Um dos responsáveis pela demora na votação foi o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB); pertencente a um clã político de Petrolina, em Pernambuco, ele é acusado de receber R$ 42 milhões em propinas da Petrobras; mais de cem etnias já foram atingidas
Por Mariana Franco Ramos
O projeto de lei 1142/2020, que institui um plano emergencial para prevenir a disseminação do novo coronavírus junto a indígenas, quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais (PCTs), foi aprovado na noite desta terça-feira (16) pelo Senado, em sessão deliberativa remota. A votação foi simbólica. O texto segue agora para sanção ou veto do presidente Jair Bolsonaro.
Embora a ementa original do projeto destacasse a adoção de “medidas urgentíssimas de apoio”, a tramitação no Congresso demorou quase três meses. Um dos responsáveis pelo atraso foi o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE). Ele apresentou — e depois de 24 horas retirou — emenda no dia 9 de junho excluindo PCTs como destinatários das ações de proteção e combate à pandemia.
De autoria da deputada Rosa Neide (PT-MT), a matéria chegou ao Congresso em 27 de março, ou seja, há mais de oitenta dias. Ela obteve o aval da Câmara em 21 de maio, depois de uma série de modificações, e, desde então, aguardava apreciação dos senadores. O relator na Casa foi o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP).
Segundo Maíra Moreira, assessora jurídica da Terra de Direitos, a base do governo na Câmara e no Senado, que propõe projetos em benefício de ruralistas, segue uma tradição. “É o mesmo grupo que defendia a (medida provisória) 910, que propôs e aprovou todas as últimas políticas de flexibilização fundiária”, lembra.
“De emergencial nesse processo a gente entende que só tem mesmo a realidade concreta das famílias quilombolas, indígenas, PCTs etc, porque o rito que foi seguido pelo Senado não contemplou em nada o caráter urgente da medida”, completa a advogada.
Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), o Brasil já tem 5.484 indígenas contaminados por Covid-19. Entre eles, 287 morreram. Mais de cem etnias já foram atingidas. A maior parte dos casos ocorreu durante os oitenta dias em que o Congresso discutia a ajuda emergencial.
SENADOR PERTENCE A UMA OLIGARQUIA PERNAMBUCANA
Neto do Coronel Quelê e sobrinho do arenista Nilo Coelho, governador pernambucano durante os anos de chumbo (1967-1971), Fernando Bezerra integra uma das oligarquias mais longevas da política brasileira. Em agosto de 2019, ele promoveu uma reunião entre Bolsonaro e o prefeito de Petrolina (PE), reduto da família. O prefeito chama-se Miguel Coelho (MDB) e é filho do senador, irmão do deputado Coelho Filho (DEM), ministro das Minas e Energia durante o governo Temer.
Fernando Bezerra é investigado em denúncias milionárias de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Ele já foi denunciado, em outubro de 2016, pela Procuradoria-Geral da República (PGR), no âmbito da Operação Lava Jato. O emedebista é acusado de ter recebido R$ 41,5 milhões de propina da Petrobras em contratos com as construtoras Queiroz Galvão, OAS e Camargo Corrêa, durante a construção da refinaria de Abreu e Lima, em Pernambuco. No ano passado, teve os bens bloqueados.
“Ele protocola um substitutivo restrito e, 48 horas depois, retira, em praticamente um ato de marcar posição desse setor mais conservador do Senado”, critica Maíra Moreira, a advogada da Terra de Direitos. “Foge do rito construído nas negociações anteriores”.
Bezerra alegava que a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) não possui profissionais em número suficiente para atender a uma demanda que, segundo ele, não se podia mensurar. “Isso, mais uma vez, impossibilitará que as comunidades aldeadas sejam assistidas de forma regular, impondo restrições de atenção à saúde dos povos aldeados”.
Ministro da Integração Nacional durante o governo de Dilma Rousseff (PT), Fernando Bezerra foi eleito em 2014. Naquele ano, declarou ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) possuir R$ 2,76 milhões em bens. Em 1998, quando foi candidato a vice-governador, ele ainda declarava propriedade rural e uma empresa chamada Frutas Tropicais S/A.
