Advogado diz que juiz bolsonarista autorizou entrada em outras casas, não apenas a da mãe, no dia 08, em Santa Helena de Goiás; segundo o movimento, PMs disseram aos camponeses que eles nunca vão ganhar ação contra os donos da fazenda ocupada
Por Yago Sales
O Grupo de Patrulhamento Tático (GPT) e o Grupo de Operações Especias (GOE) da polícia goiana, tropas de elite, foram mobilizados no dia 08 para uma disputa familiar em Santa Helena de Goiás: uma busca e apreensão de uma adolescente de 15 anos, que não voltou para casa após o Dia das Mães. A guarda é do pai. A operação mobilizou treze policiais militares no Acampamento Leonir Orback, erguido pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na Fazenda Ouro Branco. Era a segunda ação similar determinada pelo juiz Thiago Brandão Boghi, que possui histórico de decisões contra os camponeses.
Quando o oficial de Justiça voltou do acampamento sem a adolescente, na primeira vez, o juiz solicitou em uma segunda decisão efetivo policial “em quantitativo não inferior ao número de dez servidores militares, para o cumprimento da ordem judicial”. Caso a ordem não fosse obedecida, a mãe levaria uma multa e seria presa. Não foi observada nenhuma orientação quanto aos riscos de contaminação por Covid-19.
Sem pedirem autorização, segundo vários testemunhos, os policiais militares tanto de Santa Helena de Goiás quanto de Rio Verde — um dos epicentros regionais da pandemia — invadiram vários barracos de lona, erguidos sobre estacas de madeira, atrás da adolescente e da mãe, que não estavam no acampamento. E não apenas a casa das duas.
Uma criança de 10 anos, acordada durante a incursão dos policiais, chegou a ter uma arma apontada para o rosto.
Na escuridão da madrugada, os posseiros ouviram de policiais ameaças que não diziam respeito ao cumprimento da ordem judicial, e sim ao processo em curso de reintegração de posse da fazenda. A propriedade fica numa área de 20 mil hectares, onde antes funcionava a Usina Santa Helena. A área foi ocupada pelo MST em 2015.
Segundo Gilvan Rodrigues, coordenador do MST em Goiás, os policiais militares intimidaram as famílias. “Os policiais disseram que lá não ia sair terra para ninguém e que era para todo mundo ir embora”, relata. “Para nós é uma perseguição política, com abuso de autoridade, utilizando grande contingente de policiais”.
Ele observa que há muitos casos de contaminados pela Covid-19 na região. “Fizeram operações fora das orientações do próprio governo de Goiás e da Organização Mundial da Saúde (OMS)”.
EX-PREFEITO APONTA ‘INTIMIDAÇÕES INCABÍVEIS’
O Comitê Goiano de Direitos Humanos Dom Tomás Balduíno também se manifestou, na terça-feira (09), lembrando que a ação policial se deu em meio à pandemia, colocando os acampados em risco de contaminação:
— Se fosse para resolver problema de guarda familiar, a ordem deveria ter sido cumprida apenas na casa da companheira, e não em outras casas, não haveria necessidade deste aparato, tampouco de hostilizar, ameaçar, constranger e apontar armas na cabeça de acampados, inclusive uma criança de dez anos.
Pedro Wilson Guimarães, que já foi prefeito de Goiânia pelo PT, atualmente integrante da coordenação executiva do comitê, diz que a entidade acompanha atentamente os desdobramentos do caso que classifica como “mais um de abuso policial com agressões e intimidações totalmente incabíveis e ilegais”.
Ele lembra que foi justamente a luta desse acampamento pelo direito à reforma agrária que originou a criação do comitê, para enfrentar a criminalização dos movimentos sociais. Isto após a prisão de três militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, em 2016.
Em nota, o próprio MST classificou a ação da PM goiana como “violenta” e que se utilizou de um “contingente policial desproporcional, incluindo drones e armas letais”. O movimento acusa os policiais de terem ameaçado os moradores de despejo. E diz que o juiz atua com “viés ideológico”, no sentido de “criminalizar a luta pela terra”.
Em 2016, o Tribunal de Justiça (TJ-GO) suspendeu uma reintegração de posse a favor da Fazenda Ouro Branco, concedida por Boghi. Segundo o MST, a Justiça acolheu os argumentos de que a propriedade não cumpre sua função social e de que a empresa seria “fraudulenta”. Em julho de 2019, nova decisão a favor dos acampados, contra despejo determinado pelo juiz.
