Desmonte do Iphan paralisa processos e ameaça proteção a comunidades tradicionais

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Corte de recursos por Bolsonaro, falta de funcionários e demandas sem resposta prejudicam salvaguarda a Sistemas Agrícolas Tradicionais e impedem reconhecimento de novos patrimônios imateriais; vítimas de racismo, quilombolas do Vale do Ribeira estão entre ameaçados

Por Nanci Pittelkow

Em dezembro de 2021, o presidente Jair Bolsonaro afirmou, diante de risos e aplausos na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), ter demitido diretores do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) por causa de embargo a uma obra da Havan. A fala foi a gota d’água para o conselho consultivo do órgão, que assinou coletivamente uma carta aberta com dez itens de atenção e solicitou uma reunião extraordinária com a presidente Larissa Rodrigues Peixoto, indicada ao cargo pelo ex-ministro do Turismo Marcelo Álvaro Antonio, aquele envolvido com os candidatos laranjas do PSL. A reunião ainda não foi marcada.

Para controlar a atuação do Iphan, uma autarquia que reúne técnicos concursados e experientes, o governo lança mão de cortes orçamentários e ausência de respostas. “A estratégia é a do silenciamento”, explica Hermano Fabrício Guanais e Queiroz, ex-diretor Departamento do Patrimônio Imaterial do Iphan. “Eu mandava um processo para consulta e a resposta demorava três, quatro meses, sempre pedindo um complemento. E quando a resposta final chegava, o processo era inexequível”. É a política do não dito. “Um silêncio eloquente”, complementa.

O corte orçamentário já reflete no reconhecimento como patrimônio imaterial de dois sistemas de pesca artesanal, que foram avaliados em sua pertinência e aguardam recursos para o processo de instrução de pesquisa. São eles a Pesca da tainha com auxílio de botos em Laguna, na região Sul, e a Pesca de pirarucu com arpão no Amapá, região Norte. A instituição teve em 2021 uma redução de 33,2% no seu orçamento em comparação com 2019, valor correspondente a R$ 171,33 milhões de reais.

BOLSONARO JÁ FEZ FALA RACISTA SOBRE QUILOMBOLAS DO VALE DO RIBEIRA

Sistema de pesca artesanal com botos aguarda instrução do Iphan (Foto: Divulgação)

O desmonte do órgão ameaça os dois Sistemas Agrícolas Tradicionais (SATs) reconhecidos em 2010 e 2018, os do Rio Negro e das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira, respectivamente. O reconhecimento de um SAT como Patrimônio Cultural Brasileiro pelo Iphan é uma proteção a mais às comunidades abrangidas, já que para obter o licenciamento ambiental para obras é obrigatório que os interessados consultem o órgão. O Iphan passa a dar sustentabilidade ao bem cultural, obedecendo a um plano de salvaguarda e com papel de articulador para questões ambientais, de saúde, segurança, educação, com outros órgãos e instituições.

“É de interesse do atual governo, das forças que o apoiam, prestigiar uma pauta dessas?”, questiona Hermano. “Pois a efetuação do registro vincula a ação do Estado à proteção daquele bem”. Em 2017, na sede carioca da Hebraica, Bolsonaro referiu-se aos quilombolas do Vale do Ribeira em arrobas. Disse que “nem para procriação” eles serviam. De Olho nos Ruralistas enviou repórteres para lá, em 2018. Eles constataram que os moradores de comunidades em Eldorado (SP) nunca tinham visto o político por lá. O observatório descobriu ainda o seguinte fato, ignorado pela grande imprensa: “Cunhado de Bolsonaro é condenado por invasão de quilombo no Vale do Ribeira“.

Quanto aos SATs, o Iphan havia iniciado um processo de levantamento e valorização das comunidades tradicionais, como pescadores artesanais, quebradeiras de coco, fundo de pasto, faxinais, geraizeiros e vazanteiros, entre outros, em parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Em 2019, foi lançado o livro Sistemas Agrícolas Tradicionais do Brasil, reunindo relatos de quinze experiências premiadas na primeira edição do Prêmio BNDES de Boas Práticas de Salvaguarda e Conservação Dinâmica dos Sistemas Agrícolas Tradicionais. “E nada mais foi feito, tudo foi jogado por água abaixo”, conta Hermano “Houve um silenciamento em relação a quase tudo que o Iphan faz”.

