Rubenita da Silva vive hoje na Ilha de Cotijuba, em Belém; documentário mostra cotidiano dela 24 anos após o dia 17 de abril de 1996, que se tornou o Dia Mundial da Luta Camponesa; “atiravam sem parar e para matar”, lembra-se ela
Por Maria Fernanda Ribeiro
Aos 56 anos, Rubenita da Silva saltou cedo da cama, como de costume, para ir até o terreno desocupado que emprestou da amiga para plantar macaxeira, cujas mudas e canteiros haviam sido preparados no dia anterior. Mas a chuva torrencial que atingia pela manhã a Ilha de Cotijuba, em Belém, adiou os planos, mesmo com a lona que ela montara para se proteger das intempéries do tempo, lição aprendida durante os anos que participou do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST). Nita, como é conhecida, é uma sobrevivente do Massacre de Eldorado do Carajás, conflito ocorrido há 24 anos entre a Polícia Militar e camponeses que deixou 21 trabalhadores rurais mortos e dezenas de mutilados.
Era 17 de abril de 1996, uma quarta-feira. Cerca de 1,5 mil camponeses marchavam rumo a Belém em luta pela desapropriação da Fazenda Macaxeira, mas a caminhada foi brutalmente interrompida pela ação da polícia, que havia recebido uma ordem do governo estadual: estava liberado “usar a força necessária” para desbloquear a BR-155, obstruída pelos trabalhadores. Nita lembra bem desse dia em que o Pará ficou conhecido por ser um palco de terror e com estilhaços de bala até hoje alojados no corpo, não poderia ser diferente.
Confira como anda a vida da camponesa na Ilha de Cotijuba, no documentário “Nita – Uma sobrevivente do massacre de Eldorado dos Carajás”, de Carlos Eduardo Magalhães e Maria Fernanda Ribeiro:
Por causa do massacre, 17 de abril se tornou o Dia Internacional da Luta Camponesa. Movimentos sociais de todo o mundo — como, na América Latina, a Via Campesina — prestam homenagem aos mortos em Eldorado dos Carajás e, em nome deles, a todos o que tombaram na luta pela terra. No Brasil, é o dia escolhido pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) para divulgar o balanço dos conflitos no ano anterior.
‘PENSEI QUE FOSSE BOMBA, ERA UMA BALA DE FUZIL’
Nita tinha 32 anos no dia do massacre. Levou um tiro na boca, teve a mandíbula fraturada, a língua rasgada, perdeu seis dentes e a bala ficou para sempre alojada em sua mandíbula. “Foi uma bala de fuzil”, conta. “No meio do desespero eu achei que era uma bomba que tinha me atingido, como não perdi os sentidos vi a todo momento os policiais atirando nos companheiros”. Segundo ela, se um trabalhador rural se aproximava para socorrer alguma vítima, a polícia atirava; se fugia, a polícia corria atrás e atirava pelas costas.
De acordo com a Anistia Internacional, o episódio tornou-se símbolo do padrão recorrente de violações de direitos humanos e injustiças cometidas contra camponeses, trabalhadores e trabalhadoras rurais, povos indígenas e populações tradicionais como quilombolas, pescadores, ribeirinhos, seus advogados e defensores de direitos humanos engajados nas lutas pelo direito à terra e recursos naturais no Brasil.
O dia ficou na memória da camponesa:
— Eu pensei que ia morrer porque eles estavam atirando sem parar e para matar. Foi um dia de terror. A tristeza é de saber que ainda se matam trabalhadores rurais e lideranças de movimentos sociais e que a reforma agrária não foi feita. Mas também tem os aprendizados de amadurecer e fortalecer. A luta pelo movimento sem-terra é justa, é legítima.
Nita não participa mais do MST. Após o massacre, iniciou uma jornada exaustiva na busca por seus direitos contra o Estado e para reconstruir sua vida sem medo da polícia. Foi em Cotijuba que se reencontrou, ao participar do Movimento de Mulheres das Ilhas de Belém, mas não esquece o legado e o aprendizado que o movimento ainda hoje exerce em todas as suas ações: “Sem perceber, levei a lona para o terreno para acampar. Foi algo que ficou em mim. Sinto falta dos acampamentos do MST, onde todos tinham os mesmos objetivos e uma vida toda no coletivo. Mas não tenho mais revolta, sou aquela brasileira que de tudo que é ruim tira o lado bom”.