Falecido no sábado, o “bispo do povo” fundou a Comissão Pastoral da Terra e o Conselho Indigenista Missionário; ele foi um símbolo internacional na defesa dos povos do campo, enfrentou latifundiários e as ditaduras de dois países
Por Sarah Fernandes
Eu morrerei de pé como as árvores.
Me matarão de pé.
O sol, como testemunha maior, porá seu lacre
sobre meu corpo duplamente ungido.
E os rios e o mar
serão caminho
de todos meus desejos,
enquanto a selva amada sacudirá, de júbilo, suas cúpulas.
(Dom Pedro Casaldáliga)
“Na dúvida, fique ao lado dos pobres”. A frase, uma das mais emblemáticas de Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Félix do Araguaia (MT), guiou sua trajetória de quarenta anos de luta pelos direitos de indígenas, ribeirinhos e camponeses na Amazônia. Na manhã de sábado (08), o chamado “bispo do povo” faleceu aos 92 anos no hospital da Congregação dos Claretianos de Batatais, em São Paulo, após agravamento do seu estado de saúde desde a última segunda-feira.
Nascido em 1928, Casaldáliga foi um dos maiores defensores dos direitos humanos e dos povos do campo no Brasil e no mundo. Defensor da Teologia da Libertação no Brasil, poeta, lutou ativamente contra a ditadura. Dedicou a vida a defender os mais pobres, os ameaçados pelo latifúndio e os oprimidos pelo Estado.
Há anos ele lutava contra aquele que chama de “irmão Parkinson” e por isso, nos últimos, anos evitou participar de eventos públicos e dar entrevistas, já que a doença comprometeu sua dicção e coordenação motora. Com a piora no seu quadro respiratório, Dom Pedro foi transferido em avião UTI de São Félix para o hospital da Congregação dos Claretianos em Batatais, onde chegou na quarta-feira em estado grave, porém estável. Ele chegou a fazer o teste para o novo coronavírus, que deu negativo.
Em uma das últimas vezes que falou à imprensa, em 2016, em entrevista à Rede Brasil Atual, ele defendeu que era preciso “salvar a esperança” e “insistir nas lutas locais, frente à globalização”. As declarações mostram que ele se mantinha firme e alinhado com seu histórico de luta social, que o levou a enfrentar diversos conflitos com latifundiários e o transformou em um ícone da luta pela defesa dos povos do campo.
O corpo de Dom Pedro Casaldáliga foi velado na capela do Claretiano, no sábado, no Centro Universitário de Batatais. No domingo, foi rezada a missa de exéquias na capela. Seu corpo foi transferido para Ribeirão Cascalheira (MT), onde será velado no Santuário dos Mártires, a partir desta segunda-feira. Depois disso será transladado para São Félix do Araguaia (MT), onde também será velado e sepultado.
Seu companheiro de luta, o teólogo Leonardo Boff, lamentou em a morte de Dom Pedro em sua conta no Twitter. Disse que o bisco “vive na memória de todos os pobres que defendeu, dos martirizados pelo latifúndio, nos libertos da opressão e em nossa fé e em nossa esperança que ele nos fortaleceu”.
O candidato a prefeito pela capital paulista e ex-presidenciável Guilherme Boulos, do PSOL, afirmou que a morte de Casaldáliga “deixa um vazio na luta contra o autoritarismo, tão fundamental neste momento”. “Um homem de esperança, em meio à injustiça que envergonha a todos nós, que lutamos por dias melhores”, escreveu a ex-presidente Dilma Rousseff.
Um dos coordenadores nacionais do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), João Pedro Stédile, também se manifestou: “Um dia muito triste para o povo brasileiro, em particular para os movimentos do campo e as pessoas de fé. Perdemos um profeta e poeta. Um homem que viveu intensamente com seu povo, coerente com o evangelho”.
FILHO DE CAMPONESES, ELE REZAVA MISSAS NO QUINTAL
Nascido na Espanha, na região da Catalunha, filho de camponeses, Casaldáliga teve seu primeiro contato com o martírio ainda criança, quando seu tio, também padre, foi assassinado na Guerra Civil Espanhola. Naquele momento ele decidiu o caminho que seguiria. Foi ordenado sacerdote e chegou ao Brasil em 1968, aos 40 anos, como missionário claretiano.
