Município é referência em saneamento, mas acesso à água é precário em periferias e terras indígenas; extremo sul tem o quadro mais alarmante; na TI Tenondé Porã, excluída da rede de abastecimento, um a cada quatro moradores testados contraiu novo coronavírus
Por Poliana Dallabrida
Segunda capital com melhor saneamento básico no ranking de 2020 do Instituto Trata Brasil, São Paulo não garante água na torneira de milhares de indígenas no extremo sul e norte da capital. Em meio à pandemia da Covid-19, os Guarani das Terras Indígenas (TIs) Tenondé Porã e Jaraguá dependem de métodos alternativos para lavar as mãos. Moradores afirmam que a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão do Ministério da Saúde, não realiza a devida manutenção dos reservatórios e poços artesianos das aldeias, colocando as famílias em risco.
O município de São Paulo registra 107.731 casos e 6.404 mortes por Covid-19. Entre a população indígena, há pelo menos 366 infectados e três vítimas fatais. Mas os números oficiais costumam esconder exatamente os povos que vivem em áreas urbanas. Cerca de 12 mil indígenas de mais de trinta povos vivem em São Paulo e região metropolitana. A etnia mais populosa é a Guarani. Em todo o estado, são 41,8 mil, dos quais 91% vivem na zona urbana, segundo o Censo de 2010.
Ironicamente, um dos povos que enfrentam problema de abastecimento de água viram-se às voltas com o fogo, neste domingo (21). As chamas ameaçaram as aldeias e uma ocupação da TI Jaraguá, na zona oeste de São Paulo. Diante de um recuo de policiais e dos bombeiros, os próprios indígenas tiveram de combater o incêndio. Duas das fotos — em vários aspectos, impressionante — divulgadas pela Mídia Ninja ilustram a imagem principal desta reportagem e a imagem a seguir:
‘LAVAR AS MÃOS COMO, SEM ÁGUA?’
Chirley Pankará, co-deputada estadual pelo mandato coletivo da bancada ativista do PSOL e doutoranda em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), enviou, em maio, um ofício para a Sesai e para a Fundação Nacional do Índio (Funai). O documento exigia uma série de ações emergenciais para proteção dos indígenas do estado.
Uma das exigências é a garantia de saneamento básico, coleta de lixo e o tratamento de água dos reservatórios que abastecem as terras indígenas. “Há dois meses, quando eu colhi as informações para escrever o ofício, muitos reservatórios já estavam com prazo vencido para limpeza”.
Pankará cita o caso dos indígenas que vivem no entorno do Pico do Jaraguá:
— Você diz para as pessoas lavarem as mãos, mas cadê a água? Nas periferias, as torneiras ficam sem ver água por dias. O governo fala de cuidado para não proliferar [o vírus], mas não fornece água? É duro. Nas classes mais privilegiadas, certamente as águas estão na torneira o tempo inteiro.
De acordo com informações do Censo de 2010, reunidas para o De Olho nos Ruralistas pelo blog Desigualdades Espaciais, mais de 80,6% dos domicílios em Parelheiros, no extremo sul na cidade, estão excluídos da rede municipal de abastecimento de água. O bairro concentra o maior número de indígenas de São Paulo.
O problema se repete em outros dois bairros do extremo sul, Grajaú e Engenheiro Marsilac. Nessa região, ao menos 45,2% dos domicílios não possuem abastecimento de água da rede municipal.
Nas zonas norte e oeste, os bairros Anhanguera, Perus, Tremembé e Jaraguá possuem a segunda pior cobertura da rede de abastecimento de água de São Paulo. Em Jaraguá está localizada a terra indígena de mesmo nome, segunda mais populosa da cidade.
A prefeitura de São Paulo divulgou no dia 5 que as regiões periféricas das zonas norte e sul cidade concentravam as mortes por Covid-19 no município. À época, Grajaú era o terceiro no ranking de óbitos pela doença, com 215 mortes confirmadas.
A TI Tenondé Porã fica a 16 quilômetros do centro de Parelheiros. Com 15,9 mil hectares, declarados em 2016, a área é dividida em nove aldeias. No último boletim divulgado pela Unidade Básica de Saúde (UBS) Vera Poty, na quarta-feira, 17, o território somava 260 casos e três mortes por Covid-19 — entre elas, uma criança de 1 ano.
TESTES CHEGARAM MUITO DEPOIS DOS CASOS DE COVID-19
A Aldeia Tenondé Porã, que dá nome à TI, é a mais afetada pela pandemia, com 164 casos em uma população de cerca de mil habitantes. No local foram registrados os primeiros casos de Covid-19 pelo Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) do Litoral Sul, que atende 24,7 mil indígenas em 126 aldeias do Paraná, São Paulo, Espírito Santo e Rio de Janeiro.
Os dados do Dsei, encaminhados ao Ministério da Saúde, escancaram a subnotificação do número de indígenas infectados no país. O órgão confirma, nessa região do Litoral Sul, apenas trinta casos e uma morte em decorrência do coronavírus. A discrepância ocorre porque o cálculo considera apenas os indígenas aldeados, excluindo os que vivem nas cidades.
Na Aldeia Krukutu, segunda maior da TI, vivem cerca de quinhentos indígenas. São 51 casos de Covid-19 registrados pela UBS até quarta-feira, 17. No começo de março, os moradores fecharam os portões que dão acesso à aldeia para tentar conter o avanço do novo coronavírus.