Em 2017, o acampamento foi alvo de um atentado que teria sido praticado por vigilantes da Usina Santa Helena. Eles deram tiros de pistola na direção de famílias. O jornal goiano Hora Extra resumiu desta forma, na época, o histórico da usina: “A empresa, que integra o Grupo Naoum, tem mais de 1,1 bilhão de reais em dívidas trabalhistas e com a União, possui diversas denúncias de crimes ambientais e está em processo de recuperação judicial desde 2013”.
A usina faliu no ano passado. O grupo familiar tem sede em Anápolis (GO).
SENTENÇA AUTORIZOU ENTRADA EM QUALQUER DOMICÍLIO
Segundo o advogado Cleuton Freitas, do MST, a mãe perdeu a guarda de duas filhas para o ex-marido, mas uma delas não quis mais morar com o pai e se negou a voltar depois do Dia das Mães. Ele conta que o pai entrou com um pedido de busca e apreensão na Comarca de Rio Verde. Ela foi concedida por meio de uma carta precatória à Comarca de Santa Helena de Goiás, sob responsabilidade de Thiago Boghi, que determinou a busca e apreensão no acampamento.
Só que a mãe não foi encontrada. O juiz determinou que o oficial de Justiça voltasse com maior efetivo policial e decretou a prisão dessa mãe ou de qualquer pessoa que impedisse a busca. “Determinou multa à mãe e autorizou a PM a entrar em qualquer domicílio, em qualquer barraco das famílias”, explica o advogado.
Thiago Boghi manifesta-se, nas redes sociais, a favor de governos e partidos de extrema-direita. E até mesmo durante uma sentença: em 2017, quando Jair Bolsonaro ainda era deputado federal, o juiz chamou-o de presidenciável, enquanto negava recurso a um homem suspeito de roubo.
Em seu perfil no Facebook, além de criticar o PT e, em 2018, ter declarado apoio ao candidato do PSL, Boghi demonstra simpatia pelo partido da extrema-direita italiana, a Liga. Chegou a trocar o tema da foto do perfil na rede social por duas vezes em apoio ao partido e a um de seus principais representantes na Itália, o ex-ministro do Interior e senador Matteo Salvini.
No dia 28 de outubro de 2018, horas depois da eleição, Boghi acrescentou uma inscrição à sua foto no Facebook: “TchauPT. Agora é com o mito!”
O advogado do MST diz que o juiz tem histórico de perseguição contra o movimento. “Ele já decretou prisão preventiva de trabalhadores rurais, que ficaram mais de um ano presos”, relata Cleuton Freitas. “Já deu reintegração de posse sem que as partes participassem do processo, em decisão anulada pelo Tribunal de Justiça de Goiás. Ele também já fez postagens nas redes sociais contrárias ao MST, que ele trata autoritariamente”.
A prisão de quatro camponeses foi decretada em 2018. Na sentença, Boghi classificou o MST de “organização criminosa“.
PM E JUIZ NÃO SE MANIFESTARAM
Diante dos relatos da decisão do juiz Thiago Brandão Boghi, a defesa ainda pretende fazer uma reclamação no Conselho Nacional de Justiça ou na Ouvidoria, informa Freitas:
— De toda maneira, é preciso considerar que houve uma ação massiva de policiais militares em um local em que concentra famílias, em que há decreto do estado de Goiás e do Senado para que exista isolamento social por causa da pandemia. Ao obedecer a ordem, a PM colocou em risco seu efetivo e também as famílias acampadas. Cobramos a responsabilização dos responsáveis por terem colocado em risco crianças, idosos e mulheres que sofrem de problemas crônicos.
O MST acusa ainda a Justiça de machismo e preconceito na decisão da guarda pela mãe, por ela ser uma das integrantes do movimento que briga na Justiça pelo direito à terra desde 2015.
Questionada por e-mail pela reportagem, na semana passada, a Polícia Militar do Estado de Goiás ainda não respondeu aos questionamentos. A reportagem também procurou o magistrado por telefone e por e-mail, sem resposta.
| Yago Sales é repórter do De Olho nos Ruralistas |
Foto principal (Reprodução): acampamento Leonir Orback, em 2016