Áurea Carolina fala de quilombos e do papel da economia na agenda do massacre

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Áurea Carolina na Câmara dos Deputados

Deputada considera momento brasileiro “desolador” diante da negligência do governo nas políticas para indígenas e povos tradicionais, ao “degradar as condições de vida e deixar morrer pela omissão do Estado”; ela vê quilombos como exemplos de organização coletiva

Paraense radicada em Belo Horizonte, a deputada federal Áurea Carolina (PSOL) é um dos rostos da geração que vem conquistando espaço na política brasileira: as mulheres negras e periféricas. Aos 36 anos, a parlamentar amplifica no Congresso a voz dos povos indígenas e quilombolas. Com formação política iniciada no movimento hip hop , no grupo Dejavu, Áurea foi a  vereadora mais bem votada em Belo Horizonte na eleição de 2016 e, dois anos depois, obteve a quinta maior votação em Minas Gerais para o cargo de deputada federal. 

Entrou para política institucional como vereadora no mesmo ano que Marielle Franco (1979-2018) se elegeu vereadora no Rio de Janeiro e Taliria Petrone, em Niterói. Ganhou projeção nacional em 2018 quando foi uma das mais bem votadas do Brasil e seguiu com Talíria para oposição do governo de Jair Bolsonaro que, desde a campanha presidencial, atacou, publicamente, as bandeiras políticas de Áurea, Talíria e Marielle Franco: a defesa de direitos da mulheres, dos negros, indígenas, moradores de comunidades, dos direitos humanos e da democracia.

Marielle foi assassinada em 14 de março de 2018. Mesmo diante do que esse homicídio — ainda não elucidado, após quase mil dias — representa para deputadas com seu perfil, Áurea não recuou. Integra a Frente Parlamentar Mista em Defesa das Comunidades Quilombolas e vem denunciando a política de desmonte implementada pelo governo federal contra a população negra.

Pré-candidata à prefeitura de Belo Horizonte, a deputada propõe uma forma diferente de fazer a política partidária. É uma das idealizadoras do movimento Muitas, que propôs uma candidatura coletiva, em 2016, para a Câmara Municipal de Belo Horizonte, o que abriu espaço para as colegas de partido Cida Falabella e Bella Gonçalves, e, em 2018, elegeu Andréia de Jesus para a Assembleia Legislativa. As cinco criaram a Gabinetona, nome no feminino para a estrutura de trabalho conjunto dos quatro mandatos nas três casas legislativas.

Áurea leva para esses espaços a experiência feminista e antirracista. No segundo ano como deputada, ela se destacou no Prêmio Congresso em Foco: foi a quinta mais bem votada na categoria Clima e Sustentabilidade pelo júri popular. O reconhecimento se deve, em parte, pela defesa dos  modos de vida dos indígenas e povos tradicionais, ao alinhamento às experiências de agricultura camponesa e à defesa da biodiversidade, em oposição à exploração dos recursos naturais pelo agronegócio.

Nesta entrevista, Áurea fala sobre a defesa dos territórios quilombolas, o governo genocida de Bolsonaro, o desmonte da Fundação Cultural Palmares e a disputa pela implementação de políticas emergenciais para as comunidades quilombolas durante a pandemia da Covid-19.

Confira a entrevista dada a Márcia Maria Cruz:

Áurea Carolina integra a Frente Parlamentar Mista em Defesa das Comunidades Quilombolas. (Fotos: Reprodução)

De Olho nos Ruralistas — Você denunciou, em artigo publicado no Nexo, a violência cometida pelo Estado brasileiro contra as comunidades quilombolas em Alcântara, no Maranhão. Você aponta que o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas, firmado entre Brasil e EUA, deveria ser analisado no Congresso. Vocês conseguiram barrar?

Áurea Carolina — Não conseguimos barrar o acordo apesar de nossas tentativas e de manifestações de organismos internacionais, não conseguimos que a mesa diretora da Câmara barrasse a tramitação do acordo. Na avaliação da mesa diretora não havia responsabilidade do parlamento. A responsabilidade era do poder executivo em garantir a consulta prévia, livre e informada, estabelecida na convenção 169 da OIT. O Rodrigo Maia lavou as mãos, o problema era do governo federal e o acordo foi aprovado, tristemente. Já estava acontecendo processo muito acelerado para culminar na remoção das famílias em Alcântara, inclusive durante a pandemia. Uma ação organizada das comunidades lá conseguiu, pelo menos por enquanto, segurar essa situação. O tratamento desigual e violento contra as comunidades quilombolas reflete a conjuntura brasileira de maneira mais profunda. Foi realizada uma reunião técnica na Câmara sobre a situação da população negra e quilombola na pandemia. O que vemos é um completo descaso, completa negligência em relação às políticas públicas até mesmo naquilo que sobrou de política pública na baixíssima execução orçamentária. É um deixar morrer intencional, degradar as condições de vida e deixar morrer pela omissão do Estado.

