Pastorais do campo falam em genocídio e pedem afastamento urgente de Bolsonaro

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Cáritas Brasileira, Comissão Pastoral da Terra, Conselho Indigenista Missionário, Conselho Pastoral de Pescadores, Pastoral da Juventude Rural e Serviço Pastoral dos Migrantes assinam nota baseada em fala do papa Francisco sobre “mundo doente”

Por Alceu Luís Castilho

As pastorais sociais do campo, organizações ligadas à igreja católica, emitiram nesta quinta-feira (23) uma nota em solidariedade às vítimas da Covid-19 e em defesa do isolamento social. Evocando diretamente falas do papa Francisco críticas às políticas liberais, elas dizem que o mercado “se revela incapaz de uma resposta adequada ao extremo desafio da hora presente”. O principal alvo político é o presidente Jair Bolsonaro, acusado de promover decisões “genocidas” e de “semear o caos”:

— As ações desencontradas pelo governo frente a pandemia e o apoio do presidente Bolsonaro a manifestações criminosas que atentam contra a Constituição e a democracia são provas cabais de sua incapacidade e da urgência de afastá-lo, antes que seja tarde, antes que outras decisões genocidas nos inviabilizem de vez, suprimam mais direitos das classes populares e a própria soberania nacional.

A nota é assinada pelas seguintes organizações: Cáritas Brasileira, Comissão Pastoral da Terra (CPT), Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Conselho Pastoral de Pescadores (CPP), Pastoral da Juventude Rural (PJR) e Serviço Pastoral dos Migrantes (SPR). Todas ligadas aos setores progressistas da igreja católica.

A pandemia acontece num momento político-institucional gravíssimo em nosso país, que não só dificulta o seu enfrentamento, como põe em risco nossa frágil democracia”, diz o texto. “Atacar, com palavras e atitudes, o isolamento social em nome da economia, a título falso de proteger emprego e renda, para açular uma polarização na sociedade, como faz o governo Bolsonaro, é semear o caos para colher um ainda maior fechamento do regime serviçal dos enriquecidos financeiramente”.

NOTA ATACA TETO DE GASTOS E MP DA GRILAGEM

As organizações atacam ainda o teto de gastos públicos. A Emenda Constitucional 95/2016, afirmam, “precisa ser revista e cancelada”. “A crise sanitária que vivemos revela o absurdo desta alteração da Lei Maior, ao limitar por 20 anos o investimento do Estado nas políticas sociais de interesse da maioria da população, para favorecer a pauta do capital financeiro”.

A nota faz referência ao relatório Conflitos no Campo 2019, divulgado no dia 17 pela CPT, que apontou aumento do número de conflitos no ano passado, primeiro ano do governo Bolsonaro. “Avaliamos que este quadro pode piorar ainda mais”, dizem as organizações. Motivo: o envio ao Congresso da Medida Provisória 910/19, a MP da Grilagem:

— Tal medida concebe uma nova regularização fundiária no Brasil que elimina a reforma agrária e a regularização de territórios dos povos originários e demais povos e comunidades tradicionais, para favorecer a grilagem de terras, o desmatamento e os empreendimentos predatórios. A MP 910/19 permite, dentre outras, a regularização de ocupações ilegais por parte do agronegócio e seus agentes, a liquidação de Terras Públicas da União a preços irrisórios, a aquisição de terras pelo capital estrangeiro, a exploração especulativa de florestas no mercado de compensações financeiras, a invasão e devastação de Terras Indígenas e territórios tradicionais.

As pastorais dizem que o Congresso deve rejeitar “terminantemente” a MP. “Não há relevância política, econômica ou social em se aprovar uma medida que aumentará as desigualdades, a violência, a miséria e as catástrofes ambientais em nosso país”.

