Em live sobre pandemia e fome, ele apontou “estrutura de perversidade” do governo Bolsonaro e se emocionou com Rosalva Gomes, quebradeira de babaçu no Maranhão: “Olhar para você, uma mulher negra, trabalhadora, é olhar para a imagem de Deus”
Por Mariana Franco Ramos
O padre Júlio Lancellotti, da Arquidiocese de São Paulo, fez um alerta para o aumento da fome e da vulnerabilidade das pessoas em situação de rua durante a pandemia de Covid-19. Em live organizada pela Oxfam Brasil na noite de quinta-feira (06), ele disse que muitas mães não têm nem gás para cozinhar. O religioso também criticou a “estrutura de perversidade” do governo Jair Bolsonaro.
“Há pessoas em ocupações, em comunidades, cortiços e habitações coletivas que estão em muita dificuldade”, diz ele, que há 34 anos atua com moradores de rua. “Nem sempre falta alimento, mas o alimento chega na velocidade de quem leva; não de quem consome. É diferente do alimento que eles buscam, fazem e gostam”.
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o país tem hoje 220 mil pessoas vivendo pelas ruas das grandes cidades. “O único prazer que sobrou para esses moradores é o da boca, o oral, de sentir o gosto; me toca demais quando os vejo comendo tristes, sem falar com ninguém e de cabeça baixa”, relata. “Eles não sabem se vai ter outro alimento; há horários do dia e da noite que estão com fome e não têm como buscar”.
Aos 71 anos — dentro, portanto, do grupo de risco da Covid-19 —, o religioso continua na linha de frente, atuando junto às comunidades para garantir ainda materiais de higiene, álcool em gel e refeitórios adequados. De acordo com ele, o objetivo é que todos possam se alimentar com dignidade e, alimentados, que tenham condições de lutar contra as injustiças e as desigualdades.
— Vivemos uma situação dramática em cima do comer. E comer é viver. É viver com amor, com força e coragem. Comer é partilhar, garantir a todos o acesso à alimentação. As pessoas precisam não só estarem saciadas, mas estarem nutridas.
‘TERRITÓRIO LIVRE PARA PRODUZIR É GARANTIA DE TUDO’
Assessora técnica do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), Rosalva Gomes contou que as comunidades que representa, no Maranhão, no Pará, no Piauí e em Tocantins, têm debatido, além da produção do alimento, questões sociais relacionadas à cadeia produtiva. “Precisamos discutir território”, defende. “O território livre para a gente produzir é uma garantia de tudo. Lá está a água, o babaçu, o peixe”.
Natural de Imperatriz (MA), ela mencionou a luta de muitas das 300 mil mulheres do setor para acessar o auxílio emergencial de R$ 600 e disse que, por onde passa, fala sobre a importância da produção familiar e do Sistema Único de Saúde (SUS). É a única forma, reitera, de se impor ao modelo explorador, “que só gera riqueza aos ricos, enfraquece a forma de vida tradicional e destrói o meio ambiente”.
— Foi um toque na consciência que pressionou o governo pelos R$ 600, e não os R$ 200 que queria antes? Não. Por que passou de três meses de benefício para cinco? Foi a pressão que veio dos movimentos. Por isso que volto a reforçar a importância das organizações sociais e da unificação das lutas do campo e da cidade.
Após a fala de Rosalva, o padre afirmou que olhar para ela é olhar para a imagem de Deus. “É olhar para aquilo que eu acredito: a força da mulher, da mulher negra, que trabalha, da mulher do povo, que quer se alimentar da luta”. Ele se disse “alimentado” e com as esperanças renovadas por vê-la na luta. “O padre Júlio me fez chorar agora”, respondeu a quebradeira. “Eu sou filha de pai e mãe sindicalistas. Isso tem um nome: é pertencimento”.
PESSOAS MORRERÃO MAIS DE FOME DO QUE DE COVID, DIZ PESQUISADORA
Conforme o relatório “Como o coronavírus está potencializando a fome em um mundo faminto”, lançado em julho pela Oxfam, 12 mil pessoas podem morrer de desnutrição diariamente, até o fim de 2020, devido às consequências da pandemia de Covid-19. O número é maior do que o total de mortes diárias causadas pela doença em si.
“Apesar de toda a riqueza produzida, 1% da população mundial fica com a riqueza dos outros 99%”, destacou Katia Maia, diretora-executiva da organização. “É um mundo que produz muito alimento, mas que é desigual”.
Na avaliação de Elisabetta Recine, integrante do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar Nutricional da Universidade de Brasília (UNB), é importante lembrar que os dados da Oxfam são adicionais. “O mundo já naturaliza e convive com praticamente 600 milhões de pessoas passando fome”, afirmou.
Elisabetta considera que a pandemia traz ou gera 122 milhões a mais. “Temos um desafio imenso ligado não só ao processo econômico, mas aos processos políticos e sociais, a como vamos defender e viver a democracia e avançar em nome da justiça social”, opinou.
‘SOLIDÁRIOS VÃO CONTINUAR SOLIDÁRIOS; OS EGOÍSTAS, EGOÍSTAS’
Questionado por participantes do debate sobre o que espera do governo atual, Lancellotti não mediu palavras: “Que ele acabe logo e que possamos ter um governo que se preocupe com o povo e ame o povo”. O religioso falou ainda que não acredita em uma mudança automática após o fim do estado de calamidade pública.
— A mudança é histórica, é política e contraditória. Quem entrou nessa pandemia solidário vai sair mais solidário. Quem entrou egoísta vai sair mais egoísta. Tem gente que adultera álcool em gel, que superfatura respiradores, que nega auxílio prioritário para mulheres com crianças, sendo elas as únicas responsáveis pela manutenção dos filhos.
| Mariana Franco Ramos é repórter do De Olho nos Ruralistas |
Foto principal (Divulgação/Oxfam): organização estima que 12 mil pessoas possam morrer de fome diariamente até o fim de 2020
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|| A cobertura sobre segurança e soberania alimentar durante a pandemia tem o apoio da Fundação Heinrich Böll Brasil ||