Vocês conseguiram derrubar os vetos do presidente Jair Bolsonaro ao projeto de lei que previa medidas emergenciais de enfrentamento à Covid-19. Essa proteção ainda não é suficiente?

De forma alguma. O governo não tem executado ações de amparo às comunidades nos territórios. Há toda uma confusão em relação à coordenação das políticas públicas no pacto federativo, incompetência total, muita irresponsabilidade na condução, principalmente do SUS. Os municípios acabam tendo que se virar, porque não conta com suporte do governo federal. A pandemia acentua a gravidade da situação. Todas as medidas de mitigação que o Congresso tem aprovado são insuficientes. Não há uma disposição do governo em garantir a proteção à vida dessas pessoas. Uma representante do governo federal, na reunião técnica, apresentou um negócio vexatório. Ela teve coragem de falar que a principal ação é a entrega de cestas básicas para 815 famílias quilombolas. Não teria parâmetro agora, mas, só em Minas Gerais, nós temos mais de 800 quilombos. É inacreditável o nível  de desprezo. Apresentam isso como se fosse uma coisa importante que estão fazendo.

“Bolsonarismo representa uma agenda de racismo e ódio”

Vocês que convocaram essa reunião?

Solicitamos à comissão de enfrentamento à Covid-19, instaurada na Câmara, uma reunião sobre os impactos da pandemia na população negra e quilombola. O requerimento é de junho, só agora (fim de agosto) essa reunião aconteceu com caráter de audiência pública. O governo não tem política pública de igualdade racial e muito menos de redução de mortes e da vulnerabilidade da população negra durante a pandemia. A gente está à nossa própria sorte e o Congresso é muito omisso. De forma mais genérica, o auxílio vai atingir a população negra, a população mais vulnerável é a população negra. Então é um benefício que, sem ter uma perspectiva de igualdade racial, tem um efeito positivo para a população negra, que é a população mais pobre. Mas isso não é suficiente. É só para segurar as pontas. O pior, as pessoas continuam morrendo por Covid-19 e, proporcionalmente, morrem muito mais pessoas negras, nos quilombos e nas aldeias. É inacreditável como essa pandemia chega para essas comunidades. Vemos o rearranjo das forças políticas do campo mais alinhado aos interesses de mercado. O Centrão se reposicionando para sustentar o governo federal, há um casamento da agenda econômica com a agenda de ódio e massacre que o bolsonarismo representa. Vemos certa tolerância por parte dos principais articuladores desses interesses de mercado com os desmandos e malfeitos do governo federal uma vez que a agenda econômica continua. Uma agenda racista, de supressão do território, dos modos de vida das comunidades tradicionais, uma agenda do agronegócio, de destruição socioambiental, uma agenda de desinvestimento nas políticas públicas, tudo isso que se encontra, neste momento, de forma dramática com o projeto de extrema direita que o bolsonarismo representa. É o pior momento para a população negra, os povos de comunidades tradicionais, de um governo que atua deliberadamente contra dos direitos dessas pessoas.

Força Estadual de Saúde atendem quilombolas em Monção. (Foto: Governo do Maranhão)

O monitoramento da Covid-19, nestes territórios, tem sido feito de forma autônoma pelas organizações, como a Conaq e o ISA, e indicam números bastante altos, o que demonstra esse descaso do governo federal. As denúncias feitas contra o governo Bolsonaro nos organismos internacionais têm sido suficientes?

