Veículo que levava líderes da etnia teve pneu furado e quase foi incendiado com o motorista dentro, no sudoeste do Pará; invasões ao território dos indígenas triplicaram desde o início do governo Bolsonaro
Por Luiza Sansão
— A gente tá esperando sempre de tudo, porque desde o começo a gente sabe que vai ter ataque pra todos os lados. Então a gente toma muito cuidado. Nunca estamos seguros em lugar nenhum, porque tem incentivo desse presidente.
As palavras de uma líder Munduruku expressam a angústia constante de seu povo, agravada na manhã desta quarta-feira (09), quando um grupo de indígenas e garimpeiros que apoiam o garimpo ilegal na região do Alto Tapajós atacou, no município de Jacareacanga, no sudoeste do Pará, a comitiva de caciques Munduruku que se deslocava para Brasília.
A comitiva foi formada exatamente para denunciar as sucessivas violências de garimpeiros da região contra seu povo. O grupo criminoso furou os pneus do ônibus fretado e ameaçou incendiar o veículo com o motorista dentro, de acordo com o boletim da ocorrência, registrado nesta quinta-feira na 19ª Delegacia de Itaituba (PA). Nenhum indígena estava no ônibus.
Os garimpeiros iniciaram as ameaças logo que perceberam a movimentação dos indígenas para a viagem. De Itaituba a Jacareacanga são aproximadamente 400 quilômetros, com diversos garimpos no caminho. Enquanto viajavam, os indígenas eram questionados por desconhecidos. “Para onde esse ônibus vai? Que é que vocês vão fazer?”. Em Itaituba, os pneus do ônibus foram furados. A tentativa de incendiá-lo ocorreu quando o veículo estava na borracharia. Os indígenas já tinham pedido uma escolta à polícia, sem sucesso.
Os 42 indígenas só conseguiram deixar o estado do Pará na tarde desta quinta-feira (10) . “Teve muita articulação nossa, muita estratégia nossa pra poder sair, porque não é fácil”, afirma a líder Munduruku. Apesar do medo e da tensão, os indígenas tentam manter a luta:
— Tem muita gente de olho na gente, eles têm conhecimento de quem são as lideranças que são contra, as pessoas não podem falar que são contra o projeto de morte. Ou ele fica calado ou fala pra ser ameaçado. Só que a gente não pode ficar calada. Eu não posso, muitos caciques não podem, eles não querem ficar calados.
GARIMPEIROS QUERIAM QUEIMAR UMA PONTE PARA IMPEDIR VIAGEM
De Olho nos Ruralistas teve acesso a mensagens de voz trocadas por WhatsApp entre garimpeiros, que planejavam queimar uma ponte para que a marcha a Brasília fosse impedida. Ouça a mensagem atribuída a um garimpeiro chamado Adilson de Oliveira:
Maior província mineral em extensão do mundo, o Tapajós é alvo há longa data das violências do garimpo ilegal. Um levantamento do Instituto Socioambiental (ISA) mostra que, em dois anos e meio, entre janeiro de 2019 e maio de 2021, houve um aumento de 363% de área degradada pelo garimpo na Terra Indígena (TI) Munduruku — um total de 2.264,8 hectares.
A violência dos garimpeiros aumenta na mesma medida. No dia 26 de maio, garimpeiros armados atacaram uma aldeia, em represália a uma operação de fiscalização e combate ao garimpo ilegal ocorrida dois antes, e queimaram a casa de Maria Leusa Kaba, uma das líderes da luta contra o garimpo e a mineração no território Munduruku.
Mesmo em meio à tensão gerada pelo ataque, no dia seguinte, as forças federais e estaduais se retiraram da região, deixando os indígenas sem proteção. Em 29 de maio, a pedido do MPF, a Justiça Federal determinou o retorno de forças federais a Jacareacanga, para garantir a proteção do povo Munduruku. Segundo a líder, porém, “até hoje nunca voltaram, só está em papel”.
‘TEM MUITO INVASOR, NEM SEI ONDE COMPRAM TANTO AVIÃO, SÓ SEI QUE ELES TÊM’
Os líderes Munduruku sentem-se abandonados pelo Estado. Parte dos indígenas acaba sendo convencida a garantir a invasão das reservas. “Aqueles que odiavam indígenas, agora estão a favor do índio, só porque precisam do território, precisam dos índios favoráveis”, desabafa a indígena. “Por que o próprio índio está procurando a morte do próprio povo? Isso é triste”. Para ela, os indígenas favoráveis ao garimpo ilegal estão iludidos e tal ilusão acabará quando virem seu povo doente e com fome.
Ela diz que seu povo sabe os interesses dos empresários, moradores da região que querem explorar o garimpo dentro do território Munduruku. “E eles são muitos, não é pouco, não”, descreve. “Tem muito invasor, por isso que tem muito avião dentro do território, muita pista de voo. Porque tem muito avião irregular. Eu nem sei onde eles compram tanto avião, só sei que eles têm. E eles têm dinheiro, né? Eles têm dinheiro pra aliciar lideranças.
