministra da Agricultura, Tereza Cristina.
O estado concentra a segunda maior população indígena do país, atrás apenas do Amazonas. A vida desses povos tradicionais só piorou desde o discurso de Regina, em 2009. De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), as comunidades Guarani Kaiowá e Ñandeva ocupam apenas 70 mil dos 242 mil hectares destinados a eles nas 31 terras indígenas reconhecidas oficialmente no estado. O cenário eleva os conflitos na região. Entre 2001 e 2018, 14 líderes indígenas foram assassinados. Somente em 2018, 38 indígenas foram mortos no Mato Grosso do Sul, de acordo com dados preliminares. O estado fica atrás apenas de Roraima, onde os assassinatos somaram 62 no mesmo ano.
Em meio à violência contra as populações tradicionais, as áreas degradadas aumentam. O Mato Grosso do Sul tem 28 milhões de hectares, dos quais 14 milhões já viraram pastagem. “Enquanto isso, milhares de indígenas vivem em situação real de confinamento”, aponta o último relatório “Violência Contra Povos Indígenas no Brasil“, do Cimi. Para entender melhor os conflitos no estado acesse o site De Olho no Mato Grosso do Sul.
GRILEIRO AJUDOU ATRIZ A BUSCAR TERRAS NO PIAUÍ
O interesse de Regina pela criação bovina ocorreu após seu quinto casamento, em 2000, com o pecuarista Eduardo Lippincott, da região de Barretos (SP). Em busca de terras baratas no Piauí, Regina e Lippincott fizeram, em 2009, uma viagem em companhia do amigo — e grileiro — Herbert Spencer Miranda Carranca e sua esposa, Cláudia Carranca. O grupo se encontrou com o o então vice-governador Wilson Martins (PSB-PI) com a intenção de se familiarizar com as oportunidades de negócios na região. Contamos essa história em junho de 2018, durante a série De Olho no Paraguai.
Carranca tem histórico de violência contra os povos originários. Tradicional pecuarista do oeste paulista, ele foi flagrado, em 2011, destruindo 4 mil hectares de floresta em terras habitadas por indígenas isolados da etnia Ayoreo, na região do Chaco, no Paraguai. Como consequência, os indígenas moradores da área foram obrigados a deixar suas terras. O crime ambiental foi cometido por meio de duas empresas, River Plate e BBC, nas quais é sócio de outro latifundiário, Gino de Biasi Neto.
Ambos exerceram controle sobre uma área de 90 mil hectares pertencente à família da paraguaia Rosalba Trinidad. Após a compra, realizada sem documentos, os grileiros travaram uma batalha jurídica com a camponesa, que foi ameaçada e teve animais roubados a mando da dupla de empresários.
SOB BOLSONARO, DOBRAM INVASÕES DE TERRAS INDÍGENAS
“Enquanto eu for presidente não tem demarcação de terra indígena”, disse o presidente Jair Bolsonaro em agosto do ano passado ao reiterar uma de suas promessas de campanha: a de que não demarcaria “nem um centímetro”. De acordo com o Cimi, impulsionadas por declarações como essas, as invasões de terras indígenas dobraram em 2019: até setembro, 153 áreas foram invadidas em 19 estados, o dobro das 76 invasões em terras indígenas contabilizadas em 2018 em 13 estados.
Uma das estratégias do governo para não demarcar territórios tradicionais tem sido atrasar processos já em andamento. Na última terça-feira (28), o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, recorreu a um parecer aprovado pelo ex-presidente Michel Temer (MDB) para devolver à Fundação Nacional do Índio (Funai) 17 processos de demarcação de terras indígenas que estavam no órgão à espera de uma decisão.
Os Tupinambá da aldeia Serra do Padeiro, na Bahia, foram um dos povos prejudicados pela decisão. Eles denominaram o ato como “último e grave ataque do governo federal contra o nosso povo” em carta aberta de denúncia assinada pelo pajé Rosemiro Ferreira da Silva e pelo Cacique Babau. O documento avalia o ato como a confirmação do “racismo do governo Jair Bolsonaro e seu compromisso com os inimigos dos povos indígenas”.
Um dos políticos ruralistas que apoiaram em 2009 o “leilão da resistência”, em Dourados, o atual senador Luis Carlos Heinze (PP-RS) referiu-se em 2014 a indígenas, gays, lésbicas e quilombolas como “tudo que não presta”. No mesmo dia, no Rio Grande do Sul, o deputado federal Alceu Moreira (MDB-RS), atual presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, incitou os fazendeiros à violência contra os indígenas, “da forma que for necessário”.
O secretário anterior de Cultura, Roberto Alvim, foi demitido após reproduzir um discurso nazista. Em seu lugar, Regina Duarte terá de lidar também com a promoção da cultura indígena. Entre 2015 e 2018, por exemplo, o então ministério da Cultura lançou editais específicos para o tema.
Foto principal: Marcos Corrêa/ Agência Brasil