Não tenho muita ilusão com a incidência dos organismos internacionais, neste momento. A resposta é muito mais lenta do que as necessidades urgentes da população, mas é fundamental continuar agindo nesta esfera internacional, continuar pressionando. Toda a sociedade organizada e mobilizada indo para cima das instituições que não têm cumprido seu papel democrático de assegurar direitos constitucionais. Apesar de toda essa pressão, o que está traçado, neste momento, é que as instituições vão ter uma resposta — se tiver uma resposta — muito aquém do que deveria ter. Mesmo com essa lei aprovada de proteção aos povos indígenas e quilombolas, ainda é muito pouco ou quase nada, insuficiente demais para termos um outro quadro minimamente decente. Não podemos abrir mão dessa luta organizada, do papel da oposição e do parlamento, da cobrança das instituições para que respondam, mas a questão de fundo é a reorganização das forças progressistas na sociedade brasileira, para virem, de maneira mais competitiva e consequente, para um processo eleitoral e para um trabalho permanente de luta em defesa da democracia, senão há o risco de que o projeto bolsonarista se consolide mais e mais. Esses rearranjos que, de tempos em tempos vão acontecendo, como agora com o Centrão e os grupos econômicos, têm afiançado a permanência do Bolsonaro no poder. A Coalizão Negra por Direitos apresentou um pedido de impeachment. Primeiro vem o manifesto “Com racismo não pode haver democracia” e o pedido de impeachment como consequência dessa formulação. Nós vemos a articulação e ação sistemática do governo federal em aniquilar direitos e a vida da população negra, essa política genocida quem vem sendo denunciada em vários níveis. Isso talvez não mude a nossa situação atual em termos institucionais, mas, sem dúvida nenhuma, gera um acúmulo de forças, de aprendizado, de organização da sociedade brasileira, que vai ser decisivo para um próximo momento. Olhando para agora o cenário é desolador demais. Perdemos a esperança se não olharmos para esse além, para esse horizonte para o qual estamos construindo saídas possíveis.

Nas eleições municipais, existe possibilidade de o campo bolsonarista sair reforçado?

Com toda certeza. Eu não tenho a menor dúvida disso, se não houver uma articulação mais estratégica por parte do nosso campo, não vamos conseguir neutralizar a entrada deles não. Existe uma diversidade na sociedade. Tem um eleitorado firme progressista, mas tem uma parcela suscetível, que ainda está disposta a apostar neste projeto bolsonarista, mesmo que não seja tão consciente assim, de uma avaliação profunda do que é esse projeto .

Ao mesmo tempo que a esquerda se mobilizou para que o auxílio emergencial tivesse um valor razoável, porque o governo propôs valor menor. Exatamente esse auxílio emergencial tem sido apontado como um dos fatores nessa melhora na avaliação do presidente. Como fazer um combate se a população precisa, a população negra majoritariamente precisa desse auxílio? Ele se tornou a principal carta na manga do presidente. O que fazer?

Temos um trabalho ainda mais complexo que é disputar o sentido de sociedade, o projeto de sociedade que nós defendemos. Não podemos, evidentemente, agir contra medidas que vão beneficiar a população. Mas esse auxílio é resultado da luta da oposição e da mobilização social. O governo depois, espertamente, capitaliza, mas, de saída, era contra o auxílio emergencial, depois coloca parcela de R$ 200. Sabemos o enredo todo, como o governo se apropria de maneira oportunista de uma conquista da cidadania brasileira. Não podemos deixar de fazer a luta correta. Nós não vamos colocar medidas bombásticas para destruir o governo junto à população, como aconteceu, na época da Dilma, com as pautas-bomba. A oposição tem que ter papel muito responsável. 

Bolsonaro venceu em 2018, manipulando sentimentos muito legítimos da população, de medo, de violência, do que vai ser dessas crianças nessas escolas, tudo isso foi usado como uma guerra sobre os afetos, sobre as emoções, sobre as necessidades das pessoas, mas de uma maneira muito desonesta a partir de notícias falsas, de uma indústria de desinformação. O nosso trabalho mais estruturante tem que estar neste nível de conversa, próxima das pessoas, tentando endereçar os problemas cotidianos. O bolsonarismo faz isso muito bem, dando falsas soluções, soluções ilusórias, enganadoras. Precisamos desmistificar isso, disputar esse sentido na sociedade. Por enquanto, estamos numa encruzilhada. Medidas positivas que vierem a ser aprovadas serão capitalizadas por esse governo. A máquina na mão desse projeto tem efeito devastador, que acaba virando uma reiteração do próprio projeto, mas que a gente saiba o que está por trás. 

O presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, leva o debate para essa discussão ideológica, fala dos movimentos negros. Há um enfrentamento discursivo ao que ele fala, mas efetivamente a fundação foi esvaziada. Muitas atribuições, como o licenciamento ambiental, passaram para o Incra, que está sob o comando de ruralistas. E tudo vira uma cortina de fumaça e as decisões contra as comunidades quilombolas vão passando.

