Invasão de madeireiros no “arco do desmatamento” aumenta risco de contágio na Amazônia

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Indígenas relatam intimidações por homens armados nos castanhais e açaizais; fiscalizações em campo diminuem, enquanto falta estrutura para atendimento a casos graves de Covid-19 entre os povos da floresta

Por Caio de Freitas Paes

Pouco a pouco, o coronavírus avança na Amazônia. Não é exagero dizer que a doença tem potencial para provocar um verdadeiro genocídio dos povos da floresta. Além da estrutura de atendimento concentrada nas capitais, já sobrecarregada, há um fator que dificulta ainda mais o combate à pandemia: as constantes invasões em terras indígenas e unidades de conservação. O povo Mura denuncia uma investida de grileiros e madeireiros que começou em plena pandemia. Os invasores ocupam áreas à beira de sua reserva, a Terra Indígena Lago Capanã, em Manicoré (AM).

Resex Capanã, em Manicoré, Amazonas. (Foto: ICMBio)

Durante patrulha por suas terras no início de março, os Mura encontraram uma ponte, feita com duas imensas castanheiras derrubadas na Reserva Extrativista (Resex) Lago do Capanã Grande, vizinha ao seu território. A estrutura improvisada viabiliza a chegada de maquinário pesado para derrubada das árvores e escoamento das toras via rodovia BR-319, a Manaus-Porto Velho.

Dias depois, os indígenas se depararam com invasores armados nos açaizais e castanhais, que garantem sua subsistência; foi quando começaram as intimidações. “Pedimos providências imediatas ao governo, ao Ministério Público”, disse o cacique Adamor da Silva Leite, da aldeia Palmeira, em áudio enviado à reportagem. “Pedimos apoio de todos para impedir que essas invasões ao nosso território continuem”.

O cenário é propício a novas invasões. O diretor de Proteção Ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Ibama), Olivaldi Azevedo, avisou que enviará menos agentes a campo por conta do coronavírus, enfraquecendo a fiscalização. Antes mesmo da pandemia, o desmatamento explodiu nos dois primeiros meses de 2020, com aumento de mais de 70% nos alertas emitidos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), na comparação com 2019.

Manicoré faz parte do “arco do desmatamento” ao sul no Amazonas. É um dos municípios que mais tiveram multas por flora do Ibama nos últimos 25 anos, conforme levantamento feito pelo observatório na série De Olho nos Desmatadores. A região abriga uma das porções mais conservadas da floresta, fato que a mantém sobre constante ameaça de garimpeiros, grileiros e madeireiros. Não à toa a Polícia Federal possui, no município, uma delegacia especializada em crimes ambientais.

TRÁFEGO POR RODOVIAS E RIOS PODE ATRAIR O VÍRUS

Ponte em Resex ameaça o povo Mura. (Foto: Divulgação)

Especialistas têm defendido um rígido controle no acesso às terras indígenas. No caso dos Mura em Manicoré, a população no entorno da rodovia BR-319 se opõe ao isolamento social e ao bloqueio de estradas. É justo pela rodovia que os invasores acessam a Resex e ameaçam a Terra Indígena Lago Capanã.

“Os moradores não querem que a rodovia seja fechada”, diz o pesquisador Lucas Ferrante, doutorando em Ecologia no Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa). “A cada vez que o Bolsonaro diz que é só uma gripezinha, aumenta ainda mais a tensão, porque essas pessoas estão em áreas invadidas, querem que a rodovia fique aberta”. 

Ele mantém contato frequente com os Mura e com ribeirinhos do lago Capanã, receosos com a invasão em meio à pandemia. “Eles já têm medo de ir às regiões invadidas, das quais dependem para sobreviverem”, afirma o pesquisador do Inpa.

O governo do Amazonas determinou o bloqueio da BR-319 e também da BR-174, estradas que ligam o estado a Rondônia e a Roraima. O governo também proibiu o trânsito de embarcações com passageiros pelo interior do Amazonas – é pelos rios o único modo oficial de chegada às terras dos Mura. As embarcações descem de Manaus pelo rio Madeira até chegarem ao lago Capanã, transportando tanto passageiros quanto mantimentos e cargas em geral.