Devido à proximidade com a área urbana, as aldeias da TI Tenondé Porã costumam receber visitantes não-indígenas. Há opções de passeios, venda de artesanato, cursos e oficinas sobre a cultura indígena. A suspensão das atividades, por conta da pandemia, compromete o sustento de dezenas de famílias.
Em meio à pandemia, a Secretaria Municipal de Saúde tenta compensar os problemas estruturais com testagem em massa e garantia de equipes de saúde que se revezam em plantões de doze horas nas UBSs da TI Tedondé Porã e Jaraguá.
“No começo de março tivemos alguns casos, mas eles só foram confirmados depois de um mês, com a chegada dos testes no território”, explica Tiago Karai, líder da TI Tenondé Porã. No total, foram realizados 1.014 testes nas nove aldeias. O indígena diz que o pico da doença na área ocorreu nas primeiras semanas de maio.
MORADORES CAPTAM ÁGUA DA CHUVA
Excluídos da rede municipal de abastecimento e sem assistência do órgão federal, os moradores precisam buscar água em córregos e nascentes dentro da TI para sobreviver. “A Sesai deveria ser responsável pelo saneamento básico nas aldeias, mas faltam recursos”, ressalta Karai. “Estamos nos virando como podemos. Todo abastecimento dentro das comunidades é feito por captações alternativas, como poços artesianos, água das nascentes ou da chuva”.
As aldeias Tenondé Porã e Krukutu possuem duas caixas d’água de 60 mil litros, cedidas pela Sesai. No entanto, a manutenção e a limpeza dos reservatórios não são frequentes. Como medida paliativa, os agentes de saneamento do órgão fazem apenas a dosagem do cloro dentro das caixas.
Onde há poços artesianos, o acesso a água depende da sorte. Se há tempestade ou estiagem, o fornecimento é interrompido. Tiago Karai descreve a situação:
— Quando queima a bomba dos poços artesianos, em dias de muita chuva, raio, ficamos sem água. Já chegamos a ficar seis meses sem água, porque é caro para fazer a manutenção. Precisamos aguardar a Sesai consertar, e sempre demora. Temos dois agentes de saneamento para atender nove aldeias. Não é suficiente. Esses agentes não têm material nem equipamento adequado. Chegamos a fazer vaquinhas para comprar material e ferramentas para os agentes, porque não podemos esperar pela Sesai.
Para além da TI Tenondé Porã, outras comunidades na zona sul da cidade enfrentam dificuldades semelhantes durante a pandemia. Cerca de 170 famílias da comunidade Pankararu, no Real Parque, bairro pobre que faz divisa com o rico Morumbi, dependem da doação de alimentos e produtos de higiene e limpeza. Com a pandemia, quem não perdeu o trabalho está em contato direto com não-indígenas expostos ao novo coronavírus.
“Muitas pessoas saíram de seus territórios em busca de melhores condições de vida na cidade”, explica Pankará. “Vieram para trabalhar como pedreiro, empregada doméstica. Eu vim para trabalhar como empregada doméstica; é o meu primeiro trabalho na carteira. Com salários péssimos, essas pessoas precisam morar nas periferias de São Paulo”.
SEM TURISMO, POVOS SOFREM COM FALTA DE RENDA
Na zona norte de São Paulo, 18% dos moradores da TI Jaraguá estão com Covid-19. São 106 casos entre os 588 Guarani Mbya que habitam o território. Um boletim da UBS da Aldeia Pyau divulgado nesta segunda-feira (22) mostra que, na mais populosa entre as seis aldeias da TI, apenas cinco indígenas estão em isolamento no Centro de Cultura e Educação Indígena (CECI) da comunidade.
“Muitas famílias preferiram fazer o isolamento em casa”, afirma Jaciara Augusto Martim, assistente social da UBS da Aldeia Pyau. “A cada testagem que realizamos, os casos têm diminuído. A maioria dos casos foi de assintomáticos. Tivemos uma única internação e a pessoa já se recuperou”.
No dia 26 de março, os moradores da TI Jaraguá, a menor terra indígena do país, com 512 hectares, bloquearam as entradas e saídas das aldeias para conter o avanço do novo coronavírus. À época, apenas um indígena apresentava sintomas da doença e estava em isolamento. A medida compromete umas das principais fontes de renda das comunidades, que é a venda de artesanato para visitantes. Os jovens que trabalham fora das aldeias também estão isolados e sem renda.
Assim como nas aldeias do extremo sul de São Paulo, o abastecimento de água na região é feito por meio de poços artesianos, captação de água de córregos e nascentes e não há rede de esgoto. “Não são todas as famílias que têm banheiro dentro de casa, e os moradores usam banheiros comunitários”, explica Jaciara Martim.
A fragilidade no acesso à água na região ficou evidente na noite de domingo, quando um incêndio destruiu os canos que abasteciam parte da área. Os cerca de 62 moradores da Aldeia Itekupé, atingida pelas chamas, estão sem água. O fogo começou na área de preservação do Pico do Jaraguá. Não houve feridos.
De Olho nos Ruralistas entrou em contato com o Dsei Litoral Sul, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.
| Poliana Dallabrida é repórter do De Olho nos Ruralistas |
Imagem principal (Felipe Beltrame/Mídia Ninja): incêndio na TI Jaraguá, zona oeste de São Paulo