Ele veio fugindo do regime franquista, uma ditadura alinhada com o fascismo que vigorou na Espanha entre 1939 a 1976, liderada pelo general Francisco Franco. Dom Pedro encontrou na Amazônia sua nova casa e nunca mais voltou ao país de origem.
Em 1971, foi nomeado o primeiro bispo de São Félix do Araguaia e converteu a pequena casa onde vivia na sede da diocese. Rezava missa para agricultores e sem-terra no quintal, entre as galinhas, e tinha o hábito de deixar a porta sempre aberta durante a noite, caso alguém precisasse de um lugar para dormir.
Nesse mesmo ano, escreveu sua primeira carta pastoral, intitulada “Uma igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social”, já adiantando que linha seguiria em seu trabalho na região. Sempre retomava seu lema de vida: “Nada possuir, nada carregar, nada pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar”.
Quase nunca usava batina e preferia trabalhar de calças jeans e chinelos. De hábitos simples, não tinha mais que duas mudas de roupa. Quando precisava participar de reuniões episcopais em Brasília, ia de ônibus, enfrentando uma viagem de três dias, já que esse era o meio de transporte utilizado pelas pessoas que defendia.
PEDRO ENFRENTOU LATIFUNDIÁRIOS E FOI AMEAÇADO DE MORTE
Foi nas missas rezadas em sua casa em São Félix do Araguaia — município mato-grossense de 11 mil habitantes que fica a dezesseis horas de Cuiabá, por estrada de terra — que Casaldáliga começou a defender e a organizar camponeses sem-terra e agricultores empobrecidos por latifundiários e políticos da região. Os pobres do Evangelho estavam reunidos com ele.
Seu jeito simples, a defesa de uma igreja com forte atuação social e o alinhamento com a Teologia da Libertação levaram Casaldáliga a enfrentar choques com a ala mais conservadora da igreja e com a ditadura militar, da qual se tornou um ferrenho opositor. Foi perseguido e ameaçado de morte diversas vezes ao longo da vida.
A última delas foi em 2012, quando se aliou a indígenas Xavante de Marãiwatsédé para retirar latifundiários que ocupavam suas terras. A situação se agravou e ele foi obrigado a passar dois meses longe da prelazia, na casa de um amigo, em Goiás.
Na década de 70, junto ao também bispo dom Tomás Balduíno, morto em 2014, fundou o Conselho Indígena Missionário (Cimi) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), instituições fortes na defesa de indígenas e camponeses. O trabalho incomodou tanto os poderosos da região que um amigo de dom Pedro, o padre João Bosco Burnier, foi assassinado na frente do bispo com um tiro na nuca disparado por um policial, enquanto ambos defendiam duas mulheres que estavam sendo torturadas em uma delegacia de Ribeirão Cascalheira (MT).
Com seu trabalho, ajudou a conquistar a demarcação de terras indígenas e a construir escolas e ambulatórios médicos nas zonas rurais. Em 1988 foi convocado a ir ao Vaticano dar explicações sobre sua proximidade com a Teologia da Libertação e a visitar o então Papa João Paulo II. Foi sem batina e sem anel, usando camisa e um colar indígena. Ao sair ponderou à imprensa: “O Espírito Santo tem duas asas e a Igreja gosta mais de cortar a da esquerda”.
ELE FOI AMEAÇADO POR AJUDAR EM RETOMADA DE TERRAS XAVANTE
Uma das lutas mais intensas de dom Pedro Casaldáliga foi a retomada da Terra Indígena Marãiwatsédé, em Mato Grosso. Em 1965, famílias Xavante foram retiradas a força de suas terras ancestrais pelo governo militar, e levadas em aviões da Força Área Nacional (FAB) para a Missão salesiana São Marcos. O grupo agrícola Ometto — da família da gigante sucroalcooleira Cosan — tomou a área.
Após intensa pressão e mobilização dos indígenas, a TI Marãiwatsédé foi reconhecida pela Fundação Nacional do Índio (Funai) como terra indígena em 1992. As terras estavam ocupadas por holdings internacionais do agronegócio, como a italiana Agip Petroli, que explorava a fazenda Suiá-Missu e foi forçada a devolvê-las aos Xavante.