PRÁTICAS TRADICIONAIS DOS QUILOMBOS SÃO CRIMINALIZADAS PELO ESTADO

Reconhecido como patrimônio imaterial em 2018, o SAT do Vale do Ribeira valoriza uma prática ancestral dos quilombolas da região, compartilhada por caiçaras e outras comunidades tradicionais locais. “Para nós, quilombolas, é muito importante porque é um reconhecimento que não tivemos desde os nossos antepassados”, define Valni de França Dias, do quilombo São Pedro e tataraneta do fundador. “Quem está fora sabe que nós aqui plantamos tudo orgânico, limpinho, sem agrotóxico, trabalhando em harmonia com a natureza”.

Essa harmonia gira em torno da coivara, quando uma cota do terreno é limpa, queimada e cultivada com uma cultura diversificada. Depois da colheita, a terra entra no seu tempo de pousio por alguns anos até estar recuperada para novo uso. O SAT inclui saberes sobre o solo, a mata, as fases da lua, sementes, instrumentos, além de mutirões e celebrações. A identificação de similaridades com o SAT do Rio Negro, reconhecido em 2010, impulsionou a busca pelo reconhecimento pelo Iphan.

Livro “Roça é Vida” foi escrito e ilustrado por quilombolas do Vale do Ribeira. (Imagem: Reprodução)

“Essas práticas tradicionais muitas vezes são criminalizadas pelo Estado, porque há sobreposição com áreas de proteção ambiental”, alerta Raquel Pasinato, coordenadora do Programa Vale do Ribeira do Instituto Socioambiental (ISA). Mas pesquisadores constataram que no sistema há equilíbrio ambiental. Para a criação do SAT foram coletados diversos indicadores de sustentabilidade, considerando preservação de vegetação, solo e fauna. O monitoramento do trânsito de animais com câmeras, comparando mata madura e secundária com terrenos quilombolas, revelou que ambos os espaços são atrativos para as espécies nativas, ou seja, o cultivo não prejudica a fauna e em alguns casos até atrai espécimes.

Para Raquel, faltam braços do Iphan para identificar e fomentar os SATs, o que fortaleceria a agrobiodiversidade perante as mudanças climáticas. “Vemos que os técnicos têm boa vontade, mas não há recursos e condições políticas para a salvaguarda aos atuais e incentivo de outros sistemas”.

A valorização de SATs também permitiria a permanência dos jovens e das novas gerações na terra. Entre os oito filhos de Valni, a mais nova deve se formar em breve e dar aulas na escola da região. O filho mais velho, Luiz Marcos da França Dias, também é professor na escola local, doutor, e um dos autores do livro “Roça é Vida”, que retrata e defende a forma de vida no SAT e que ilustra parte desta reportagem.

Mas as comunidades não estão seguras apenas com o reconhecimento como patrimônio imaterial. “Uma preocupação é sobre o registro da nossa terra, porque a gente tem o título desde 2001”, conta Valni. “A terra aqui é coletiva, e fazemos tudo dentro da lei para a lei ficar do nosso lado, mas está demorando”.

Rodrigo Marinho, quilombola que integra a Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira, observa que a região é classificada como a mais pobre do estado de São Paulo. “Mas tem uma riqueza pouco conhecida provinda da diversidade cultural e dos recursos naturais que a gente preserva”.

INDÍGENAS E ACADÊMICOS SE ARTICULARAM POR PEDIDO AO IPHAN

Em julho de 2007, a Associação das Comunidades Indígenas do Médio Rio Negro (ACIMRN) encaminhou ao Iphan uma solicitação para registro do sistema agrícola da região como patrimônio cultural imaterial. O processo teve início com a articulação com o projeto PACTA (Populações, Agrobiodiversidade e Conhecimento Tradicional Associado), realizado em parceria entre a Unicamp e o Institut de Recherche pour le Développement (IRD), da França e coordenado por Mauro Almeida e Laure Emperaire.