Ao mesmo tempo não podemos deixar esse cara falar o que ele fala. Não podemos deixar isso acontecer sem nenhuma consequência. Por exemplo, o caso da Krespinha, da Bombril, a gente precisou pautar de novo uma propaganda racista, de uma empresa que já tem um histórico. Precisamos incidir no meio disso tudo, de uma pandemia, o mundo caindo e eles passando a boiada. Estamos exauridos, o ataque vem de todos os lados e é incessante. Não acho que seja correto não pontuar, porque ele é o representante de um órgão que foi conquistado a partir da luta do movimento negro. Ele não pode desmontar a Fundação Palmares. A gente não está conseguindo deter esse desmonte, mas a gente está em cima cobrando, cuidando para que ele seja responsabilizado pelas coisas que ele fala. Nesse jogo de narrativas, de como o bolsonarismo apela para os afetos, isso tem um efeito de capital político. A gente não pode ignorar isso e achar que a grande luta está no orçamento, a grande luta está na legislação. A grande luta está nesse simbólico também. É como se a gente tivesse que girar muitos pratos ao mesmo tempo sem poder deixar nada cair. Só que é isso. Nossa energia vital está indo embora com isso, inclusive estamos adoecendo não só por conta da pandemia, adoecendo de Brasil. Para gente não adoecer o negócio é sustentar a luta, compartilhar as responsabilidades. Vejo a Gabinetona como uma das capacidades de resposta, claro que no nível micro, muito longe de a gente conseguir abalar as estruturas do sistema. Estão surgindo várias candidaturas coletivas no Brasil em 2020. Apesar de todo esse cenário de devastação a gente tem o surgimento desses focos de esperança, da ação coletiva que vão conseguir sim, na pequena escala, fazer uma diferença. Se a gente transforma isso em rede de colaboração, ganhamos fôlego e ganhamos um volume muito maior. Tem sempre que fazer essa análise do micro e do macro como estamos posicionados neste momento histórico. Por isso não desanimo. A gente nada, nada, nada e parece que tem um oceano inteiro para cruzar e parece que cada braçada é nada, mas vamos juntas para não desesperar.

Você inicia sua atuação política no hip hop, no grupo feminino de rap Dejavu. Como esses quilombos urbanos se vinculam às lutas dos quilombos rurais?

Há muita sabedoria no movimento hip hop. Aquilombar-se é construir uma comunidade de soberania, de dignidade para todos. No quilombo cabe todo mundo. O quilombo é acolhedor, supre as necessidades de bem-estar, de alimentação e de vida. O quilombo é uma instância política, em que tratamos os nossos problemas coletivamente. Isso está no significado maior de quilombo, não só na experiência histórica, mas como formulamos a ideia de quilombo. Aquilombar-se é também um chamado de ação. No hip hop tem essa ideia de construir coletivamente, construir comunidades e espaços de pertencimento, em que a gente se reconhece e caminha lado a lado mesmo com as contradições e conflitos, que vão sempre existir. O aquilombamento é uma tecnologia política, cultural, social. Se for olhar na lógica de resultados, é muito mais efetiva para criar condições de preservação da vida, não só das pessoas, mas dos ecossistemas. Hip hop é minha escola, é meu grande fundamento. Hip hop é muito diverso, com jovens de periferia e negros. É o encontro de muitas matrizes. Na sua origem, é uma cultura híbrida. Se for olhar para identitarismo, no sentido mais pejorativo do termo, todo mundo se assemelhando, todo mundo ter que rezar uma mesma cartilha, o hip hop é totalmente insubordinado. A luta por justiça tem que trazer a questão da identidade no seu sentido maior, as marcas que nos diferenciam numa sociedade desigual. Essas marcas, diferenças são tornadas identidades para a gente se reconhecer, se sentir pertencente, como viram moeda de violência e segregação. O desafio é não usar identidade para criar outras formas de segregação. Às vezes há tentativa de silenciamento das vozes críticas e dissonantes mesmo nos movimento negros e feminismos, são lugares de poder. Quem dera se o grande problema estivesse circunscrito ao fato de a pessoa ter nascido homem, branco, hétero. Não é isso. Estamos falando de uma questão de justiça. A gente está buscando um processo de liberdade para todas as pessoas e cada pessoa tem que se posicionar de acordo com sua condição, o lugar de fala, história social.

Fogo avança na Amazônia e no Pantanal. (Foto: Christian Braga/ Greenpeace)

Assistimos em 2019 e 2020 ao avanço de ruralistas nos territórios indígenas e quilombolas, às queimadas dos biomas amazônico e do Cerrado. Há uma disputa que o governo faz ao deslegitimar dados oficiais de queimadas. É possível barrar essa ingerência no parlamento?

