No Pará, envolvidos no Dia do Fogo disputam influência sobre programa Titula Brasil

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Coordenador de agricultura de Altamira já se mostrou solidário a invasores de terras, enquanto o prefeito de Novo Progresso foi multado três vezes por desmatamento ilegal; grileiros e incendiadores de florestas participam de reuniões sobre o programa

Por Bruno Stankevicius Bassi, do De Olho nos Ruralistas e Tatiana Merlino, de O Joio e O Trigo

Considerado o maior município em extensão territorial do mundo, Altamira (PA) é um dos principais focos de grilagem e desmatamento na Amazônia. Entre fevereiro de 2020 e agosto de 2021, o sistema MapBiomas detectou a derrubada de 6,5 mil hectares de florestas em terras públicas não destinadas, colocando o município na primeira posição entre os líderes de desmatamento na Amazônia.

Foi justamente neste período, em abril do ano passado, que a prefeitura de Altamira convocou uma reunião para confirmar sua adesão ao programa Titula Brasil. Na ocasião, o coordenador municipal de agricultura, Almir Uchôa Segundo, ressaltou o papel do programa em ampliar o acesso ao crédito rural, estimulando a agropecuária do município. “Aliado a outras políticas públicas de fomento e apoio aos produtores da agricultura familiar, de pequeno e médio porte, temos a expectativa de aumentar e muito a produção na nossa região”, afirmou.

Responsável pela aplicação do programa em Altamira, Uchôa já se mostrou solidário a invasores de terras públicas. Segundo denúncia do Movimento Xingu Vivo, durante sua passagem pela superintendência regional do Incra em Santarém, o atual coordenador de agricultura teria intercedido para evitar que o órgão expulsasse fazendeiros do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Terra Nossa, um dos assentamentos contemplados pelo Titula Brasil e alvo constante de grileiros e madeireiros ilegais.

Trecho de recomendação detalha atuação de Uchôa. (Imagem: MPF/De Olho nos Ruralistas)

Esta é apenas uma dentre as histórias de violência, grilagem de terras e conflitos de interesses que revelam os problemas do modelo de regularização fundiária às pressas adotado pelo governo e seu impacto sobre os povos do campo: “Sem “modernização”, Titula Brasil promove conflitos de interesse, grilagem e violência contra povos do campo“.

Os exemplos se espalham pela Amazônia Legal: de Altamira e Novo Progresso, no Pará, à nova fronteira agropecuária na divisa entre Amazonas e Rondônia; de Alto Alegre do Pindaré e Amarante do Maranhão, aos municípios mato-grossenses de Novo Santo Antônio, Nova Canaã do Norte, Novo Mundo, Brasnorte e Querência.

LÍDER RURALISTA PARTICIPOU DE DECISÕES SOBRE TITULA BRASIL

Antes de ser coordenador de agricultura em Altamira, Almir Uchôa Segundo teve uma breve passagem como superintendente do Incra no oeste do Pará, ocupando o posto de abril de 2020 até janeiro de 2021, quando assumiu o cargo na prefeitura. Os dez meses em que esteve à frente do órgão foram marcados pela explosão do conflito fundiário no PDS Terra Nossa.

Uchôa (de camisa branca, à esquerda) e a líder ruralista Maria Augusta (à direita) em reunião sobre Titula Brasil. (Foto: Prefeitura de Altamira)

Em entrevista à Repórter Brasil, a líder comunitária Maria Márcia de Melo relatou que as ameaças aumentaram quando o Ministério Público Federal (MPF) solicitou ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) a retirada dos invasores. O pedido ocorreu após uma denúncia do Movimento Xingu Vivo: em agosto de 2020, Uchôa questionou em reunião com os assentados se valeria expulsar os invasores sob risco de aumentar a tensão e os conflitos. “Se o Incra tirar os fazendeiros, algum agricultor vai estar disposto a ocupar aquelas terras?”, perguntou. De acordo com a denúncia, o superintendente deu a entender que seria melhor que o órgão não retirasse os invasores e, em troca, prestasse assistência técnica aos agricultores.

Além de Uchôa, a cerimônia de assinatura do Acordo de Cooperação Técnica entre a prefeitura e o Incra contou com a participação de outra interessada direta na implementação do Titula Brasil: a presidente do Sindicato Rural de Altamira e produtora rural Maria Augusta da Silva Neta. Em agosto de 2019, em entrevista ao jornal O Globo, Neta justificou os incêndios criminosos promovidos por fazendeiros de Altamira e Novo Progresso — no que ficou conhecido como o Dia do Fogo — alegando que as queimadas ocorrem porque os órgãos “demoram a dar licenças”.

No mesmo ano, ela e outros fazendeiros invadiram a cerimônia de abertura do encontro “Amazônia, Centro do Mundo”, que ocorria no campus Altamira da Universidade Federal do Pará (UFPA), reunindo líderes indígenas, ribeirinhos, cientistas e jovens ativistas pelo clima. Assim como o Dia do Fogo, o tumulto fora convocado por grupos ruralistas no WhatsApp, com o propósito de impedir a realização do debate.

