“Sangue indígena: A verdade incômoda por trás do frango exportado para a Europa” mostra o caminho percorrido pela soja produzida na Fazenda Brasília do Sul, em Juti (MS), até o mercado europeu; local foi palco do assassinato do líder Marcos Veron
Por Bruno Stankevicius Bassi
Todos os anos, no dia 13 de janeiro, um grupo de indígenas, pesquisadores e defensores de direitos humanos se reúne em volta da sepultura do cacique Marcos Veron para prestar homenagens a um dos grandes líderes Guarani Kaiowá. Foi ele o responsável por guiar seu povo de volta ao Tekohá Taquara, quase cinquenta anos após a expulsão do território. E foi ele quem, há dezenove anos, em 2003, pagou com a própria vida para que seu povo pudesse continuar a viver naquelas terras.
A tortura e assassinato de Marcos Veron, aos 73 anos, por funcionários da Fazenda Brasília do Sul e pistoleiros contratados pelo fazendeiro Jacintho Honório da Silva Filho deixou um rastro de violência que continua assolando os Kaiowá enquanto esperam pela conclusão do processo de demarcação que finalmente lhes garantirá o usufruto exclusivo da Terra Indígena Taquara.
Este é o tema do relatório “Sangue indígena: A verdade incômoda por trás do frango exportado para a Europa”, lançado hoje pelo observatório De Olho nos Ruralistas, em parceria com a ONG britânica Earthsight.
Realizada ao longo de um ano, a pesquisa percorreu as cadeias comerciais que conectam a soja produzida na Brasília do Sul aos principais mercados europeus. Transformado em ração animal, o grão abastece dezenas de granjas através da Lar Cooperativa Agroindustrial, uma das maiores exportadoras de frango do Brasil, que envia a carne congelada aos principais varejistas da União Europeia e Reino Unido. A soja ainda é exportada para Alemanha e Holanda para fabricação de ração para pets, das marcas Saturn e Animonda.
VIOLAÇÕES A INDÍGENAS CONTAMINAM CADEIAS DE EXPORTAÇÃO
Os registros comerciais coletados na pesquisa mostram que a importadora britânica Westbridge importou mais de 37 mil toneladas de frango congelado e marinado da Lar entre 2018 e 2021 — cerca de um terço das exportações totais da empresa ao Reino Unido e União Europeia no período. A Westbridge é uma importante fornecedora de produtos à base de frango para supermercados do Reino Unido, como as redes Iceland, Sainsbury’s, Asda e Aldi, além da conhecida rede de fast food estadunidense KFC.
A Lar atua ainda no mercado de pets, tendo como o principal cliente a empresa alemã Paulsen Food, que importou 14 mil toneladas da cooperativa brasileira entre 2017 e 2021. Na Alemanha, os subprodutos da soja são transformados em ração de cachorros e gatos pelas fabricantes Saturn Petcare e Animonda Petcare, de onde atingem as principais revendedoras da Europa.
A soja produzida na Brasília do Sul está também vinculada a consumidores europeus através de outra grande cooperativa brasileira, a Coamo, que exportou 3,9 milhões de toneladas de bagaço de soja para União Europeia e Reino Unido entre 2017 e 2021. A Alemanha foi responsável por metade dessas exportações e a Holanda por outros 36%.
Em 2019, De Olho nos Ruralistas revelou que uma das plantas da Coamo foi o ponto de partida para um grupo de 70 pistoleiros contratados por fazendeiros locais para atacar uma comunidade Kaiowá. A ação, que ficou conhecida como Massacre de Caarapó, resultou no assassinato do agente de saúde indígena assassinato de Clodiode Aquileu Rodrigues de Souza e deixou outras seis pessoas feridas, incluindo uma criança. A conivência da empresa levou à denúncia pelo Ministério Público Federal (MPF) de sete funcionários por falso testemunho, ao afirmarem não haver presenciado nenhuma movimentação atípica no dia.
A reportagem faz parte do especial De Olho no Mato Grosso do Sul, projeto vencedor do edital do Fundo Brasil de Direitos Humanos de 2018, que investigou a relação de empresas e políticos com o genocídio dos Guarani Kaiowá no estado e que, junto ao especial De Olho no Paraguai, serviu de base para o relatório.
LAÇOS DE PODER DO CLÃ JACINTHO SERÃO TEMA DE SÉRIE DE REPORTAGENS
Com 9.700 hectares, a Fazenda Brasília do Sul foi formada sobre um território ancestral dos Guarani Kaiowá, de onde os indígenas foram ilegalmente expulsos em 1953 para dar lugar a sucessivos ciclos de monocultura. Da erva-mate ao café, da pecuária à soja.
Mas a consolidação da exploração da área viria em 1966, com a compra das terras pelo clã Jacintho. Responsável por ter organizado a primeira importação de gado Nelore ao Brasil, o empresário paulista, falecido em 2019 aos 102 anos, cimentou sua fortuna e influência política a partir de Juti, de onde ele e sua família expandiriam negócios para além das fronteiras brasileiras.
A pesquisa identificou que, além de Marcelo Bastos Ferraz, que foi tema de reportagem da série De Olho no Paraguai, em 2018, outro dos genros de Jacintho Honório da Silva Filho possui uma atuação nada discreta no país vizinho. Casado com Monica Jacintho, Gino de Biasi Neto é dono de duas imobiliárias agrícolas, River Plate S.A. e BBC S.A., acusadas de destruir 4 mil hectares no Chaco paraguaio, dentro do território tradicional do povo indígena Ayoreo: “Dupla brasileira investe no Chaco, no sudeste do Pará e prospecta no Piauí“.
Bastos Ferraz, por sua vez, é um velho conhecido deste observatório. Sua empresa paraguaia, a Yaguareté Porã, possui uma longa história de comércio ilegal de terras e desenvolvimento de pastagens dentro do território Ayoreo. Em 2020, ele e a empresa foram tema de outro relatório da Earthsight, o Grand Theft Chaco, que mostrou como o couro produzido ilegalmente em áreas indígenas chegava aos consumidores europeus.
Ao longo das próximas semanas, as relações políticas e econômicas da família Jacintho serão tema de uma série de reportagens do observatório, detalhando a influência do clã no jet set paulistano — com direito a homenagem de Gilberto Gil — e suas ligações com o bolsonarismo.
| Bruno Stankevicius Bassi é coordenador de projetos do De Olho nos Ruralistas. |
Foto principal (Reprodução): no Mato Grosso do Sul, Terra Indígena Taquara é alvo de conflitos e disputas econômicas