Relatório do Cimi aponta omissão do governo no combate à miséria entre indígenas

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Conselho Indigenista Missionário registrou 51 casos de desassistência geral em 2020; segundo a Apib, gabinete de crise criado por determinação do STF vem descumprindo agendas periódicas para tratar de assuntos relativos à Covid-19

Por Mariana Franco Ramos

Na Aldeia do Caneco, em Rondolândia, região amazônica do Mato Grosso, líderes Zoró contam que a comunidade isolada teme não ter mais o que comer, nem como se proteger de invasores. Em Dourados e Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul, dezenas de famílias Guarani e Kaiowá, com muitas crianças e idosos, vivem em condições precárias e subumanas, à espera da demarcação de suas terras. Os casos estão entre os 51 de “desassistência geral” do poder público retratados no “Relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2020“, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Segundo a publicação, lançada nesta quinta-feira (28), o governo de Jair Bolsonaro representou a continuidade e o aprofundamento de um cenário extremamente preocupante em relação aos direitos, territórios e vidas dos povos originários, particularmente afetados pela pandemia da Covid-19.

O Cimi identificou situações flagrantes de omissão do poder público nos estados do Acre (1), Amazonas (2), Ceará (1), Goiás (1), Maranhão (3), Mato Grosso (14), Mato Grosso do Sul (6), Pará (5), Paraná (2), Pernambuco (1), Rondônia (5), Roraima (3), Santa Catarina (2), e Tocantins (2), além de três casos de abrangência nacional.

Em números absolutos, o total foi menor do que o de 2019, quando houve 66 flagrantes. Mas os pesquisadores dizem que o descaso intenso e brutal por parte do Estado foi poucas vezes vivenciado pelas populações indígenas. “A deliberada omissão e a negligência do poder público ocasionaram o retorno à situação de miserabilidade de milhares de indígenas – como também de uma imensa parcela da população brasileira não indígena”, diz o relatório.

Outro exemplo desta realidade, que se repete em todo o país, é o do povo Mura, no Amazonas. O rio utilizado pelos moradores foi totalmente contaminado e sua água é imprópria para o consumo, devido à grande quantidade de fezes e urina dos búfalos criados por fazendeiros locais.

O presidente não apenas vetou o acesso à água potável, um dos itens do Projeto de Lei (PL) 1142/2020, como também a distribuição de cestas básicas, de materiais de higiene, limpeza e de desinfecção para as aldeias. O vice-presidente, Hamilton Mourão, argumentou que o fornecimento de água seria desnecessário, já que os indígenas se abastecem nos rios.

Em Sena Madureira, no Acre, mais descaso: uma família foi encontrada vivendo em meio a um lixão. Conforme a denúncia, os indígenas estariam em busca de comida e recicláveis. O Ministério Público (MP) estadual acionou a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Secretaria de Assistência Social do município. Entretanto, o órgão municipal informou que não encontrou ninguém morando no local e que os indígenas “têm o costume de sair pela cidade revirando caixa de lixo”.

INVASÕES E ASSASSINATOS AUMENTARAM EM RELAÇÃO A 2019

Conforme o Cimi, em muitos casos, o vírus da Covid-19 que chegou às aldeias e provocou mortes foi levado para dentro dos territórios por invasores que seguiram atuando ilegalmente nestas áreas, livres das ações de fiscalização e proteção que são atribuição constitucional do Executivo.

O relatório identificou que, em 2020, as “invasões possessórias, a exploração ilegal de recursos e os danos ao patrimônio” aumentaram, em relação ao já alarmante número registrado no primeiro ano do governo Bolsonaro. Foram 263 casos do tipo, contra 256 em 2019 e 111 em 2018. As situações atingiram pelo menos 201 terras indígenas, de 145 povos, em 19 estados.

Em agosto de 2020, quatro indígenas do povo Chiquitano foram assassinados por policiais no MT. (Foto: Inácio Werner/CEDH-MT)

“Os invasores, em geral, são madeireiros, garimpeiros, caçadores e pescadores ilegais, fazendeiros e grileiros, que invadem as terras indígenas para se apropriar ilegalmente da madeira, devastar rios inteiros em busca de ouro e outros minérios, além de desmatar e queimar largas áreas para a abertura de pastagens”, diz o Cimi. “Em muitos casos, os invasores dividem a terra em ‘lotes’, que são comercializados ilegalmente, inclusive em terras habitadas por povos isolados.

Na avaliação da organização, esses grupos e indivíduos atuam com a certeza da conivência – muitas vezes explícita – do governo, cuja atuação na área ambiental foi sintetizada pela célebre frase do então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles: era preciso aproveitar a pandemia para “passar a boiada” da desregulamentação.

Também chama a atenção a quantidade de “conflitos relativos a direitos territoriais”, que mais do que dobraram em relação ao ano anterior. Foram 96 casos do tipo em 2020, 174% a mais do que os 35 identificados em 2019. Os registros de assassinatos de indígenas no país são igualmente alarmantes. Em 2020, foram 182 – um número 61% maior do que o ocorrido em 2019, quando foram contabilizados 113 assassinatos.

POLÍTICAS PÚBLICAS FORAM ESFACELADAS POR BOLSONARO

Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), o gabinete de crise criado no governo por determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) vem descumprindo agendas periódicas para tratar de assuntos relativos à Covid-19, sobretudo no que afeta os indígenas isolados, ainda mais vulneráveis diante da pandemia. A Apib relata que o ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência (GSI), Augusto Heleno, foi ríspido com os participantes de uma reunião entre indígenas e representantes da gestão Bolsonaro.

Um dos graves problemas enfrentados pelos indígenas no Brasil, mencionado no documento, deve-se ao desmonte da Funai. Sob o governo Bolsonaro, além de não executar minimamente as funções para as quais foi criada em 1967 — sendo a principal delas a de “promover e proteger os direitos dos povos indígenas em nome da União” — o órgão indigenista oficial tem invertido seus papéis, desistindo de processos fundiários em favor de empresários do agronegócio.

Na TI Xakriabá (MG), povos indígenas ergueram suas próprias barreiras sanitárias contra a Covid-19. (Foto: Edgar Kanaykõ Xakriabá)

Até o fim de 2020, o governo ainda não havia apresentado um Plano de Contingência para o Enfrentamento da Covid-19 junto aos povos originários, exigido pelo STF. O ano ficou marcado pelo alto número de mortes ocorridas em decorrência da má gestão do enfrentamento à pandemia, pautada pela desinformação e pela negligência do governo federal.

Mariana Franco Ramos é repórter do De Olho nos Ruralistas. |

Foto principal (Chico Batata/Greenpeace Brasil): Registro de garimpo ilegal em maio de 2020, durante a pandemia, na TI Yanomami

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