Antes disso, o poder público de São Félix do Araguaia incentivou 2 mil posseiros a invadirem a área. O conflito tornou-se iminente. O Cimi denunciou que três fazendeiros invasores da terra haviam contratado um pistoleiro para matar dom Pedro Casaldáliga. Mesmo ameaçado, recusou escolta policial, dizendo que só a aceitaria quando todos os camponeses tivesses direito a ela.
Após intensa mobilização, a terra foi demarcada e os indígenas começaram a retornar para ela, na década de 2000.
— A retomada da TI Marãiwatsédé é bonita e emblemática. Os Xavante foram constantes em defender os seus direitos. Quando foram expulsos, deportados — esta é a palavra, eles foram deportados —, seguiram vinculados a esse terreno, vinham todos os anos recolher pati, uma palmeira para fazer os enfeites. E reivindicavam sempre a terra onde estão enterrados nossos velhos. E foram sempre presentes.
Foi o que contou dom Pedro em entrevista à Rede Brasil Atual, afirmando que, em respeito aos Xavante, nunca celebrou uma missa em Marãiwatsédé. Ele disse que os direitos dos povos indígenas são interesses que contestam a política oficial. “São culturas contrárias ao capitalismo neoliberal e às exigências das empresas de mineração, das madeireiras”, afirmou. “Os povos indígenas reivindicam uma atuação respeitosa e ecológica.
A terra que os indígenas retomaram, no entanto, era bem diferente daquela da qual foram retirados à força: em 2012, pelo menos dois terços dos 165 mil hectares da reserva haviam sido desmatados por madeireiros, fazendeiros e posseiros. Marãiwatsédé chegou a liderar o ranking de terras indígenas mais desmatadas do país.
Para o bispo, quem manda é o agronegócio:
— Se querem impedir que haja uma estrutura oficial com respeito à política indígena, tentam suprimir organismos que estão a serviço dessas causas. Isso afeta os povos indígenas e o mundo rural. Tudo isso é afetado pelo agronegócio, o agronegócio é o que manda. E manda globalmente. Não é só um problema do Mato Grosso, é um problema do país e do mundo todo. As multinacionais condicionam e impõem.
BISPO DEFENDIA CHIAPAS, CUBA E UNIDADE DA AMÉRICA LATINA
Se entre os aliados dom Pedro era o “bispo do povo”, para os inimigos ele ficou conhecido como “bispo vermelho”, exatamente por sua militância pelos povos do campo. Ele tornou-se uma referência nacional e internacional na luta por direitos humanos na Amazônia e um dos nomes mais conhecidos da igreja católica.
Apesar do título de bispo emérito, dom Pedro deixou o cargo na prelazia de São Félix em 2005, por ter atingido a idade máxima para trabalho de um sacerdote. Ainda assim, continuou atuante e comprometido com a luta pela terra, mesmo com a piora em seu estado de saúde.
O bispo sempre fez questão de frisar, mesmo doente, que seu compromisso com a luta social extrapolava as fronteiras do Brasil. Em 1994, declarou apoio à revolta de Chiapas, no México; em 1999, publicou a Declaração de Amor à Revolução Total de Cuba. Sempre foi convicto na importância de defender e construir uma unidade latino-americana, como a defendida pelo ex-presidente venezuelano Hugo Chávez, falecido em 2013.
Os auxiliares que o acompanharam nos últimos dias informaram à imprensa que ele não reclamava de sua condição nem falava sobre a morte, ao contrário: continuou disciplinado, lendo notícias, correspondências e criando poemas, uma das facetas do bispo:
Por onde passei, plantei a cerca farpada, plantei a queimada.
Por onde passei, plantei a morte matada.
Por onde passei, matei a tribo calada, a roça suada, a terra esperada…
Por onde passei, tendo tudo em lei, eu plantei o nada.
(Confissão do Latifúndio)
| Sarah Fernandes é repórter do De Olho nos Ruralistas |
Foto principal (Reprodução): opção pelos povos do campo tinha relação com história familiar