CONFIRA A NOTA NA ÍNTEGRA

“Na nossa avidez de lucro, deixamo-nos absorver pelas coisas e transtornar pela pressa […] Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente”. (Papa Francisco)

“Eu vim para que todos tenham vida e tenham vida em abundância”. (Jo 10, 10)

NOTA DAS PASTORAIS SOCIAIS DO CAMPO
Em defesa da vida e na construção permanente da esperança em tempos de Covid-19

As Pastorais Sociais do Campo se colocam em profunda solidariedade, oração e sintonia com as famílias vítimas e ameaçadas pela pandemia da Covid-19 e com aqueles e aquelas que a elas se dedicam por profissão e por amor. Estamos aos pés da Cruz, como o Papa Francisco, pedindo perdão pelas vidas descartadas em nome da política ultraliberal de Estado mínimo, mercado absoluto e lucro total, que se revela incapaz de uma resposta adequada ao extremo desafio da hora presente. Estamos também, com os meios disponíveis, em isolamento social necessário para combater o avanço da doença, atentos e mobilizados por mudanças reais no modelo político-econômico, nas medidas de saúde pública e de cuidados socioambientais.

O que estamos enfrentando não se trata de uma crise passageira, mas sintoma de que o atual modelo civilizatório não tem como prosseguir, às custas de sofrimento e morte crescentes, para que uma minoria cada vez mais reduzida de pessoas e países concentre o acesso aos bens naturais, à renda e à riqueza socialmente produzidas. A privatização e a mercantilização dos territórios camponeses, de povos originários e demais povos e comunidades tradicionais comprometem a vida não só dessas populações, seus modos de vida sustentáveis, os ecossistemas e a biodiversidade neles contidos, mas também a quantidade e a qualidade da comida do povo brasileiro, da água, do ar, do clima, da saúde pública e, muitas vezes, provocam uma migração forçada, uma desterritorialização sem precedentes, levam essa população ao trabalho escravo e suas lideranças a serem assassinadas. Por fidelidade ao Cristo crucificado e na esperança na ressurreição, com Ele caminhamos ao lado desta gente do campo, das águas e das florestas – povos originários, quilombolas, camponeses/as sem-terra, agricultores/as familiares, pescadores/as, migrantes, jovens rurais e uma imensa diversidade de comunidades agroextrativistas – em sua luta por justiça, direitos e por outra civilização mais humana, social e ambientalmente equilibrada e de fato sustentável.

A pandemia acontece num momento político-institucional gravíssimo em nosso país, que não só dificulta o seu enfrentamento, como põe em risco nossa frágil democracia. Atacar, com palavras e atitudes, o isolamento social em nome da economia, a título falso de proteger emprego e renda, para açular uma polarização na sociedade, como faz o governo Bolsonaro, é semear o caos para colher um ainda maior fechamento do regime serviçal dos enriquecidos financeiramente. As ações desencontradas pelo governo frente a pandemia e o apoio do presidente Bolsonaro a manifestações criminosas que atentam contra a Constituição e a democracia são provas cabais de sua incapacidade e da urgência de afastá-lo, antes que seja tarde, antes que outras decisões genocidas nos inviabilizem de vez, suprimam mais direitos das classes populares e a própria soberania nacional.

A Emenda Constitucional 95/2016, que impôs o teto de gastos públicos, precisa ser revista e cancelada. A crise sanitária que vivemos revela o absurdo desta alteração da Lei Maior, ao limitar por 20 anos o investimento do Estado nas políticas sociais de interesse da maioria da população, para favorecer a pauta do capital financeiro. Neste momento precisamos mais da presença do Estado do que da sua ausência ou atuação limitada, duvidosa e enviesada.