Não é garantia que vai funcionar, mas tem sim. A questão da mineração em terras indígenas é um projeto desse governo que não avançou, pelo menos formalmente, porque houve um compromisso da Câmara dos Deputados de não levar essa matéria adiante. Para o setor econômico, empresariado, também tem um custo enorme a destruição da biodiversidade e meio ambiente, tanto que eles se organizaram e fizeram manifesto pela sustentabilidade ambiental no Brasil. Está prejudicando o negócio. Tentam afiançar o apoio ao governo garantindo pelo menos esse mínimo, de uma agenda de capitalismo verde, esse capitalismo menos predatório. Tudo que é feito no parlamento não tem efeito tão forte se não tiver uma resposta do poder executivo e do poder judiciário, pelo menos, sem falar na sociedade civil e na mídia. Sinceramente, o momento é de não ter expectativa que vamos resolver as coisas apenas nessa mínima e insuficiente resposta do parlamento. A gente não desiste. Aprovamos a Lei Aldir Blanc, do setor cultural, que é importante. Mas até agora não tem prazo para a liberação do recurso. O governo joga na retranca destrutiva. É uma conquista extraordinária que veio do parlamento, liderada pela oposição. Estamos numa encruzilhada da história e a gente precisa observar com sagacidade o que está acontecendo para não se equivocar. Para colocarmos nossa força de ação em processos que vão virar, no médio e longo prazo, capacidade de reversão, capacidade democrática. Da gente apresentar saída para o país. Tem que viver um dia de cada vez nesta empreitada. Estou no parlamento e a Gabinetona conectada com uma série de organizações e instituições, que nos dão suporte e nos provocam para atuar no parlamento, e colaboramos com ações fora do parlamento. 

De Olho nos Ruralistas publica uma série chamada Esplanada da Morte, mostrando o papel de cada um dos ministros nas mortes por Covid-19. Você acha que a população tem a percepção de que é um governo genocida?

É um governo genocida que atua deliberadamente para deixar a população à própria sorte. Não assegura a cobertura dos direitos fundamentais para todo mundo. É um governo negligente que joga com a desinformação, uma manipulação da percepção pública. A população, de forma geral, não tem a percepção de que é um governo genocida, sequer entenderia o sentido de genocida assim como uma forma sistemática e reiterada do Estado negligenciar determinadas populações. Embora boa parte desaprove esse governo e veja o desastre que é a gestão da pandemia, ainda falta um link de como transformar essa desaprovação numa alternativa. Aí que há um campo aberto para atuarmos. Essa é uma tarefa de quem luta por democracia, de quem luta por dias melhores. As pessoas retornam àquele velho normal e vão tocando a vida. As mortes continuam acontecendo, mas parece que as pessoas vencem a pandemia por saturação. A pandemia não precisa passar. A sensação de que as coisas já estão melhores parece que é o bastante. As pessoas voltam a se aglomerar. Não só porque querem ou estão sentido que está tudo bem, porque muitas vezes não têm opção. As pessoas que estiveram na linha de frente o tempo inteiro não tiveram opção de parar e não tiveram condições de se protegerem. É até compreensível que as pessoas criem esse mecanismo mental de abrandar a gravidade da situação. Como se fosse dispositivo de auto-proteção: “Eu tenho que encarar mesmo; tenho que continuar trabalhando, pegando esse ônibus lotado, sujeito a pegar essa Covi-19. Isso não é tão preocupante”. É o sentimento que existe. É claro que tem pessoas que estão sofrendo muito, perderam pessoas próximas, mas tem um confusão muito grande nas percepções. Por isso vejo imagem de uma encruzilhada. Não temos uma saída óbvia. São muitos caminhos possíveis e vamos ter que trabalhar na combinação disso. Por isso, precisa ser uma construção mais diversa, mais ampla. São modos de vida, uma questão civilizatória. O que diz esse agronegócio que exaure tudo? Essa pandemia está relacionada a esse modelo de exploração predatória total da natureza, às grandes fazendas de produção de carne que têm a ver com desmatamento, agronegócio, tudo associado numa cadeia de um poder econômico violento, muito bem representado nas instituições políticas brasileiras e mundiais.

Você se sente uma quilombola?

Não tenho coragem de dizer que me sinto uma quilombola, porque há muitas marcas, histórias que não posso reivindicar para mim. Quilombola tem uma história ancestral de se aquilombar no território, não só a ideia de quilombo como força que nos ajuda a pensar e organizar a ação política. Quilombola tem uma coisa aterrada no território. O território é parte da experiência quilombola.

Márcia Maria Cruz é jornalista |

|| A cobertura do De Olho nos Ruralistas sobre o impacto da pandemia nas comunidades quilombolas tem o apoio da Fundo de Auxílio Emergencial ao Jornalismo da Google News Initiative ||

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