AUXÍLIO PREVÊ UM SALÁRIO MÍNIMO POR FAMÍLIA
A proposta aprovada inclui ações de vigilância sanitária e epidemiológica, como oferta de testes rápidos, medicamentos e cestas básicas, além do controle de acesso aos territórios para evitar a propagação da Covid-19. Também prevê acesso universal à água potável e distribuição gratuita de materiais de higiene e de limpeza.
O plano emergencial deve ser coordenado pelo governo federal, em conjunto com estados, Distrito Federal e municípios. O PL estabelece, ainda, o pagamento de auxílio emergencial para indígenas no valor de um salário mínimo (R$ 1.045) mensal por família, enquanto durar o estado de emergência. Terão direito ao benefício tanto indígenas aldeados como aqueles que residem fora dos territórios, em razão de estudos ou tratamento médico.
Registros da manifestação da doença em comunidades tradicionais demonstram maior vulnerabilidade e letalidade dessas populações. Conforme estudo realizado em abril de 2020 por um grupo de pesquisadores da Fiocruz e da Fundação Getulio Vargas (FGV), citado no relatório de Rodrigues, dos 817 mil indígenas considerados nas análises, 279 mil (34,1%) residem em municípios com alto risco para a pandemia.
O relator decidiu acatar apenas duas emendas, ambas de redação, para que o projeto não tivesse de retornar à Câmara. A primeira delas, do senador Luiz do Carmo (MDB-GO), inclui os pescadores artesanais na lista de contemplados. A segunda, da senadora Kátia Abreu (PP-TO), assegura medidas de transparência nas aquisições de materiais, serviços e contratações de pessoal.
CONGRESSO MANTEVE POSSIBILIDADE DE DESPEJOS
A construção do texto contou com a participação de organizações e movimentos sociais que atuam na defesa dos direitos humanos das populações envolvidas. Ao mesmo tempo em que houve avanços, contudo, as entidades apontam alguns retrocessos.
Maíra Moreira ressalta a dificuldade de ampliar o escopo original do PL, atendendo não somente comunidades indígenas, mas também quilombolas e PCTs. “Houve até uma ameaça de não votar e a deputada Joenia Wapichana (Rede-RR) — relatora da matéria na Câmara — teve de retirar três medidas, de proteção territorial, do plano”.
Foram excluídos o artigo 17, que suspendia mandados de reintegração de posse, imissão na posse, despejos e remoções judiciais ou extrajudiciais, e o 18, suspendendo todo empreendimento ou medida administrativa que pudesse afetar as populações envolvidas.
“É com esse conteúdo em alguma medida já fragmentado que ele [PL] vai para o Senado”, disse Maíra, antes da votação de ontem. “Está fragmentado, mas ainda robusto, principalmente em termos de medidas sanitárias, de proteção também do isolamento dos territórios”.
A advogada diz que havia a expectativa de o projeto ser pautado também com a celeridade que o processo anterior, na Câmara, possibilitava. “As partes mais sensíveis para o campo conservador e ruralista já tinham saído no processo deliberativo”, afirma.
Também de acordo com a assessora jurídica, a situação das comunidades, que já era difícil no início da pandemia, se agravou. “A Fundação Cultural Palmares recebe uma verba específica para fazer a distribuição das cestas básicas, mas ela faz contato com as prefeituras e o que acontece: uma espécie de clientelismo”, diz.
Maíra conta que a Terra de Direitos tem recebido várias denúncias a respeito, o que reforça a urgência da sanção integral por parte do presidente. “Não se controla o processo de distribuição”, diz. “Comunidades mais combativas, que têm um processo de resistência local e não admitem esse tipo de negociação, não estão recebendo, desse jeito bem descarado”.
| Mariana Franco Ramos é repórter do De Olho nos Ruralistas |
Foto principal (Guilherme Cavalli/Cimi): indígenas tiveram de esperar quase três meses para as medidas “urgentíssimas”