O pesquisador do Inpa relata que, mesmo com a proibição, ainda há barcos transitando pelos rios da área. “Há um fluxo furando a ordem de não haver trânsito de pessoas, e basta um indígena infectado para dizimar o resto da população”, diz Ferrante.

À reportagem, o governo do Amazonas informa que destacou vinte servidores para fiscalizarem os barcos em todo o estado. O governo garante que conta com o apoio de outros órgãos, como a Agência Nacional de Transportes Aquaviários e as polícias Civil e Militar, além da Marinha.

Vem dos militares o reforço mais relevante na fiscalização. Segundo o Comando do 9º Distrito Naval, que opera nesse trecho, há 75 embarcações disponíveis para monitorar os rios Amazonas e Negro. Entre 13 e 30 de março, foram feitas 139 inspeções navais no estado. Nenhum dos órgãos informou quantas multas ou apreensões de barcos com passageiros foram feitas no Rio Madeira ou no Lago Capanã, à beira da terra indígena dos Mura.

ESPECIALISTAS TEMEM GENOCÍDIO INDÍGENA

BR-319 atrai invasores. (Foto: Fernando O G Figueiredo/PPBIO-Cenbam)

O primeiro caso de Covid-19 em indígenas foi confirmado no dia 1º de abril, no município de Santo Antônio do Içá, extremo oeste do Amazonas. Era uma agente de saúde da etnia Kokama, contaminada a partir do contato com um médico infectado que atendeu a região, predominantemente ocupada pelo povo Tikuna. No dia seguinte, o Instituto Socioambiental divulgou a morte de uma indígena de 87 anos do povo Borari, em Santarém (PA) – seu teste deu positivo para o coronavírus em um exame póstumo.

Procuradores do Ministério Público Federal (MPF) em treze estados assinaram uma lista de recomendações ao governo federal, exigindo pronta resposta à crise. O atendimento é de responsabilidade da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), subordinada ao Ministério da Saúde. O pedido do MPF endossa críticas de organizações indígenas quanto à abordagem do governo diante da pandemia.

Para a coordenadora do Projeto Xingu, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Sofia Mendonça, falta uma abordagem mais ousada no combate à doença na Amazônia. “Eles correm o risco de perderem organização social nas tribos, pode desestruturar suas sociedades”, diz a sanitarista. Segundo ela, faltam insumos e proteção àqueles que atendem as comunidades, além de testes rápidos, pois não indígenas se tornam vetores da doença – em especial invasores, como no caso dos Mura em Manicoré.

“Essa mistura de invasões, que ninguém sabe a condição de saúde de quem invade e nem de onde vem, com um projeto desenvolvimentista do governo para a Amazônia, tudo junto pode levar a um verdadeiro genocídio”, afirma Sofia.

Um boletim divulgado no dia 2 de abril aponta pelo menos 12 casos suspeitos na Amazônia, com uma confirmação – o caso em Santo Antônio do Içá. O governo amazonense disse que aguarda o resultado de 58 testes aplicados no município, que fica no extremo oeste do estado, a pouco menos de 900 quilômetros de Manaus.

No caso do Amazonas, o governo disse que liberou R$ 23,4 milhões para que municípios do interior, como Manicoré, comprem materiais de proteção e contratem profissionais para combater a pandemia. Afirmou ainda que serão instalados leitos de unidades semi-intensiva em oito municípios – o mais próximo dos Mura é Lábrea, no fim da Rodovia Transamazônica, também no sul do estado.

Talvez não seja o bastante: Amazonas pode ser o primeiro estado a sofrer um verdadeiro colapso em sua rede pública de saúde. Há apenas 69 respiradores à disposição do Sistema Único de Saúde, enquanto já há mais de 260 casos confirmados, com outros 600 exames à espera de resultados. O secretário de saúde do Amazonas, Rodrigo Tobias, disse ao portal G1: “Não temos leitos de UTI para enfrentar uma pandemia. Temos uma limitação para atender os casos graves. Nosso sistema de saúde é limitado”.

Foto principal (ilustrativa): povo Uru-eu-wau-wau. (Gabriel Uchida/Kanindé)

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