Sem a atividade, principal fonte de renda das dezoito comunidades quilombolas do Recôncavo Baiano, moradores recorrem ao Bolsa Família, auxílio emergencial e doação de cestas básicas; receita de turismo sustentável também foi interrompida
Por Márcia Maria Cruz
Outubro costumava ser um mês festivo para os quilombolas do Recôncavo Baiano. Na segunda quinzena, as comunidades celebravam a abundância que vem do mar com a Festa das Ostras da Comunidade Quilombola da Bacia e Vale do Iguape, um evento gastronômico que atraía centenas de turistas para a região. Algumas das comunidades, como o Quilombo Kaonge, conhecido como paraíso das ostras, ofereciam a iguaria que vem do mar. Outras, como o Quilombo do Dendê, forneciam o óleo tão característico da culinária baiana. Ostra e dendê compunham os pratos no festival, como a moqueca de ostra, ostra assada no fogo de chão ou cozida no vapor.
Mais do que provocar o apetite dos turistas, a comercialização dos ingredientes é a principal garantia de renda para os dezoito quilombos da região e cerca de 10 mil famílias, de acordo com líderes quilombolas. No entanto, o isolamento social causado pela pandemia de Covid-19 paralisou a atividade. Sem o dendê, os mariscos e o turismo, as famílias passaram a depender do Bolsa Família, auxílio emergencial e doações de cestas básicas para terem a alimentação do dia a dia.
“A festa da ostra é um evento que traz muita gente”, afirma a educadora popular Selma Silva Santos, de 40 anos, moradora do Quilombo Engenho da Ponte. “Neste momento de pandemia, não há como fazer”. Assim como as demais comunidades da região, a do Engenho da Ponte tira seu sustento basicamente da mariscagem e da extração do azeite de dendê.
“Durante a pandemia, o preço da ostra e do dendê caiu e as comunidades não conseguiam escoar os produtos porque não podiam sequer tentar vendê-los nas áreas urbanas”, prossegue Selma.
— A gente entende que o manguezal é o supermercado de Deus. Mas com a pandemia as coisas mudaram. As comunidades vivem do comércio do azeite de dendê para comprar outros alimentos. Assim como o da mariscada. A atividade permite a compra de produtos que não têm na comunidade, como arroz, feijão, açúcar, o leite. No momento da pandemia, tudo muda.
Com a queda dos preços, um quilo de ostra que custava entre R$ 25 e R$ 30 passou a ser vendido por entre R$ 15 e R$ 20; o sururu passou de R$ 15 para de R$ 10 a R$ 12; o azeite dendê passou de R$ 20 para R$ 16. “As comunidades não morrem de fome, mas passam por situação ruim”, conclui Selma.
A assistente social e marisqueira Daniela Nogueira da Silva, de 26 anos, do Quilombo do Dendê, onde vivem dezesseis famílias, lembra que nem mesmo a flexibilização das medidas de isolamento social reverteu a queda das vendas: “As cidades abriram, estão dizendo que está voltando ao normal, mas a comunidade mantém o cuidado. Só sai pela necessidade mesmo: vai ao médico, sai para comprar algum alimento essencial. Mas, mesmo com a reabertura, não vendemos nada”.
Além da pandemia, as comunidades enfrentam outros problemas em relação à extração do dendê, como os impactos do clima na produção. “Estamos com pouca matéria-prima porque a safra deste ano não favoreceu, em razão do excesso de chuva nos últimos meses”, afirma Josélia da Hora, de 44 anos, da comunidade quilombola Mutecho Acutinga.
TURISMO SOFRE COM OS EFEITOS DO CONFINAMENTO
O turismo é outra as fontes de renda importantes para as comunidades da Rota da Liberdade. “A produção social é associada ao turismo, que sente o primeiro impacto, pois agrega os núcleos produtivos”, afirma Ananias. Moradores dos quilombos Kaonge, Dendê, Kalemba, Engenho da Ponte e Santiago do Iguape criaram o Núcleo de Turismo Étnico Rota da Liberdade. Nos roteiros turísticos, os quilombolas apresentam a história, geografia, cultura e o modo de vida das comunidades da região da Bacia do Iguape-Cachoeira.
As comunidades restringiram a presença de turistas e outros visitantes para evitar o avanço no novo coronavírus. “Mesmo com essas restrições, infelizmente, algumas comunidades têm casos de Covid-19”, diz Selma.
Os líderes comunitários orientaram as pessoas a ficarem nas comunidades durante a pandemia. “A orientação é para que as pessoas não exponham as comunidades e as famílias”, diz Ananias Nery Viana, quilombola da comunidade do Kaonge.
Sem poder comercializar seus produtos, as comunidades sobrevivem com a renda que vem do Bolsa Família e do auxílio emergencial do governo federal. A marisqueira e assistente social Daniela Nogueira Silva destaca que as comunidades se mobilizam para atender todas as família. O projeto 150 Fotos pela Bahia, por exemplo, empreendeu a doação de cestas básicas. “Toda ajuda é muito bem-vinda, vivemos um momento de muita dificuldade”, diz.
REDUÇÃO DO AUXÍLIO EMERGENCIAL AGRAVARÁ SITUAÇÃO DE FAMÍLIAS
Moradora do Quilombo Kaonge, a marisqueira Jucilene Viana Jovelino, de 40 anos, destaca que quando o auxílio emergencial for suspenso, as comunidades passarão por dificuldade. “Com a redução do valor para R$ 300, a situação já tende a se agravar”, diz em referência à redução pela metade do valor do auxílio emergencial. Segundo ela, as famílias não conseguirão sobreviver apenas com a renda da venda dos produtos locais.
Jucilene lembra que a situação ficou ainda mais difícil no período eleitoral. A comunidade teme que possa haver um aumento no número de casos da Covid-19 em razão das atividades de candidatos na região. A marisqueira destaca que não sabe até quando as comunidades passarão por dificuldades em decorrência da pandemia.
— Quando pensamos que as coisas estavam melhorando, a política chega e quebra toda a articulação de conscientização para que as pessoas ficassem em casa. São realizados encontros políticos com muita aglomeração, muitas promessas. O povo perdeu a noção, não sabe mais o que quer: viver ou morrer. Os políticos querem ganhar e, depois, dane-se a população sem dinheiro, sem saúde e sem alimentação.
As cestas básicas ajudam a manter a subsistência dos quilombos. Ananias Nery Viana, quilombola da comunidade do Kaongê, destaca que as comunidades enfrentam dificuldades estruturais desde antes da pandemia. “As comunidades já estavam abandonadas sem saúde, educação e saneamento básico, elas se viram do jeito que podem”, diz.
Mesmo assim, em meio à carência, as comunidades preservam a identidade e as tradições. Elas promoveram transmissões online com grupos culturais, como o Suspiro do Iguapé e Banana Regga. Também foram realizadas oficinas de culinária para manter a tradição do Festival das Ostras e promover os conhecimentos tradicionais.
| Márcia Maria Cruz é jornalista. |
Foto principal (Grupo Ambientalista da Bahia): Turismo étnico é boa alternativa de receita, mas ficou sem público na pandemia
|| A cobertura do De Olho nos Ruralistas sobre o impacto da pandemia nas comunidades quilombolas tem o apoio da Fundo de Auxílio Emergencial ao Jornalismo da Google News Initiative ||