Em 2020, apenas um território quilombola foi regularizado; no mês da consciência negra, Givânia Silva, da Conaq, faz um balanço de 26 anos de ação, enfatiza a necessidade de reconstruir políticas públicas e ressalta que todas as lutas passam pelo afirmação antirracista
Em 20 de novembro de 1995 acontecia a Marcha Zumbi dos Palmares, quando o movimento negro lembrou os 300 anos da morte do líder quilombola. Pela primeira vez ecoavam pelas ruas de Brasília os gritos da população negra organizada de todo o Brasil, o que propiciou a realização do 1º Encontro Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas e a criação da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos, a Conaq. Desde então foram realizados cinco encontros nacionais. Se em 1995 haviam sido identificadas 412 comunidades remanescentes de quilombos, a última estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2019, somava 5.972 localidades. A Conaq acredita que esse número possa ser de 6.500.
Nesses 26 anos, os quilombolas ganharam em reconhecimento e organização, e continuam se mobilizando por seus direitos. De 2004 até maio deste ano, a Fundação Cultural Palmares certificou 2.803 territórios quilombolas, segundo levantamento da Transparência Brasil e da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). No mesmo período, foram abertos 295 processos de titulação junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Dentre esses, apenas 41 foram concluídos. Nos últimos anos, o desmonte das políticas públicas tem atingido em cheio os quilombolas: em 2020, apenas um território foi regularizado. “Uma comunidade quilombola tem uma relação de pertencimento em relação ao processo de resistência”, conta Givânia Silva, membro da coordenação nacional da Conaq. “Não só porque é uma comunidade rural ou de pessoas negras, mas porque reúne pessoas identificadas com a resistência à escravidão”.
Em entrevista a Nanci Pittelkow, Givânia faz um apelo a todos: “Somente vamos poder falar de democracia, de socialismo, de desenvolvimento e meio ambiente de forma mais concreta quando a gente entender que essas questões todas estão relacionadas à questão racial”.
Para marcar o mês da Consciência Negra, cujo dia 20 de novembro marca a morte de Zumbi, a última edição do De Olho na Resistência traz a história do movimento dos quilombos a partir da marcha de 1995. Givânia, que participou do encontro histórico, analisa seu significado:
De Olho nos Ruralistas – Qual a importância do primeiro encontro dos quilombos realizado a partir da Marcha Zumbi dos Palmares em 1995, em Brasília, e qual era o contexto vivido pelos quilombolas naquele momento?
Givânia Silva – Foi a primeira vez que as comunidades quilombolas se reuniram em nível nacional. Já havia articulações locais e estaduais; algumas unidades como o Maranhão estavam realizando o segundo encontro estadual, mas muitos estados ainda não. Como o direito dos quilombolas passara a ser reconhecido a partir da Constituição de 1988, as organizações eram ainda embrionárias, muito localizadas. Em 1995, aproveitando a marcha, a gente se reúne pela primeira vez. Tínhamos notícia da existência de 412 comunidades; não estavam todas presentes na marcha, mas é o que tínhamos conhecimento. E essas comunidades estavam notadamente localizadas nas regiões Sudeste, Nordeste, Centro-Oeste e Norte, não tínhamos notícia de comunidades no Sul, para dar uma ideia do ponto de partida da organização. A grande marcha dos 300 anos de Zumbi dos Palmares aconteceu entre 17 e 20 de novembro, e dali se tira uma comissão provisória que vai discutir a construção de uma organização nacional dos quilombos.
Em 1996, no Quilombo de Rio das Rãs no município de Bom Jesus da Lapa, na Bahia, surge a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, a Conaq. então essa organização tem trabalhado para mobilizar as comunidades em todo o Brasil. Nós temos quilombos em todas as regiões, com apenas três unidades que ainda não registram comunidades: Acre, Roraima e Distrito Federal, não porque não tenham, mas porque ainda estão em processo de organização. Em todos os estados onde há processo de mobilização, há representação da Conaq. Então, esse encontro foi o marco desse novo tempo para as comunidades quilombolas; eles passaram a representar seus próprios interesses nas instâncias locais, regionais, nacionais e internacionais, como conselhos e conferências, além de encampar enfrentamentos jurídicos. Esse encontro marca essa reorganização – não que o movimento não fosse organizado, porque quem resistiu a 300 anos de escravidão e mais 100 anos de silêncio não pode ser chamado de desorganizado – mas o que não havia era uma organização nacional e é esse encontro que demarca esse momento.