Só que isso acaba, constata a líder indígena:
— A gente fica muito triste porque tudo isso acaba e a gente está tentando, pelo menos, salvar os territórios indígenas. Não só aqueles que estão demarcados, mas, principalmente, aqueles que não estão demarcados. Olha a situação das terras que não são demarcadas. Como a gente vai ficar a favor de um projeto de morte para o território? Não tem como, não tem como.
Importante movimento de resistência contra a construção de barragens no Rio Tapajós, o Ipereg Ayu tornou público, nos últimos dias, o acirramento dos conflitos com garimpeiros na região do Alto Tapajós, denunciando em redes sociais as constantes ameaças, que incluem rondas de homens armados nas aldeias. Nas postagens, os líderes responsabilizam o governo Bolsonaro pelo aprofundamento dessas violências contra indígenas e todos aqueles que resistem à exploração mineral e à grilagem de terras.
O presidente e seus aliados apoiam o Projeto de Lei 191/2020, que prevê a exploração por mineradoras dentro do território. A líder indígena questiona o projeto: “E aí, será que o indígena vai conseguir trabalhar no meio dessas empresas? Caçar, pescar, vendo seu rio contaminado, vendo a sua floresta e sua casa sendo derrubadas? Não vai. Quem vai se instalar é o branco, que tem estudo, que vem de fora, que não tem conhecimento e só chega pra explorar”.
INVASÕES COMEÇARAM NA DÉCADA DE 80 E AUMENTARAM COM GOVERNO BOLSONARO
O histórico de violações de direitos humanos contra os Munduruku é antigo, segundo a antropóloga Luísa Molina, que faz pesquisa junto aos indígenas do médio Tapajós. Os Munduruku sofrem com a entrada de garimpeiros nas suas terras desde a década de 80. A Fundação Nacional do Índio (Funai) contribuiu para a investida de garimpeiros na região, “levando gente pra dentro da terra e fazendo da terra indígena um dos principais pontos de compra e venda de ouro”, conta ela.
Ela coordenou, com o geógrafo Luiz Jardim Wanderley, o estudo “O Cerco do Ouro – Garimpo ilegal, destruição e luta em terras Mudurunku”. Participaram do projeto as pesquisadoras Ailén Veiga, Laise S. C. Silva e Rosamaria S. P. Loures, todas com atuação no Vale do Tapajós. Lançado no Abril Indígena pelo Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração, o estudo de caso trata das invasões garimpeiras e aponta que, após visita pela região do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, os conflitos se intensificaram.
O garimpo nunca teve tanto espaço no Executivo e no Legislativo como tem tido, segundo a pesquisadora. Ela cita como exemplo o fato de o governo ter assinado, em fevereiro de 2020, projeto que autoriza o garimpo em terras indígenas:
— Com Bolsonaro, os garimpeiros estão em seu melhor momento. Tanto porque foram feitas diversas promessas de campanha, diretas de que não ia demarcar terra e que não ia mais destruir maquinário de garimpo e indiretas com toda essa ideia de que a proteção ambiental é coisa de esquerdista, globalista, ongueiro, e que isso ia acabar num governo dele. De fato ele tem feito tudo pra isso. Escolheu o melhor ministro pra ajudar nessa empreitada.
Os Munduruku vêm denunciando ao poder público as invasões de suas terras desde 1987 e, desde 2010, protocolando documentos junto ao MPF. A despeito de sua luta, operações de fiscalização e combate à garimpagem ilegal na região foram realizadas apenas em 2018, mesmo assim sem garantir a proteção dos líderes indígenas contra as violências de garimpeiros.
“É muito antiga a resistência deles na terra”, lamenta Luísa. “E a gente vê periódicos surtos de garimpo, devastando a região de tempos em tempos: sempre que o preço do ouro aumenta no mercado, tem uma corrida intensa para as terras indígenas. Isso promove muitos impactos, o que é um termo muito aquém do real dano”.
A pesquisa trata do aumento expressivo do desmatamento e divulga dados sobre a saúde da população indígena do Alto e Médio Tapajós, como o surto de malária gerado pela intensificação do garimpo na região, uma das comorbidades que agravam quadros de Covid-19.
Outro tema do estudo é a contaminação por mercúrio, cuja forma mais perigosa decorre da garimpagem. Alimentando-se de peixes, os indígenas são expostos ao metal, que ocasiona danos neurológicos, imunológicos e digestivos, muitos dos quais irreversíveis.
| Luiza Sansão é jornalista especializada em direitos humanos. |
Foto principal (Vinicius Mendonça/Ibama): Ibama desativa máquinas de garimpo ilegal na TI Munduruku, em 2020
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