Número de ocorrências saltou de 109 para 256 entre 2018 e 2019, segundo relatório do Cimi sobre violências contra as etnias em 2019; nome do presidente foi mencionado em diversos casos de agressões; mortalidade infantil aumentou 40% e crianças foram torturadas
Por Sarah Fernandes
O número de invasões de terras indígenas no Brasil mais do que dobrou em 2019, primeiro ano de governo do presidente Jair Bolsonaro, na comparação com 2018. O total de ocorrências saltou de 109 casos para 256, registrando um aumento de 134,9%, segundo o relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2019, lançado nesta quarta-feira (30) pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Os casos incluem diferentes registros de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio”, como classifica o documento. Esses fatos foram registrados em 151 terras indígenas, de 143 etnias, em 23 dos 27 estados. Pelo menos 77 casos documentados pelo Cimi provocaram danos ao ambiente; 30 deles, danos ao patrimônio indígena.
Trata-se, de acordo com a publicação, de “uma tragédia sem precedentes” no Brasil:
— As terras indígenas estão sendo invadidas de modo ostensivo e pulverizado de Norte a Sul. Em alguns episódios descritos no Relatório, os próprios invasores mencionavam o nome do presidente da República, evidenciando que suas ações criminosas são incentivadas por aquele que deveria cumprir sua obrigação constitucional de proteger os territórios indígenas, patrimônio da União.
Em uma análise mais minuciosa, é possível perceber que os 256 casos de invasões registrados no ano passado se desdobram em mais de uma modalidade de violência ou de violação de direitos dos indígenas que, se analisadas em separado, chegam a 544 ocorrências.
Elas estão divididas em invasão de terras (208), exploração ilegal de madeira (89), garimpo e exploração mineral (39), fazendas agropecuárias (37), incêndios (31), pesca predatória (31), grilagem de terras (30), caça predatória (25), empreendimentos de infraestrutura (25), exploração ilegal de recursos naturais (14), contaminação de água ou alimentos por agrotóxicos (7), empreendimentos turísticos (5) e rotas para tráfico de drogas (3).
ESTADO TEM PENDÊNCIAS BUROCRÁTICAS COM 63% DAS TERRAS INDÍGENAS
O relatório destaca que a demarcação de terras indígenas são estratégias eficientes para a preservação do meio ambiente:
– Para além de materializar o reconhecimento de um direito originário, as terras indígenas são, comprovadamente, as áreas que mais protegem as matas e os seus ricos ecossistemas. Historicamente, a presença dos povos dentro de seus territórios faz com que eles funcionem como verdadeiras barreiras ao avanço do desmatamento e de outros processos de espoliação. No entanto, os dados de 2019 revelam que os povos e seus territórios tradicionais estão sendo, explicitamente, usurpados.
Das 1.298 terras indígenas brasileiras, 829 possuem alguma pendência burocrática com o poder público, seja para finalizar o processo de demarcação, seja para registrar a área como território tradicional indígena na Secretaria do Patrimônio da União (SPU). Ao todo, 536 terras indígenas ainda aguardam a primeira providência do Estado para iniciar o processo de demarcação, segundo o relatório, que destacou o papel da Presidência da República nesta dinâmica:
— Além de ter cumprido sua promessa de não demarcar um centímetro de terra indígena, o governo Bolsonaro, através do Ministério da Justiça, devolveu 27 processos de demarcação à Fundação Nacional do Índio (Funai), no primeiro semestre de 2019, para que fossem revistos. Esta ação, certamente, implica em maiores obstáculos, senão no próprio impedimento, ao cumprimento dos direitos constitucionais dos indígenas que reivindicam seus territórios ancestrais.
Ao todo, foram registrados 1.120 casos de violência contra o patrimônio de povos indígenas em 2019, com destaque para omissão e morosidade na regularização de terras (829) e conflitos de direitos territoriais (35).
CASOS DE VIOLÊNCIA FÍSICA CONTRA INDÍGENAS TAMBÉM DOBRARAM
Ocorrências de violência contra indígenas também mais que dobraram em outras cinco categorias analisadas pelo relatório no primeiro ano do governo Bolsonaro. O número de casos de conflitos territoriais passou de 11, em 2018, para 35 casos em 2019; o de ameaças de morte saltou de 8 para 33; outros tipos de ameaças saltaram de 14 para 34 casos; o total de lesões corporais dolosas contra indígenas quase triplicou, passando de 5 para 13; e o de mortes por desassistência do Estado passou de 11, em 2018, para 31, em 2019.
O relatório destaca que, “invariavelmente”, os casos de violência praticados contra indígenas e suas comunidades “estão associados à disputa pela terra”. Em 2019, 113 indígenas foram assassinados, 20 deles vítimas de homicídios culposos. Os estados que concentraram o maior número de mortes foram Mato Grosso do Sul (40) e Roraima (26). Segundo o Cimi, nem as crianças foram poupadas:
— Infelizmente, constata-se que em 2019 a população indígena do Mato Grosso do Sul (2ª maior do país) continuou sendo alvo de constantes e violentos ataques, em que há até mesmo o registro de práticas de tortura, inclusive de crianças.
Foram registrados ainda 24 tentativas de assassinato de indígenas, 16 casos de racismo e 10 de violência sexual. No conjunto, foram 276 casos de violência praticadas violência física contra indígenas.
MORTALIDADE INFANTIL ENTRE AS ETNIAS AUMENTOU 40%
As ocorrências registradas no relatório como “violência por omissão do poder público” tiveram um aumento em todas as categorias analisadas, totalizando 267 casos.
O total de mortes de crianças indígenas até 5 anos aumentou exponencialmente entre 2018 e 2019, passando de 591 casos para 825. “Chamam atenção os registros de 248 casos no Amazonas, 133 em Roraima e 100 no Mato Grosso”, segundo o relatório, que destaca que os casos são parciais e sujeitos a atualizações e que, por isso, podem ser ainda maiores que o informado.
A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) registrou 133 suicídios de indígenas no país apenas no ano passado, 32 a mais que em 2018. A maioria das ocorrências se concentrou no Amazonas (59) e no Mato Grosso do Sul (34).
| Sarah Fernandes é repórter do De Olho nos Ruralistas |
Foto principal (Divulgação): em Rio Branco, comunidade Huni Kuī teve 100 de seus 200 hectares queimados em 2019