Em contato com os pesquisadores no início de 2000, os indígenas do Médio Rio Negro solicitaram que os resultados do trabalho fossem apesentados assim que possível, pois sempre contribuíam com pesquisas acadêmicas, mas raramente tinham retorno. Depois de anos, durante a apresentação, espantaram-se com o fato de que algumas variedade de plantas, especialmente medicinais e mandioca, estavam desaparecendo.

“Não foram somente plantas, mas conhecimento que estávamos perdendo”, conta Carlos Nery, do povo Piratapuia. “Na busca por preservar saberes, soubemos do registro da Cachoeira de Iauaretê como patrimônio imaterial pelo Iphan e quisemos seguir o exemplo”, diz ele, coordenador das Associações Indígenas do Médio e Baixo Rio Negro.

Um sistema agrícola nunca havia sido reconhecido como patrimônio antes, o que exigiu troca de aprendizados entre o Iphan, a comunidade e os pesquisadores. A pesquisa e trabalho de conscientização da população local incluiu 23 povos indígenas de todo o Rio Negro, que passaram por consulta sobre o interesse em requerer o registro. “No processo, percebemos que quanto mais acima no rio, mais os povos guardavam conhecimento e, quanto mais abaixo, perto da capital, menos conhecimento”, lembra Carlos. O dossiê foi entregue ao Iphan em junho de 2010 e os trâmites para registro pelo Iphan demoraram menos de seis meses.

“Cada ator do processo tem sua própria perspectiva sobre a importância de reconhecimento do SAT como patrimônio imaterial”, opina Laure. “Para mim, permite mostrar as escolhas culturais, e não apenas produtivas, dos povos indígenas e comunidades locais em torno de sua produção agrícola”. Laure ressalta o direito da comunidade às próprias escolhas e o fato de que a diversidade das plantas cultivadas está intimamente ligada a vida social. “Além do papel das mulheres como especialistas em agronomia e plantas cultivadas.”

Mulheres indígenas comandam as lavouras e homens fazem o roçado no SAT Rio Negro. (Foto: Divulgação)

Saber fazer e cultivar a roça está no centro do sistema. São as mulheres que cuidam do plantio. A primeira parte pertence aos homens, que fazem a demarcação, roçagem (broca) e derrubada da vegetação. Depois do tempo certo, entre um e quatro meses, dependendo do tipo de vegetação e da quantidade de chuvas, eles fazem a queima.

“Nada se faz por fazer e tudo é acompanhado do conhecimento cosmológico, com os benzimentos”, explica Carlos Nery. No centro da roça é plantado o tipo de maniva (mandioca) que dura mais. Nas bordas, aquelas que produzem mais rápido. Junto com a mandioca, abacaxi, ingá, abio, pupunha, entre outras frutas e vegetais. A coleta é feita conforme o que está próprio para consumo e a roça dura de dois a três anos. Depois, volta a ser capoeira.

O sistema de troca entre as comunidades permite que plantas e conhecimentos permaneçam. “Isso é uma ciência, não é uma coisa acidental”, explica Mauro Almeida, antropólogo e professor da Unicamp. “Trata-se de uma tecnologia lenta de diversificação de material genético, com observação de resultados, sem objetivo de meta a priori única”. Para ele, conservação renovada da biodiversidade genética de plantas e roçados resulta de um processo científico em curso por povos indígenas e tradicionais, que atuam como laboratórios, mas de forma diferente da Embrapa. “São abordagens complementares”.

O reconhecimento do SAT dá mais visibilidade e facilidade para conversar com as instituições. “Concluímos que é importante incluir esse tema como disciplina obrigatória nas instituições de ensino para indígenas”, informa Carlos Nery.

| Nanci Pittelkow é jornalista. |

Foto principal (Divulgação): Bolsonaro diz ter mandado ‘ripar’ diretores do Iphan depois de embargo a obra da Havan, de Luciano Hang

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