O prefeito de Altamira, Claudomiro Gomes (PSB), é proprietário de quatro lotes de terra na Gleba Pakisamba, um antigo plano de assentamento em Vitória do Xingu (PA) que integra a área atingida pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Ao todo, os lotes somam 673 hectares. Alvo de um processo de cassação por abuso de poder econômico, Gomes é réu em uma Ação Civil Pública impetrada pelo MPF para ressarcimento ao erário de valores referentes à sua gestão anterior, nos anos de 1997 a 2000.

Desmatamento na Floresta Nacional do Jamanxim, em Novo Progresso. (Foto: Marizilda Cruppe/Amazônia Real)

ENVOLVIDOS NO ‘DIA DO FOGO’ COMANDAM PROGRAMA

Vizinho de Altamira, Novo Progresso também está intimamente ligado ao Dia do Fogo. Foi ali que, em 10 de agosto de 2019, fazendeiros iniciaram uma série coordenada de incêndios florestais cuja fumaça foi capaz de escurecer o céu em São Paulo (SP), a mais de 2 mil quilômetros de distância. As queimadas criminosas também abriram caminho para a exploração econômica: segundo o Instituto Socioambiental (ISA), de abril a junho de 2021 o desmatamento no entorno da BR-163, que corta o município, aumentou 91% em relação ao período anterior.

Sob a foto de Bolsonaro, prefeito Gelson Dill assinou convênio com o Incra. (Foto: Prefeitura de Novo Progresso)

Um dos locais mais atingidos pelos incêndios foi a Floresta Nacional do Jamanxim, onde o prefeito de Novo Progresso, Gelson Luiz Dill (MDB), foi multado três vezes por desmatamento ilegal. Em 2009, ele foi autuado em R$ 288 mil por destruir 23,93 hectares. Em 2019, os fiscais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) registraram a retirada de 174,5 hectares de mata nativa e atuaram Dill em R$ 4 milhões. Em agosto de 2020, voltou a ser multado, dessa vez em R$ 2,1 milhões.

Em 2020, durante as eleições municipais, De Olho nos Ruralistas apurou que o prefeito incluiu não a propriedade, mas a “posse” de duas fazendas em sua declaração de bens à Justiça Eleitoral. Em um dos imóveis, denominado Carapuça, ele inclui supostas benfeitorias avaliadas em R$ 238,5 mil, mais de 23 vezes o valor declarado do imóvel, que é de apenas R$ 5 mil. Um valor irrisório para uma propriedade de 2.476 hectares. A outra propriedade tem 485 hectares e teve seu valor estimado em R$ 550 mil. Além das fazendas, ele é dono de 2.473 cabeças de gado, avaliadas em R$ 1,9 milhão.

Vice-presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Novo Progresso, Dill foi citado em mensagens trocadas por WhatsApp pelo grupo de fazendeiros que organizou os incêndios criminosos de 2019. Ele teve o nome mencionado nas conversas ao lado do presidente da organização, Agamenon da Silva Menezes, que chegou a afirmar que o Dia do Fogo foi uma invenção da imprensa para atingir o presidente Jair Bolsonaro.

Operação de Fiscalização na Floresta Nacional do Jamanxim, no Pará (Foto: Vinícius Mendonça/Ibama)

Agamenon Menezes foi um dos participantes da reunião em que foi firmado o acordo de implementação do Titula Brasil em Novo Progresso. Ao lado dele estava o coordenador de Regularização Fundiária do município, Roberto Aparecido de Passos, responsável pela execução do programa.

Em outubro de 2019, Passos foi preso pela Polícia Civil suspeito de envolvimento no assassinato do trabalhador rural Antônio Rodrigues dos Santos, conhecido como Bigode. Conforme a investigação, Bigode vinha denunciando desmatamento ilegal dentro do PDS Terra Nossa e, segundo relatos dos assentados, iria levar à sede da Polícia Federal em Santarém (PA) uma denúncia sobre esquema de venda de lotes e grilagem. Passos foi liberado após prestar informações, mas voltaria a ser denunciado em outro caso relacionado ao mesmo assentamento, dessa vez por ameaça.

Segundo a denúncia da líder Maria Márcia de Melo, Passos estaria entre as figuras influentes de Novo Progresso que a vem ameaçando, incluindo o próprio prefeito Gelson Dill e o presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Agricultura Familiar de Novo Progresso Raimundo Barros Cardoso, também denunciado pelo assassinato de Bigode.

Imagem principal (Fernando Martinho/Repórter Brasil): três anos depois do Dia do Fogo, envolvidos participam de negociações sobre Titula Brasil

Coordenação geral: Tatiana Merlino (O Joio e o Trigo)
Coordenação de pesquisa: Alceu Luís Castilho (De Olho nos Ruralistas)
Edição: Bruno Stankevicius Bassi e Tatiana Merlino
Reportagem: Bruno Stankevicius Bassi, Leonardo Fuhrmann, Mariana Franco Ramos, Tatiana Merlino
Design: Denise Matsumoto
Mapas: Renata Hirota

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