O governo Bolsonaro tem implementado a retirada autoritária de direitos sociais e trabalhistas e desrespeitado os direitos dos povos do campo e das comunidades tradicionais, alimentando um clima de insegurança e violência. Em 2019, houve total paralisação dos processos de reforma agrária e de regularização das terras indígenas e dos territórios tradicionais, com a extinção, sucateamento, desestruturação financeira e instrumentalização política de órgãos como o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), a Fundação Nacional do Índio (Funai), o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e também órgãos de fiscalização e controle agrícola, ambiental e trabalhista. Outras medidas têm o mesmo teor autoritário, como as de extensão do uso e porte de armas de fogo no campo; regulamentação de centenas de agrotóxicos proibidos em vários países; retirada de benefícios das comunidades pesqueiras, dos/as migrantes, das populações em situação de rua, dos/as sem-teto e dos encarcerados/as, impondo uma situação de tragédia humana, ecológica e social país afora.

As consequências se fizeram sentir no aumento da conflitividade e da violência no campo, conforme o relatório anual da CPT – Conflitos no Campo Brasil 2019 – lançado no dia 17 de abril passado, Dia Internacional da Luta Camponesa, em memória ao Massacre de Eldorado dos Carajás em 1996. Foram 1.833 conflitos no total, 23% mais que em 2018, em que foram assassinadas 32 pessoas. Por terra, foram 1.254 conflitos, o maior número já contabilizado, uma média de 3,4 por dia, envolvendo aproximadamente 145 mil famílias e 53 milhões de hectares. Quadro que agrava a desigualdade social, fator que torna ainda mais fatal a pandemia.

“Solidariedade com os que mais necessitam, em defesa da vida, como resistência ativa contra a política de morte”

Avaliamos que este quadro pode piorar ainda mais. O governo enviou ao Congresso Nacional a Medida Provisória 910/19. Tal medida concebe uma nova regularização fundiária no Brasil que elimina a reforma agrária e a regularização de territórios dos povos originários e demais povos e comunidades tradicionais, para favorecer a grilagem de terras, o desmatamento e os empreendimentos predatórios. A MP 910/19 permite, dentre outras, a regularização de ocupações ilegais por parte do agronegócio e seus agentes, a liquidação de Terras Públicas da União a preços irrisórios, a aquisição de terras pelo capital estrangeiro, a exploração especulativa de florestas no mercado de compensações financeiras, a invasão e devastação de Terras Indígenas e territórios tradicionais.

As Pastorais Sociais do Campo posicionam-se totalmente contrárias à aprovação da MP 910/19 e conclamam todas as organizações, entidades e movimentos sociais e o conjunto da sociedade civil a se somarem nesta luta em defesa do nosso país e de toda a vida. Ao Congresso Nacional não resta outra atitude senão a de rejeitar terminantemente esta MP. Não há relevância política, econômica ou social em se aprovar uma medida que aumentará as desigualdades, a violência, a miséria e as catástrofes ambientais em nosso país.

É urgente reinventar e provar que podemos viver de outras maneiras, de ser feliz sem o capitalismo, como nos alerta João Peres, em seu texto “Descoronizar o mundo, descolonizar o imaginário”. Quando pudermos voltar às ruas, estaremos novamente juntos e seremos mais convictos e fortes, com as bênçãos do Deus da Vida, na reconstrução de outro mundo possível e urgente!

De onde estamos, em recolhimento ativo, fazendo memória das lutas emblemáticas de Corumbiara, Eldorado dos Carajás, Kaiowá-Guarani, Guajajara e Alcântara, pensando, orando, cantando e esperançando o sonho e a necessidade real do Bem Viver, da partilha da Casa Comum, do reconhecimento e respeito aos direitos da natureza, proclamamos que este momento é de ficar em casa / na roça, cultivando, em cada família, comunidade e território, com base nos saberes ancestrais, os valores da fraternidade e da solidariedade com os que mais necessitam, em defesa da vida, como medidas de resistência ativa contra a política de morte.

Brasil, 23 de abril de 2020.

Cáritas Brasileira
Comissão Pastoral da Terra – CPT
Conselho Indigenista Missionário – Cimi
Conselho Pastoral de Pescadores – CPP
Pastoral da Juventude Rural – PJR
Serviço Pastoral dos Migrantes – SPM

Foto principal: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

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