Como têm sido o reconhecimento e autorreconhecimento das comunidades e quantas são hoje?
Hoje a gente tem uma estimativa do IBGE em que temos cerca de 5.800 comunidades quilombolas no Brasil. A Conaq aposta em um número maior, em torno de 6.500 comunidades. Esse processo parte da elaboração de políticas públicas para a comunidade e se completa com o papel da Conaq em desenvolver a mobilização, a troca de informações e a própria tomada de consciência das comunidades da importância dessa organização a partir do direito reconhecido na Constituição. Muitas vezes as pessoas acham que comunidades se autodefinem como quilombolas porque há uma política pública direcionada a elas. Não é isso. Uma comunidade quilombola tem uma relação de pertencimento em relação a esse processo de resistência, não só porque é uma comunidade rural ou porque conta com pessoas negras, mas porque reúne pessoas identificadas com a resistência à escravidão. Tudo isso, somado a governos mais progressistas anteriores ao atual governo genocida e ao do golpe, gerou um reconhecimento auto afirmativo de identificação e auto identificação de quilombolas no Brasil.
Como a senhora vê o amadurecimento da luta dos movimentos quilombolas e negros desde o 1º encontro na Marcha Zumbi, em termos de organização de luta e de conquistas?
Do ponto de vista dos quilombos, fomos os que mais crescemos. Essa é uma organização relativamente nova, lembrando de que quando a gente se constituiu não tínhamos informações sobre a existência de quilombos em todas as regiões do Brasil, por exemplo. Depois, há essa tomada de consciência local, regional, nacional e internacional, da necessidade do enfrentamento permanente ao racismo. Não é uma organização livre, por afinidade. É sempre para enfrentar uma violação de direitos, uma situação de racismo. O crescimento decorre dessa tomada de consciência da necessidade da luta organizada, de que ela não vai acabar com o racismo, mas que precisa combatê-lo permanentemente.
Quais os desafios da luta quilombola dentro desse governo e depois, passando o governo Bolsonaro?
Desse governo não tem nada que a gente queira mais do que ele se acabe o quanto antes, apesar de sabermos que há um pacto da elite branca brasileira de manutenção desse genocida no poder, e não devemos ter ilusão em relação a isso. Até porque todo mundo sabe que ele se elegeu tendo como um dos seus principais eixos prometer perseguir populações indígenas e quilombolas. A sociedade brasileira foi avisada de que isso ia acontecer, nós reagimos no que foi possível, mas não conseguimos barrar essa desgraça que aconteceu no Brasil. Desgraça essa que chegou para nós fortemente porque já estávamos em situação mais desfavorável, mas que chegou também para todo mundo. Agora, quem vier daqui para frente vai pegar um Estado com as políticas que vinham sendo construídas todas desmanteladas, com legislações afrouxadas e ainda com os racistas deixando de ter vergonha de serem racistas porque, na pior das hipóteses (para eles) viram deputados federais e, na melhor, viram presidente da República. O cenário de 2023 é de muita preocupação e vai exigir da Conaq e de outros movimentos do campo e da cidade um esforço maior de reconstrução das pautas e políticas que a gente vinha consolidando, e que foram destruídas com o golpe e no pós golpe.
Como fortalecer a resistência negra e quilombola?
Eu só queria fazer um convite a todas e todos os brasileiros: as lutas dos movimentos sociais do campo e da cidade não são lutas individualizadas. Nós só vamos poder falar de democracia, de socialismo, de temas sensíveis como desenvolvimento e como meio ambiente de forma mais concreta quando a gente entender que essas questões todas estão relacionadas à questão racial. O convite é para que todos se sensibilizem, todos se coloquem como antirracistas na vigilância permanente e no não financiamento do racismo e dos racistas.
| Nanci Pittelkow é jornalista. |
Foto principal (Conaq): para Givânia Silva, há um pacto da elite branca brasileira para a manutenção de Bolsonaro no poder
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